Os audiófilos estão sumindo do planeta. A mídia de reprodução atingiu níveis elevados, mas nada chegou ao usuário de forma convincente. Com os serviços streaming, a indústria fonográfica pode sumir de vez também.
Audiófilos, desde o mais renitente ao menos obstinado, sempre tiveram um grande objetivo: ter em casa o som perfeito. Desde que eu me entendo como tímido participante deste mundo, eu tive a chance de ver audiófilos abastados continuadamente insatisfeitos com som de alta qualidade, e procurando outras variações de montagem para continuar a busca pelo som que eles nunca teriam ouvido.
Uma parcela significativa e importante de culpa neste processo vem da indústria fonográfica! Ela custou a abandonar o elepê, usou o CD de forma errada por muitos anos, e quando o áudio do tipo “Hi-Res” surgiu como alternativa, ele não teve o apoio necessário e acabou nas mãos dos selos especializados somente, e em lançamentos limitados e exageradamente caros.
Histórico
Durante anos a indústria fonográfico tinha perfeito conhecimento das limitações dos elepês, mas ela contava com a simpatia de audiófilos fixados no som analógico para manter o formato em pé e sem questionamentos sobre a qualidade de reprodução.
Durante anos na minha vida pregressa eu me questionei por que o elepê era tão problemático. Na década de 1970, eu cheguei ao absurdo de estudar corte de acetato, achando que era lá um dos principais meios de introduzir distorção nos discos. Cheguei a fazer um pseudo estágio na sala de corte da extinta Polygram, de onde depois saí correndo, jurando a mim mesmo nunca mais voltar. Aprendi uma amarga lição, mas isso passou como parte da minha experiência de vida, e eu fui em frente.
Anos mais tarde, a Philips anuncia o CD. A premissa era claramente vencer todas as limitações dos elepês. Mas, a indústria fonográfica sabotou de novo, com remasterizações feitas sem nenhum critério, e sem explicar aos consumidores que precisavam dar atenção ao equipamento de reprodução. Os audiófilos que não aprovavam o som digital condenaram a mídia. E a indústria não se mexeu.
E por que eles teriam que fazer isso? Porque na gravação digital não existe correlação entre resposta de frequência e amplitude! Na prática, isto significa que sons de certas frequências podem alcançar níveis elevados, os quais um equipamento convencional não consegue reproduzir corretamente, ou seja, distorce, e/ou clipa os estágios de saída, com risco de queimar esta saída e os alto-falantes.
A Telarc era uma das poucas gravadoras que tinha consciência disso, gravava digitalmente sons de amplitude elevada, e alertava os perigos nas capas dos discos, desde as edições dos elepês em diante:
Para reproduzir corretamente uma gravação digital o ideal é usar um amplificador com resposta condizente com o sinal de áudio que entra nos seus estágios de linha. Uma possível solução é o emprego de fontes de alimentação robustas, com ligação em fibra ótica com a saída. Se o sinal aumentasse de amplitude, a fonte respondia e o amplificador tinha a potência necessária à reprodução sem distorção. O mesmo se aplica a caixas acústicas, com drivers dotados de suspensão capaz de suportar sons de qualquer frequência em grande amplitude.
No início, era também interessante fazer a entrada de linha (RCA) que sai do reprodutor de mesa ser transmitida de modo a evitar qualquer manipulação de sinal, a chamada saída direta. Muita gente tentou resolver isso com players dotados de saída digital, fosse coaxial ou Toslink (ótica). Mas, a eletrônica antiga só ajudou em parte do circuito. Com o tempo, percebeu-se que seria preciso manter o sinal de áudio em ambiente digital, até próximo dos estágios de saída.
Depois do advento HDMI, o sinal pode passar aos decodificadores em um ambiente digital seguro. Esta ideia, aliás, não é novidade. A Deutsch Grammophon, por exemplo, construiu microfones com circuitos digitais, mantendo o sinal neste ambiente até chegar aos gravadores digitais da época. O modo direto dos receivers contorna todos os circuitos de tonalidade ou aprimoramento de sinal. Tal recurso funciona tanto para o PCM quanto para o DSD, este último se reproduzido pelo aparelho de mesa ou na forma de arquivos em um drive apropriado.
Entra em cena o SACD
O Super Audio Compact Disc é uma mídia composta por arquivos DSD. A Philips vinha trabalhando em DAC’s bitstream desde a década de 1990, e com excelentes resultados. A possibilidade de trabalhar com apenas 1 bit em alta velocidade de amostragem contornou uma série de problemas, principalmente no tocante à filtragem e demais correções, que existiam nos conversores analógico-digital convencionais.
O DSD foi proposto como uma alternativa ao PCM. No processo de conversão do sinal analógico para o digital. Ele é baseado na modulação delta-sigma, com apenas 1 bit amostrado a 28224 MHz, portanto cerca de 64 vezes o valor de amostragem do CD (44.1 kHz), para seguir a onda senoidal.
Cada ponto da curva é representado ou por um bit positivo, quando a curva sobe em amplitude, ou por um bit negativo, quando o oposto acontece. Com isso, o processamento de filtragem do sinal original é enormemente facilitado, tendo no final como resultado um sinal analógico de baixíssima distorção.
O SACD foi lançado em 1999. Logo depois, foi lançado em 2000 o DVD-Audio, usando como base o PCM multicanal com amostragem e resolução elevadas, de 48kHz e acima.
Até hoje ocorrem discussões comparativas que dão preferência a um formato exclusivamente. Advogados do DSD defendem o princípio de que o som do SACD é muito mais próximo do som analógico, enquanto que seus adversários criticam o uso de apenas 1 bit, achando que a resolução resultante é insuficiente para a correta reprodução do som original.
Enquanto esses dois campos de exegetas da área discutiram, e o fazem até hoje, os dois formatos, SACD e DVD-Audio, sucumbiram. Ainda se vê alguns reprodutores de mesa capazes de ler os dois discos, principalmente o SACD, que tem suporte da Sony, mas a preços abusivos. E ainda se pode fazer um esforço e achar alguma versão de gravações passadas em um desses formatos.
Consequências da retração de mercado
Eu creio que a indústria fonográfica não contava com a disseminação de música através de formatos comprimidos, como, por exemplo, o MP3 e similares, e a transmissão de música por streaming, também com conteúdo comprimido.
Esses dois fatores, sem dúvida, diminuíram as chances de recuperação do mercado fonográfico. Por causa disso, estúdios importantes fecharam as suas portas, poucos deles conseguiram sobreviver. Claro que não foi só isso que levou estúdios a fecharem as portas. O alto custo de produção, por exemplo, também foi decisivo para tudo chegar a este ponto.
Muita gente culpou a indústria fonográfica de não ter se precavido quando na Internet apareceu o Napster, programa com compartilhamento sem censura de música gravada. Convenhamos, o Napster foi uma iniciativa sacana de formar uma plataforma que pudesse contornar a ausência de títulos dos catálogos das gravadoras, mas, em o fazendo, permitiu que a troca de arquivos de música diminuísse a venda de discos.
Não é segredo algum que a indústria fonográfica do passado obteve grande capacidade de faturamento, e que os discos que não vendiam bem eram financeiramente cobertos pelos que vendiam muito. Foi o caso da venda de discos clássicos, cuja produção era alegadamente coberta pela venda dos discos de rock.
O mercado atual, em função do fechamento dos estúdios, ficou na mão das empresas que detém as masters arquivadas das demais gravadoras. Atualmente, é a UMG, do grupo Universal, quem tem um número expressivo dessas gravações. Aliás, são empresas deste tipo que continuam se beneficiando da exploração dos fonogramas de catálogo, enquanto que os artistas, músicos e compositores, raramente veem a cor do dinheiro!
Mas, no final quem sobra mesmo é o audiófilo e/ou o amante de música, que precisa se esforçar para se livrar do estigma da música comprimida do streaming. Alguns serviços, como, por exemplo, o Tidal, passaram a oferecer áudio de alta resolução na forma de arquivos MQA, mas a aceitação não foi boa, muitos críticos acharam o formato inconvincente.
Muito do que é transmitido ao usuário pelos serviços de streaming deixa muito a desejar em qualidade de áudio, inclusive nos planos mais caros. Isto quer dizer que a ausência da mídia tradicional não foi ainda superada, em termos do seu uso como “front-end” de reprodução mais elaborada.
Por enquanto, não há promessas de grandes mudanças. Mas, até poderiam ser conseguidas. O streaming de vídeo tem hoje uma reprodução bastante satisfatória de áudio, como o PCM multicanal e o Dolby Atmos. Bem que os outros serviços poderiam seguir este exemplo. Na falta de discos que a gente ainda quer ouvir, a iniciativa quebraria um grande galho. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Ultimamente tenho usado o amazon music no fire stick 4k ligado ao receiver Denon e percebo muita qualidade. Chegando à 24/196 khz em alguns álbuns.
Já testei todos os que oferecem hires e pelo menos para ouvir na sala achei o som da Amazon melhor
Apesar da interface ser bem ruim de navegar.
Gostaria de sugerir um tema para ser abordado aqui. Comparar os streaming que oferecem hires no Brasil.
abraço
Oi, Danilo, obrigado pela sugestão. Em princípio, acho impraticável, porque eu não tenho o equipamento necessário, mas vou ver o que posso fazer.