Os filmes atuais estão repletos de estereótipos inconvincentes, visando somente faturar bilheteria, sem qualquer compromisso de veracidade.
Eu já vi este tipo de filme centenas de vezes nos últimos tempos: entra em cena uma moça magra, quase franzina, aparentemente do tipo frágil, mas que, diante do perigo, sai dando porrada em tudo quanto é brutamonte que lhe aparece pela frente. Não sobra um para contar a estória!
Este tipo de personagem prova exatamente o quê? O poeta já disse uma vez que a mulher é sempre mais forte que os homens. A natureza a provê de tolerância à dor e força para aguentar um extenuante trabalho de parto, de capacidade de sublimar esta dor logo após o nascimento, sair sorrindo vendo o filho recém-nascido, e é a mulher quem dá aos filhos o carinho que eles precisam, desde o início.
A Bíblia diz, textualmente, que “uma mulher esmagará a cabeça da serpente”, se referindo ao aparecimento de Nossa Senhora, mãe de Deus, que será capaz de enfrentar Satanás. Ela não é só a mãe de Cristo nos textos do Evangelho, os Católicos a vêm como a mãe de todos, que intercederá por nós no momento em que isto for necessário. Se alguém tem dúvida, basta visitar a cidade de Aparecida do Norte e ver milhares de romeiros em busca deste tipo de proteção e ajuda.
Então, a mulher, de uma maneira geral, é especial, tem o seu valor na sociedade, e não precisa deste tipo de caracterização de força. Por outro lado, o cinema é capaz de expressar visualmente sentimentos como doçura, afeto, carinho e ternura. Grandes cineastas do passado se valeram desta capacidade da câmera e da iluminação e fizeram o que quiseram nesta direção.
Ora, se a câmera e a luz que incide na face de uma mulher conseguem mostrar a sua alma, para que recorrer à porradaria? Para provar que a mulher é forte? Claro que não. A realidade é que nós estamos diante de um estereótipo forçado pela máquina de ganhar dinheiro. Pouco importa se o enredo do filme tem algum conteúdo que preste, o importante é a personagem acabar com todo mundo.
A ambição de bilheteria não vê limites nem ética. E este tipo de estereótipo é apenas um dentre vários usados pelo cinema atual. Super heróis são, por definição, personagens capazes de vencer qualquer coisa, em uma suposta defesa do bem. Então, esta enxurrada de super heróis na tela não tem outro objetivo senão uma falsa catarse de quem está vendo o que ele ou ela podem fazer, seja na tela, seja nos quadrinhos, para quem coleciona este tipo de mídia.
A perda de identidade
Como tudo na vida costuma ter um preço, a exploração dos estereótipos atuais custou ao cinéfilo a perda completa de imaginação de algum valor de fato positivo nos roteiros dos filmes, esses mesmos que o cinema de outrora costumava mostrar, ao lado de um roteiro que fizesse um mínimo de sentido, no contexto geral da estória do filme.
Um desses aspectos bizarros contidos nos super heróis ou nas bravatas femininas é o da morte de personagens em grande número. Espelhados nos vídeo games, os “heróis” e “heroínas” saem matando quem estiver na frente. Metralhadoras, granadas e revólveres automáticos saem varrendo os adversários, mas com um sutil detalhe: o número destes últimos aparece em níveis surrealistas, ou seja, quando alguns morrem, logo depois aparecem outros, em uma infindável sequência de assassinatos. Neste ponto, há uma correlação direta com os vídeo games, onde o jogador fica aguardando a próxima vítima. A propósito: existe alguma coisa de educativo nisso? Se houver, eu desconheço.
Eu me interessei e estudei cinema em torno dos meus 16 anos, época, aliás, em que o cinema de arte tinha prestígio nessa cidade, e os meus professores ensinaram a gente a ver de tudo. Isso naquela época. Às vezes, hoje, eu penso que estou perdendo a capacidade de assistir cinema da forma como eu fui instruído.
Senão, vejamos: John Wick é um ex-criminoso assassino, agora aposentado, mas anteriormente ligado a mafiosos, e o filho de um deles resolve roubar o seu carro e matar o seu cachorro, lembrança da sua mulher que havia morrido. Então, o que faz ele? Sai matando todo mundo. Por “coincidência”, os mafiosos em questão são todos russos que vieram exercer as suas atividades criminosas na América. É a continuação da guerra fria, sob o ponto de vista retórico (russos são inimigos em qualquer circunstância), assim a estória entra no contexto de estereotipar atividades da máfia por imigrantes de outro país.
E a plateia aceita isso com passividade, tanto assim que estamos em 2023, e um filme de 2014 continua tendo uma sequência atrás da outra, em uma escalada exemplar de ultra violência, sem pudor algum, sem censura e sem ética.
Se “John Wick” fosse um caso isolado, eu não teria base para ficar chateado, mas o fato é que filmes violentos, contendo algum tipo de vingança, são produzidos em abundância, é não é de hoje.
O termo “Ultra Violência” foi lançado no livro de Anthony Burgess A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica), filmado e depois retirado de cartaz na Grã-Bretanha, pelo cineasta Stanley Kubrick. A estória se espelha na banalização da violência, perpetrada por uma gangue capitaneada pelo personagem Alex DeLarge. O personagem Alex é cercado de contradições: ele é um sociopata, mas adora Beethoven, e não admite que a imagem do seu ídolo seja maculada. É difícil saber a inspiração do autor na criação do personagem, mas na história aparecem figuras deste tipo, como o ditador Stalin, que matou muita gente e adorava música clássica.
Beethoven é usado contra Alex, através de um processo experimental de cura, ao qual ele aceita ser submetido. E a música que ele tanto gosta acaba se tornando um objeto eficiente de tortura. Mas, o objetivo em si da suposta cura é político, e portanto, não precisa dar certo.
É no mínimo irônico que um filme polêmico e censurado como A Laranja Mecânica, que debateu as raízes sociais e políticas da ultra violência, tenha resultado em um enredo que virou lugar comum no cinema!
Se o objetivo de um filme é incitar o debate, ele não deveria ter um roteiro que é escrito para apenas mostrar a violência como forma de resgate de algum tipo de dignidade, porque esta premissa é reconhecidamente mais falsa do que nota de três.
Nos meus tempos de cineclube, uma das razões de ser de juntar gente em torno da projeção de um filme era o de exibir alguma coisa que as pessoas teriam algum tipo de apreciação, mesmo que fosse somente para divertir a quem assiste. Além disso, as pessoas que circulavam em torno do cineclube aproveitavam a chance para debater o filme, se fosse o caso. Nos bons tempos do cinema Paissandu, as reuniões eram ao lado, no bar Oklahoma, point de estudantes e fãs de cinema.
Se eu, por acaso, fosse participar de um cineclube nos dias de hoje, e fizesse a programação do mesmo, teria que recorrer a filmes antigos, à guisa de achar algum conteúdo que não envolva violência gratuita. É possível achar filmes atuais de bom nível sim, mas é preciso ter cuidado na escolha.
Cineastas pós studio system fizeram críticas contundentes, e com toda a razão, aos moldes de produção controlada. É verdade que, no passado distante, também aconteceram excessos, mas, é quase impossível comparar o conteúdo de filmes controlados com a liberdade sem ética dos dias de hoje.
Como cinema é um hobby muito pessoal, eu tenho certeza de que estou na minoria absoluta, toda vez que me recuso a aceitar a ultra violência disseminada. Pode ser, que no futuro mais à frente, a fórmula se esgote. Porque fórmulas do passado se esgotaram de um momento para o outro, por motivos diversos. Alguém aí lembra quando os cinemas, à cata de bilheteria, passaram a explorar filmes pornográficos? Quanto tempo durou isso? Tal mudança impediu os cinemas de fecharem as portas? E os filmes de vampiro da Hammer? Fizeram sucesso e desapareceram.
Eu entendo que este tipo de lição devia ser aprendido. Escolas de cinema estão aí, e o que certamente não falta são futuros cineastas capacitados a fazer bons filmes. Resta dar a eles a oportunidade de se expressarem. Se fizerem isso, a fórmula da ultra violência pode acabar! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Bom dia, Paulo. Lá em 2019 você escreveu:” o cinema está doente” e, continua na UTI e não morre. Ocorre que esse gênero de filmes, ultra violentos servem a essa mocidade que vão às salas para comer pipoca , tomar refrigerantes e ficar olhando no famigerado celular. Não tenho mais esperança de retornar à sala e, além de tudo como já comentamos, só cópias dubladas. Fomos vencidos.
Pois é, Celso, eu também ando desesperançoso de ver mudanças. Com o meu estado de saúde atual precário, eu fico constantemente tentando achar um filme novo em casa, e invariavelmente esbarro em violência. Tem vezes que eu paro de assistir, porque as cenas não mudam.
O cinema pegou essa mania horrenda de fazer montagem com minutagem de 1 segundo ou menos, as cenas de ação ficam confusas e horríveis de assistir, porque elas se tornam incompreensíveis. O pior é que essa moda se espalhou pelo mundo, muito triste!