Buenos Aires foi tratada muitos anos como capital do Brasil nos cinema americano e nos discos. O Rio de Janeiro, quando capital, se enriqueceu culturalmente, mas essa cultura emergente só foi destruída ao longo dos anos, deixando muita coisa boa para trás.
Eu era menino, quando o lendário pianista e cantor Nat King Cole chegou ao Brasil, para uma série de shows. Foi recebido no Rio de Janeiros por fãs e entusiastas, merecidamente. Fez um show memorável no Maracanãzinho, local usado para este tipo de apresentação, como era costume naquela época. O show foi reprisado mais duas vezes. Se apresentou também mais de uma vez em São Paulo.
Em sua passagem pelo Rio, Nat King Cole foi aos estúdios da Odeon e gravou o disco A Meus Amigos, acompanhado do seu produtor Lee Gillette e do arranjador Dave Cavanaugh, que foi quem organizou toda a parte musical. Nat contou também com a participação na parte vocal de Sylvia Telles e do conjunto vocal Trio Irakitan, que fazia sucesso popular na época.
O disco, que teve uma versão, com o título A Mis Amigos, foi lançado para os Estados Unidos (selo Capitol) e para o resto das Américas, mas a música Ninguém Me Ama virou Nadie Me Ama, cantada em espanhol. Vejo hoje na única edição em CD de anos atrás, a anexação de faixas que nunca apareceram no elepê.
Basta ouvir esta gravação para conhecer de perto a maneira como os norte-americanos viam a América do Sul e, em particular, o Brasil. A intenção dos produtores da Capitol pareceu capitalizar o mercado internacional para o lançamento deste disco, mas mesmo que assim não o fosse, a introdução de boleros, tangos e outros gêneros latinos suplantou a presença de músicas brasileiras, supostamente aquelas dirigidas ao nosso público. A própria Sylvia Telles faz o seu vocal em português e depois em espanhol, em A Mis Amigos.
Ouvindo-se o disco da Odeon louvou-se o português macarrônico do cantor. A sua voz rouca, fruto do tabagismo crônico do cantor, mas suave, encantou a quem ouviu a gravação em uma vitrola de alta fidelidade.
Para quem nunca percebeu a visão latina dos americanos, a presença de músicas não brasileiras neste disco foi uma surpresa. Coincidência ou não, quem ia ao cinema assistir Carmem Miranda, percebia o preconceito Hollywoodiano de que no Brasil se falava espanhol e a capital daqui ficava em Buenos Aires.
Esta mesma visão, de um Brasil de língua espanhola, ficou caracterizado em “Olé”, paródia de uma novela brasileira, em vários episódios da comédia KYTV, da BBC, na década de 1990:
Esses segmentos, diga-se de passagem, foram montados com atores brasileiros. A dublagem sobrepõe as falas dos atores, e comparativamente muito engraçada, fazendo aí uma crítica aberta aos serviços e adaptações das dublagens.
A bossa nova mudou muita coisa
O disco de Nat King Cole, apesar de gravado em 1959, mostra que o artista, aparentemente, não tomou conhecimento da Bossa Nova, que estava surgindo e que veio justamente para contestar, digamos assim, gêneros às vezes depressivos, como o samba-canção “Ninguém Me Ama”, e mudar o espírito da música composta para temas mais em sintonia com a juventude carioca da época.
Essa mudança foi percebida no estrangeiro quando a política de boa vizinhança trouxe músicos americanos ao Rio de Janeiro, que se sensibilizaram com o movimento bossanovista. Segundo historiadores, vários desses músicos saíram daqui com elepês debaixo do braço, e fizeram um grande esforço de se aprofundarem no novo gênero que estava florescendo entre músicos e compositores daqui.
Curiosamente, quando a Bossa Nova impactou músicos e intérpretes norte-americanos na década de 1960, a visão do que era música brasileira mudou. E Nat King Cole acabou gravando em 1965 “The Girl From Ipanema”, no disco da Capitol L-O-V-E. Em 1964, Nat gravara Sings My Fair Lady, onde o arranjador e regente Ralph Carmichael se identifica com a batida da Bossa Nova, inserida no tom romântico do arranjo de On The Street Where You Live, faixa 4 do Lado A do elepê.
Ora, Garota de Ipanema com certeza mudou a visão de muitos americanos sobre o Rio de Janeiro, e não digo somente dos músicos que estiveram aqui. Afinal, Ipanema acabou se tornando a praia tema da música de Tom e Vinícius, uma das mais gravadas do planeta. As estatísticas mostraram que A Garota de “Ipanima”, na letra traduzida por Norman Gimbel, foi alvo de um número absurdo de músicos e cantores. Acho, até hoje, bem provável, que a visão distorcida de que o Brasil era somente o “país do carnaval” tenha mudado na cabeça de muita gente.
O mais gozado desta estória é que a Bossa Nova foi intensamente contestada e desmoralizada por retrógrados daqui, desde a sua concepção, mas na América, ela chegou, permaneceu e ficou viva até hoje, motivo pelo qual vários músicos nossos se mudaram para lá, para continuar tocando, gravando e sobrevivendo!
A mudança da capital e o seu impacto cultural
No colégio primário que eu frequentei o cabeçalho do dever de casa começava com “Distrito Federal…” e aí se escrevia a data. Quando Juscelino mudou a capital para Brasília, o Rio de Janeiro passou a se chamar Estado da Guanabara. A esta altura, eu já tinha passado para o colégio secundário.
Esta mudança não passou incólume na cabeça dos cariocas, e é fácil entender por que motivo: a cidade foi historicamente alvo da cultura europeia, e havia se tornado essencialmente cosmopolita. Eu posso falar por mim mesmo: basta dizer que eu estudei em um colégio secundário Marista, fundado por um padre francês e com irmãos Maristas europeus. A França teve enorme influência não só cultural, como também paisagística, principalmente na área do centro da cidade.
E não foi a única. Vários dos amigos do meu pai eram europeus que migraram para cá. A influência educacional europeia nos estudantes cariocas de muitas escolas acabou determinando, sem dúvida alguma, o comportamento de adolescentes e jovens universitários. Quando eu morei em Cardiff, no início da década de 1990, alguns dos meus conhecidos achavam que eu não era brasileiro, ou então, que eu descendia de europeus, provavelmente britânicos. Mas provavelmente foi porque eu estudei inglês na Cultura Inglesa logo aos 12 anos de cidade, e fiquei por lá cerca de uns seis anos. O ensino era puro cuspe e giz, as normas de conduta das tradições de lá se espelhavam no tratamento que nos era dado. Quem não se adaptava saía do curso!
As mudanças de ambiente provocadas por um tal de Juscelino
Falava-se que Juscelino era um “presidente bossa nova”, mas o que ele fez foi descaracterizar o Rio de Janeiro. Nem todo mundo pensava assim. E eu tive um amigo, que um belo dia, almoçando comigo em um restaurante, tocou no assunto Juscelino, falando muito bem dele e de tudo que ele fez. E eu caí na besteira de comentar que ele, ao construir Brasília, tinha deixado o Brasil com uma dívida que nunca foi saldada. Esse meu amigo ouviu calado, a expressão do seu rosto mudou, e depois disso ele nunca mais falou comigo. Ou seja, perdi um amigo, por conta de um simples comentário sobre um político.
Por outro lado, eu enxergo este incidente assim: este meu amigo, que ainda deve estar por aí, não é carioca, e, provavelmente por causa disso, não tem ideia do que foi perder o status de capital do país, em um momento cultural importante na cidade, haja visto a criação da Bossa Nova.
Essa malfadada experiência com aquele meu ex-amigo não foi diferente de outras que eu vivi na infância e adolescência. O Brasil sempre teve cidades com populações bairristas e paroquiais. Eu, quando era menino, o meu pai me mandava passar as férias no interior de São Paulo, onde ele nasceu, e lá eu ouvia os meus primos por parte de pai tecer tudo quanto é tipo de comentário negativo sobre nós primos cariocas e a cidade onde vivemos. Eles falavam “como São Paulo era superior ao Rio”. O preconceito existia sem que nenhum dos primos paulistas tivesse vindo visitar e conhecer de perto o Rio de Janeiro. Enquanto que nós aqui pouco nos lixamos sobre as diferenças, embora elas fossem claramente perceptíveis!
Ironicamente, vários desses primos paulistas saíram da cidade do papai, fizeram faculdade em outra cidade, e começaram a viajar. Um deles veio ao Rio e nos pediu para leva-lo com a família para almoçar na Barra da Tijuca. As críticas terríveis tinham desaparecido naturalmente!
O lado cultural da antiga capital do Brasil desabou na era pós Juscelino, e foi sendo destruído ao longo dos anos por motivos políticos. Infelizmente, com a presença da ditadura dos regimes militares autoritários, o esmagamento da esquerda aumentou os conflitos culturais, implantou a censura, e vigiou de perto letras de música, peças, cinemas, etc.
Mas, na década de 1970, o espírito carioca ainda persistia nas folhas do jornal O Pasquim. O jornal era constante alvo de censura e vários dos seus articulistas presos para esclarecimentos e depois soltos. Era prática dos estudantes correr nas bancas comprar um exemplar antes que a polícia chegasse lá para os retirar de circulação. Os jornaleiros, inclusive, avisavam isso a todo mundo, quando percebiam que a edição do Pasquim ia ser cassada.
Quem morou no antigo Rio de Janeiro não precisava ser “carioca da gema do ovo” para sentir a liberdade de se sentir parte do ambiente, de sentir a paisagem sempre conivente com o estado de espírito da cidade. Eu sou um que sinto muita saudade da minha época de menino, quando minha mãe me levava de ônibus para a praia, ou quando me levava de bonde em um belíssimo passeio para subir até o Alto da Boa Vista, onde a gente saltava e passeava pela Floresta da Tijuca. Nas vezes em que eu levava os meus filhos para lá eu mostrava onde ficavam os trilhos dos bondes, cuja retirada criminosa de circulação matou o prazer de fazer aquele belíssimo passeio.
A Tijuca, onde morávamos, sempre espelhou o espírito cultural carioca. Um bairro musical, repleto de salas de cinema, etc. Até clube de futebol (América Futebol Clube) tinha por lá. É duro, para quem morou aqui, ver o bairro descaracterizado ao longo dos anos.
Para quem achava que a capital do Brasil ficava em Buenos Aires, vir ao Rio de Janeiro virava a cabeça de qualquer um. O Cassino de Urca levou Carmem Miranda para os Estados Unidos, e lá ela se viu compelida em mostrar o país como puramente agrícola, que era mesmo. Mas, ao fazer isso, distorceu o ambiente onde cresceu, um erro que talvez ela possa ter se arrependido. Seus filmes misturavam português com espanhol, outro erro absurdo.
A filmografia americana sobre o Brasil, nas décadas de 30 e 40, o Rio de Janeiro em particular, chegou a ser hilária, ao longo daqueles anos. Fred Astaire filmou Voando Para o Rio para a RKO, mas, aparentemente, nunca esteve aqui. No filme, compósitos mostrando no fundo o hotel Copacabana Palace, dava impressão do contrário:
Ao fundo da imagem, se vê a visão aérea da Avenida Atlântica e a proximidade da orla. O hotel, agora com 100 anos de existência, ainda guarda a arquitetura de épocas remotas. Ali se hospedaram celebridades do mundo do cinema e das artes em geral. Talvez Fred Astaire tenha se hospedado lá de verdade, e não apenas no filme.
Existe ainda muita coisa preservada neste Rio de Janeiro, mas não compensa a perda de tudo que desapareceu ou foi vítima do descaso do serviço público. Eu tomei um susto quando soube que o tradicional logradouro do Jardim de Alah, abandonado há anos, estava sendo entregue a empresários. Ali eu brinquei muito quando era criança. Locais como este são vítimas da exploração comercial e não mais áreas de lazer. Quando uma associação de moradores apoia um projeto deste tipo, é sinal que algo de podre está no ar. E assim desaparece a esperança de preservação de valores que nos foram caros e não são mais. [Webinsider]
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A influência da Bossa Nova na música popular romântica norte-americana
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.