A série da BBC Doctor Who exibida no Reino Unido desde 1963 chega agora ao serviço de streaming da Disney. A nova era terá o retorno de David Tennant como Doutor por três episódios antes de apresentar a nova versão, vivida por Ncuti Gatwa. Fora do Reino Unido e Irlanda, a atração passa a ser distribuída pela Disney+ para o resto do mundo
Eu nunca vi Doctor Who na infância.
Vivendo no Brasil, nem teria como. Senão, vejamos: nasci em 1966, três anos antes de os americanos porem os pés na lua, e também o ano em que foi lançada na TV a série que faria a minha cabeça de criança e a de muita gente da minha geração. Star Trek (que naquele tempo era mais conhecida pela tradução para o português, Jornada nas Estrelas) foi uma série de ficção científica que durou apenas três temporadas, que foram reprisadas incessantemente em várias emissoras no decorrer das décadas de 1970 e 1980.
E eu também revia incessantemente os episódios que relatavam as aventuras do Capitão Kirk e do seu imediato alienígena, o vulcano Spock, a bordo da nave estelar Enterprise. A série apareceu no momento perfeito: a corrida espacial dos EUA e da URSS, que acabaria resultando no pouso da Apollo 11 na superfície lunar.
Minha mulher, que nasceu em 1970 e teve uma criação bem parecida com a minha, diz que nunca se interessou por Star Trek porque eram aventuras feitas para meninos, onde as mulheres quase nunca tinham o protagonismo, e quase sempre eram reduzidas a serem damas indefesas, vítimas do olhar masculino. E ela está absolutamente certa: embora a série original tivesse sido revolucionária em vários aspectos (como, por exemplo, uma tripulação multirracial), ainda era um produto de seu tempo.
Hoje a coisa mudou de figura: Star Trek virou uma franquia, com muitas séries (até o momento são doze, incluindo séries de animação) e onde finalmente a diversidade chegou. Uma das séries mais recentes, Discovery, tem um casal assumidamente gay, uma personagem não-binária e uma agênero, e Strange New Worlds apresentou uma vilã feita por uma atriz trans. As séries agora fazem jus ao que sempre foi o lema da original: indo audaciosamente aonde ninguém jamais esteve.
Doctor Who iniciou em 1963
Mas três anos antes dessa série estrear na TV americana, outra, bem mais despretensiosa, chegava aos lares do Reino Unido. Doctor Who estreou no dia 23 de novembro de 1963, no dia seguinte ao assassinato de John Kennedy. Se a série fosse americana, talvez nem tivesse estreado naquele dia, mas eram outros tempos: a transmissão intercontinental por satélite ainda não era comum, e ela só começaria a ser exibida fora da Inglaterra um ano depois.
Doctor Who era uma série inteiramente diferente de Star Trek – ou de tudo o que já havia sido feito no gênero na televisão mundial. Para começar, o protagonista era velho, um sujeito com cara de vovozinho – e era um vovô mesmo, porque sua assistente era sua própria neta.
No episódio piloto, dois professores da menina descobrem que ela não é da Terra, e junto com seu avô, um homem que se apresenta simplesmente como O Doutor (o Who é uma brincadeira, porque nunca se descobre QUEM é o sujeito, e ele ainda hoje não tem nome).
Ao contrário de uma nave veloz e cheia de armas (o que sempre me pareceu muito contraditório para uma nave supostamente de pesquisa científica), o Doutor tinha um veículo inusitado: uma cabine de polícia bem pequena e apertada por fora – mas que por dentro era bem maior. O tesseracto (é o nome técnico para um objeto hiperdimensional) também tinha nome, mas não era imponente como Enterprise: a máquina se chamava TARDIS, sigla para Time And Relative Dimension(s) in Space (literalmente, Tempo e Dimensões Relativas no Espaço).
TARDIS, máquina de viajar
O que isso significava? Que o veículo era uma máquina de viajar não só pelo espaço mas também pelo tempo. De saída eles já viajam para a pré-história, a fim de mostrar o potencial da máquina… mas também de um certo desmazelo: afinal, a TARDIS podia se camuflar em qualquer objeto, mas estava com defeito e ficou travada no modo Cabine de Polícia. Isso sem contar que o Doutor fazia as viagens sempre em freestyle, ou seja: ele nunca sabia onde ia parar. Convenhamos, essa bagunça deliciosa era algo que os brasileiros entenderiam muito bem, e provavelmente com a qual se identificariam totalmente.
Infelizmente a série só passou a ser exibida aqui no que ficou conhecido como o seu revival: a hoje chamada Série Clássica durou de 1963 a 1989, e outra característica interessante da série foi sua continuidade: quando o primeiro ator a desempenhar o Doutor, William Hartnell, precisou sair da série por motivos de saúde em 1966, os roteiristas tiveram a brilhante ideia de atribuir ao personagem do Doutor o poder de se “regenerar”, ou seja, simplesmente mudar de forma como quem troca de pele. Uma idiossincracia era que isso também mudaria a personalidade do doutor, o que daria mais liberdade ao ator seguinte, no caso Patrick Troughton.
Até o fim da série clássica, sete atores dividiram o papel do Doutor. Houve um oitavo, num filme longa-metragem feito em coprodução com os EUA, mas não cativou o público de lá. E assim a série permaneceu no limbo até 2005, quando voltou, desta vez com Christopher Eccleston no papel-título. De lá pra cá, mais cinco atores se revezaram nesse papel – mas mesmo assim a diversidade não tinha dado muito as caras na série, até 2018, quando a atriz Jodie Whittaker foi a primeira mulher a assumir o papel do Doutor.
Doctor Who 2024
Neste fim de 2023, o showrunner, Russell T. Davies, decidiu dar um novo rumo a série.
Davies, que havia sido o responsável pelo retorno da série em 2005 e saíra em 2010, retornou agora para salvar a série, que devido à pandemia da COVID-19 e ao péssimo desempenho de Chris Chibnall, o showrunner anterior, recebeu carta branca para renovar a série. Davies já declarou que o que virá a partir de 2024 já deve ser considerada uma terceira, novíssima fase da série.
E ele não está exagerando: a BBC entrou num acordo de coprodução inédito com a Disney Plus, que já começou a vigorar em dezembro, com três especiais de fim de ano feitos para oficializar a transição entre doutores.
No último episódio com Jodie Whittaker, aconteceu uma coisa inédita na série: ela se regenerou de volta no décimo doutor, vivido por David Tennant.
No último especial, exibido pela Disney Plus no dia 9 de dezembro, somos apresentados ao novo Doutor, Ncuti Gatwa. Ncuti (pronuncia-se “xuti”) Gatwa é escocês de ascendência ruandense, e fez sucesso como Eric, o melhor amigo gay do protagonista Otis na série Sex Education, da Netflix.
O ator será o primeiro negro a interpretar o doutor, e, ao que tudo indica, o primeiro de sexualidade fluida – algo que já é sugerido como sendo natural do Doutor no episodio antes de seu aparecimento e, convenhamos, nada mais normal para um alienígena.
Outros mundos são possíveis
No começo deste artigo eu disse que nunca vi Doctor Who na infância. Mas esta série sempre me provocou uma sensação de nostalgia que até bem pouco tempo atrás eu não sabia definir. Recentemente, assistindo aos episódios especiais de fim de ano, finalmente entendi o porquê: na verdade, eu vi Doctor Who na minha infância. Só que não literalmente.
Se a série não foi exibida por nenhuma emissora brasileira naquela época, tivemos muitas outras séries britânicas de ficção cientifica passando no Brasil simultaneamente com Star Trek: as mais populares eram Seres do Amanhã, UFO e Espaço 1999. Com temas que variavam de mutantes tipo X-Men a invasões alienígenas, essas séries não procuravam imitar os produtos estadunidenses, mas tinham um charme especial, uma atenção maior aos diálogos e menos violência que as séries da ex-colônia. Tudo isso, de certa forma, ajudou a pavimentar o caminho para a chegada do Doutor a estas praias. Essas séries nos mostraram que outros mundos eram possíveis – e com eles outros futuros.
Durante um tempo eu me perguntava como teria sido minha infância se Doctor Who tivesse sido exibido no Brasil nos anos 1960 e 1970, ao invés de Star Trek? Com os especiais de fim de ano – que anunciaram o começo de uma nova era, onde os episódios da série de agora em diante serão coproduzidos e exibidos internacionalmente pela Disney Plus – eu já tenho a resposta: a cada episódio que assisto (e atualmente estou fazendo uma maratona bem lenta dos episódios clássicos pelo serviço de streaming Britbox – estou no Segundo Doutor, Patrick Troughton, que surge em 1966, ano do meu nascimento) é como se eu imediatamente me transportasse para a infância, numa espécie de nostalgia retroativa. Que seja: outros mundos são possíveis – e outros passados também. [Webinsider]
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Fábio Fernandes
Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.