Desde o momento em que começaram as preocupações mais do que justificadas com a preservação de filmes dos catálogos dos principais estúdios americanos, um dos principais destinos desta recuperação foi a edição de filmes em mídia de vídeo.
Ao longo do tempo foram usadas máquinas de telecine cada vez mais sofisticadas, introduzidas já na época do videodisco. Com o emprego da telecinagem digital abriu-se finalmente a porta para as edições de vídeo de alta resolução, realizadas após o lançamento da respectiva mídia.
O leitor poderá entender como funciona este processo. Existem dois tipos de procedimento a serem executados, resultantes do exame do estado do negativo de câmera ou das suas cópias de segurança monocromáticas: o primeiro é o da preservação, caso os elementos em película e áudio estejam em bom estado. A preservação nada mais é do que uma cópia pura e simples deste material. O segundo procedimento é a restauração, a partir do momento em que se verifica a deterioração do material arquivado. O esforço de restauração implica não só no custo do trabalho de arquivistas, mas também nos processos de laboratório, sejam eles fotográficos (analógicos) ou em estações de trabalho apropriadas.
A quantidade de recursos digitais hoje em dia possibilita a restauração quase completa do material deteriorado. E depois da restauração feita, o resultado do trabalho pode enfim ser copiado para um intermediário digital (DI) e deste para o fim que se deseja.
Neste particular, um dos benefícios da implantação de projetores digitais nas salas de cinema é justamente poder aproveitar uma cópia em DCP e projetá-la na resolução desejada. Não por coincidência, é exatamente isso que se está fazendo lá fora, e eu já vi anúncios deste tipo de iniciativa no multiplex da esquina, a ser exibido em algum momento do futuro próximo.
A Warner Archive Collection
Não é só a sala de cinema que carece de material clássico e de bom nível. Foi por causa do usuário doméstico e principalmente por causa daqueles que vem se dedicando a este hobby, o do home theater, que os estúdios se lançaram nesta empreitada.
O único problema, neste caso, é a decisão de tornar todo o material de acervo recuperado disponível para a pronta exibição dentro de casa. Eu me lembro, da minha época de participante do Home Theater Talk, das várias campanhas e brigas pelo relançamento de filmes em DVD. Numa dessas brigas, um executivo da Paramount declarou em público que não gostava do filme musical inglês “Half A Sixpence” (no Brasil, “A Moedinha do Amor”, exibição em 70 mm que inaugurou o Cine Bruni Tijuca em 1968) e por causa disso o filme jamais seria editado em disco. Mas as campanhas continuaram, e se acirraram mais ainda quando arquivistas descobriram as trilhas sonoras estereofônicas originais do filme. Até então só existiam cópias mono em VHS, em plena era do DVD. E aconteceu de este executivo ser demitido, e muita gente na época comemorou, acreditem se quiserem. Resultado: o DVD saiu, com som estereofônico e tudo!
Não sei se a lição se aplica, mas a Warner Brothers vem, de tempos para cá, tomando a iniciativa de oferecer alguns títulos de catálogo, que poderiam de outro modo serem considerados de “baixa rentabilidade”, a usuários interessados. A tal ponto, que alguns destes títulos são duplicados artesanalmente, na forma de um DVD-R, e que eles chamam de DVDs “replicados”. Via-de-regra, o DVD-R só tem o filme, sem separação de capítulos ou legendas, o que é um absurdo para o colecionador, mas pelo menos a cópia do original é perfeita, dentro das limitações da mídia.
Bem, alguma coisa positiva deve ter saído desta iniciativa. Neste momento, existem vários títulos de catálogo editados em Blu-Ray, com imagem não só em alta definição muito bem transcrita, mas com uma taxa de compressão em vídeo bastante baixa. Além disso, estão disponíveis legendas em inglês do tipo SDH (“Subtitles for the Deaf or Hard of hearing”), que são legendas construídas para indivíduos incapacitados auditivos, o que é meritório.
Lamentavelmente, para nós brasileiros, até agora não existem, que eu saiba, versões locais, então o jeito é importar. E importar eu fiz, depois de achar duas preciosidades dos arquivos da M-G-M, descritos mais abaixo.
O catálogo CinemaScope da M-G-M da década de 1950
É fácil assistir a um filme CinemaScope da década de 50 e saber se ele pertence ao início deste formato: a relação de aspecto da tela é necessariamente 2.55:1 ou bem próximo disso. Naquela época, as cópias enviadas aos cinemas continham a imagem anamórfica em 35 mm, junto com 4 trilhas de som estereofônico, três canais na tela e um surround mono.
Mas, houve uma preocupação dos estúdios para o fato de que nem todos os cinemas poderiam projetar estas cópias como deviam. E explico por quê: para exibir filmes em CinemaScope em um projetor 35 mm bastaria trocar a lente para um modelo adequado, e depois trocar a tela por uma compatível. Faltariam, evidentemente, instalar as cabeças magnéticas (que ficavam no topo do projetor) e os respectivos circuitos de amplificação. Como este último recurso, o do som estereofônico, implicava em custo elevado, os estúdios ajudavam os exibidores distribuindo cópias em banda ótica mono!
Há algum tempo atrás eu tomei conhecimento de que os cinemas Metro cariocas foram todos equipados com projetores Simplex com cabeças estereofônicas Westrex, e mais recentemente eu li matérias de preservacionistas que me fizeram acreditar que as cópias de filmes em CinemaScope da M-G-M com banda magnética nunca foram de fato distribuídas para este circuito, até mesmo em solo norte-americano. O que, aliás, explica porque eu não me lembro de ter ouvido nada estereofônico, nem mesmo Perspecta, em nenhum dos três Metros cariocas.
Isto para nós significa estar podendo assistir hoje dentro de casa a uma apresentação inédita das obras originais em CinemaScope, rodadas pela M-G-M!
A mudança de qualidade em som e imagem é de cair o queixo!
Talvez sensibilizados pela base de fãs, a Warner lançou dois musicais em CinemaScope do catálogo da Metro, dentro da coleção Archive Collection:
Hit The Deck (no Brasil, “Marujos e Sereias”) é um musical ameno, com tema bastante paroquial e de valores ultrapassados, mas que não ofende ninguém. Quem já assistiu os vários segmentos da série “That’s Entertainment”, lançada a partir da década de 1970 nos cinemas, conseguiu assistir ao trecho do filme onde o grupo canta “Hallelujah”, da sequência final do filme, vista na captura abaixo. Quem é fã de jazz e tem em casa a gravação antológica “After Midnight” com o Nat King Cole Trio, irá se lembrar de “Sometimes I’m Happy” e “I Know That You Know”.
O filme estrela o cantor Vic Damone, bastante popular nas décadas de 50 e 60, e cujo envolvimento em projetos em CinemaScope é maior do que a gente imagina. Damone emprestou a sua voz para a interpretação da canção tema do filme CinemaScope da Fox “An Affair To Remember” (no Brasil, “Tarde Demais Para Esquecer”), durante os créditos de abertura. Sua voz é ao mesmo tempo bastante suave, mas bem empostada, com razoável alcance de agudos. Em uma gravação de boa qualidade como esta apresentada nestes filmes é possível notar a superioridade do áudio gravado para o cinema, quando comparado ao áudio fonográfico do mesmo período.
Com a habitual inserção de musicais da Broadway nas produções de Hollywood, não é de se admirar que Kismet seja um filme um tanto ou quanto teatral. Aqui também o som alcança níveis de excelência. A voz marcante de Howard Keel, presença constante dos filmes musicais do estúdio, nos mostra a capacidade do sistema de gravação usado para o registro do tom baixo-barítono do cantor. Eu tive a chance de assistir o clássico musical “Sete Noivas Para Sete Irmãos”, na versão em 70 mm no cinema, e posso garantir que o resultado do disco da Warner é tão bom ou melhor.
Na realidade, a dinâmica conseguida na transcrição da trilha sonora em ambos os discos é resultado da limpeza do sinal de fonte, associado provavelmente à boa conservação do material gravado em fita magnética.
A música de Kismet é baseada na ópera Príncipe Igor, composta pelo russo Alexander Borodin. Do trecho chamado Danças Polovtsianas foi extraída a canção-tema adaptada para a língua inglesa e que fez grande sucesso, com o nome de Stranger in Paradise, que é cantada na cena mostrada acima.
Preservação de uma apresentação que parece nunca aconteceu
Nós hoje reunimos em casa algumas das condições ideais para a exibição e apreciação de um filme. Se o usuário tem um bom ambiente e/ou usa os critérios corretos para acertar a reprodução do áudio, ele estará dando um grande passo nesta direção.
Tudo se deve ao fato de que os Laboratórios Dolby, ao desenhar o decodificador para o Dolby Digital, seus projetistas foram obrigados a contemplar as condições de audição dentro de casa. E, ao fazê-lo, previram o correto ajuste e balanço de todos os componentes da cadeia de alimentação, principalmente no tange à escolha das diversas caixas acústicas. E depois, em cima deste mesmo propósito, trabalhos em parceria com a THX otimizaram mais ainda estes ajustes, direcionados a certos tipos de equipamento.
Se levarmos em consideração o fato singular de que na mídia de alta resolução o padrão de imagem e áudio segue critérios e formatos pré-estabelecidos, nós chegaremos inevitavelmente à conclusão de que temos em casa um potencial de qualidade relativamente mais robusto do que nas salas de cinema. Isto é particularmente verdadeiro para as trilhas de áudio, capazes de atingir múltiplos canais com até 96 kHz de amostragem e 24 bits de resolução!
A mídia Blu-Ray permite que tais objetivos sejam alcançados no ato da transcrição e da geração da matriz que resultará no disco prensado.
No caso específico desses dois discos anteriormente comentados, os valores de transmissão de dados alcançam níveis de bitrate acima dos habituais, e cujos valores nominais medidos são de 37.92 Mbps (Megabits por segundo) para “Hit The Deck” e 34.97 Mbps para “Kismet”, segundo o site Blu-Ray.com. Eu não posso garantir que estes dados estão corretos para valores nominais, mas durante a reprodução dos discos os valores que eu li estão na sua maioria dentro destas duas faixas.
Na prática, isto significa que nós podemos hoje assistir a uma apresentação dos dois filmes com o som que nunca teríamos ouvido nos cinemas. Pode até parecer sacrilégio, em se tratando dos excelentes cinemas Metro, mas é óbvio que banda magnética nenhuma chegaria aos níveis de dinâmica e ausência de distorção que uma trilha sonora limpa e digitalizada com codecs de alta resolução chega. Ainda mais que nenhuma das salas Metro sequer exibiu estes filmes a não ser com o uso da banda ótica mono, limitada em frequência e com baixa relação sinal/ruído.
Estes codecs, DTH HD MA e Dolby TrueHD reproduzem o som do estúdio sem nenhuma perda. É, portanto, a qualidade de áudio mais próxima da fonte!
Tudo isso, e mais ainda com a chegada de telas de TV cada vez maiores, nos leva a apreciar filmes de arquivo como esses, outrora produzidos com cuidadoso esmero técnico. De nada adiantariam as inovações no processo de gravação estereofônica da M-G-M, se o som não tivesse o impacto auditivo que estes filmes merecem, não só por serem musicais de luxo, mas porque o estúdio tinha e usava muito bem excelentes arranjadores e regentes, para acompanhar cantores de nível impecável.
Comparativamente, o cinema estava muitos passos à frente da grande maioria dos estúdios de gravação de música da época, e se alguma coisa se pode tirar de “Hit The Deck” e “Kismet” nas suas apresentações atuais, é de que esta observação sobre a diferença de qualidade nunca foi tão verdadeira! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.