Arte retalhada: filmes e quadros se tornam Frankensteins

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Interessante a repercussão negativa sobre a obra de arte (Ecce Homo) “restaurada” pela senhora espanhola Cecília Giménez. Mesmo alegando boa vontade, o ato dela foi digno de vandalismo e parece que quase todos concordaram nesta questão. Mais interessante ainda é notar como de repente o mundo tornou-se mais culto, e num passe de mágica todos entendem de arte a ponto de criticar severamente a atitude inocente da pobre idosa, incapaz talvez de entender a dimensão do seu estrago.

Pobre mesmo nesta história é a mídia audiovisual. Longe de ser considerada arte por este mundo, incompreendida, mas igualmente mutilada. Hoje temos um mar de mutilações fílmicas: cortam-se filmes para exibição numa sala de aula, para entrar em um videoclipe, para sair do seu contexto e entrar em uma festa de aniversário.

É bem verdade também a teoria da experiência da reprodutibilidade, principalmente neste campo audiovisual: nenhuma experiência é igual a de assistir o filme no seu contexto original e qualquer outra mídia ou conversão será sempre um pastiche do original e não o próprio. Assiste-se apenas a informação do que foi o vídeo original, mas sempre existe a falsa sensação de que se trata da mesma experiência, quando na verdade não é.

Talvez nunca devêssemos restaurar filmes. Afinal, seus sinais do tempo são como machucados: cicatrizes que contam histórias também e o testemunho de que aquele filme está vivo, viveu muito para nos contar sua história e não nega sua idade. Restaurá-lo pode soar muitas vezes como uma plástica mal feita, então uma imperfeição aqui ou ali às vezes lhe confere não só a idade, mas o respeito.

Obviamente estamos falando de pequenas imperfeições, pois o filme, sendo uma das mais efêmeras expressões do nosso século, tem quase sempre a prerrogativa de não ficar simplesmente velho e sim desaparecer.

No mercado doméstico então, é inevitável: películas carentes de projetores, Super8 com bordas cada vez mais escuras ameaçando cobrir todo o conteúdo, apagando sua memória para sempre; VHS que vão criando fungos e telas que exibem no lugar das cores originais outras roxas e amarelas, chuviscos insistindo em aparecer nos momentos mais importantes; fitas Mini-DV com seus blocos cor de rosa e sons inaudíveis, danificados irreversivelmente.

Novos tempos, velhos modelos
Por outro lado, existe uma espécie de ode a estes riscos e chuviscos e entusiastas lotam as lojas de aplicativos e filtros virtuais para adquirir “efeitos de filme velho” a filmes que acabaram de criar. Talvez para lhes conferir nostalgia, um frescor que lhe ateste importância. Outros vão além através de técnicas como a LomoKino: filmando amadoramente em 35mm, revelam seus filmes e o telecinam, tentando reviver a experiência perdida de 1895. Tudo isso para instaurar velhas feridas a coisas novas.

Montagem de trechos de filmes, apropriá-los para si, transformar aquela cultuada série em um videoclipe. Tudo isso normalmente é tratado como simples cultura fandom. Faz parte da nova experiência coletiva, atestada principalmente pela anarquia da internet.

O videoclipe encomendado para o Bar Mitzvah do menino Nissim Ourfali, que saiu de sua festa e invadiu o YouTube é um exemplo disso. Sem o consentimento de seus “donos”, hoje este videoclipe dispõe de milhões de visualizações, transformou-se no novo “meme” da internet brasileira, recebeu compartilhamentos, mutilações e “homenagens” prestadas de todo o tipo.

E hoje o prosumer audiovisual não se contenta apenas em assistir, quer participar. E um destes prosumers criou em tempo recorde uma paródia deste clipe, usando vários trechos do seriado Um maluco no pedaço (The Fresh Prince of Bel Air, 1990). A série foi mutilada, suas cenas foras invertidas e completamente deslocadas do seu contexto apenas para atender um capricho engenhoso de Gabriel Xavier, que dispôs de horas para buscar as melhores imagens de várias temporadas exibidas, editou, colou e disponibilizou o vídeo no YouTube, recebendo quase de instantaneamente milhões de visualizações e ‘curtidas’ (sendo isto nosso melhor termômetro-contemporâneo-social).

No que difere esta intervenção do jovem Gabriel ao gesto da senhora Cecília? Talvez só o suporte. A vontade de fazer o bem foi idônea para ambos. E com certeza, tomamos por estes exemplos uma dimensão e critérios atualizados do que consideramos que deve ou não ser preservado. Pobre dos filmes. No dia em que não dispormos mais de Um maluco no pedaço, assim como já não temos à mão vários outros seriados e filmes, talvez reste unicamente o videoclipe de Nissim Ourfali para consolar nossa memória audiovisual.

[Webinsider]

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Marcelo La Carretta (@lacarreta) - Professor universitário, ilustrador, chargista, artista gráfico e videocompositor. Possui o site www.lacarreta.com.br.

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