CDs: a volta dos que não foram

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Eu tenho ouvido e lido constantemente afirmações de pessoas sobre o desaparecimento e morte iminente dos CDs. Quando ela vem de amigos, a ideia quase me contamina, mas depois eu me recupero. E preciso, porque já se passaram mais de duas décadas desde que eu comecei a lutar para recuperar a minha coleção de Lps em formato digital, algumas vezes tendo que remasterizar e limpar este material dentro de casa.

Uma grande parcela desta luta me faz consciente hoje que a perda da coleção irá apagar a maior parte da minha existência musical desde os tempos da minha adolescência, quando defini o meu gosto e preferências.

A conversa com os amigos será sempre prazerosa, a despeito da diferença de opiniões, quando elas existem. O que irrita mesmo é entrar em uma revenda, e ouvir um monte de sandices. Na última vez que isto aconteceu, eu estava em um desses balcões de um grupo de lojas de informática e ao perguntar sobre a venda de um estojo de CD duplo, o cidadão vem para cima de mim questionando o tempo que eu estou perdendo com isso. Ninguém mais ouve CD, segundo ele. Para que ouvir CD, se a pessoa hoje coloca milhares de fonogramas em um mísero flash drive, e note que todos os drives sólidos vendem a preço de banana hoje em dia.

Tudo isto me remete à noção de que eu me tornei um usuário “dinossáurico”, e vivo na idade da pedra lascada. Ou não? Se eu estou assim, estou acompanhado de uma parcela significava de usuários igualmente primitivos, pertencentes ao resto do mundo. E então eu me pergunto se a perda da realidade é verdadeira ou falsa. A pergunta, me perdoe o leitor, é justa por causa da minha base de formação científica. E se eu não posso lançar mão e interpretar dados estatísticos de mercado, o jeito é observar o que está se passando.

Notem que a realidade tecnológica e artística do Brasil é completamente distinta, para melhor ou pior, do que o resto do mundo. Nós fomos pioneiros em HDTV aberta, mas, no entanto, a coisa cultural como um todo descambou para baixo vertiginosamente depois da última ditadura. Não que não haja abundância de shows e espetáculos, visita de astros de fora, etc., mas infelizmente o nível cultural do brasileiro médio é muito baixo, culpa da decadência da formação de base e da miséria financeira que assola muitas comunidades.

Por todos estes motivos, eu sinceramente não me atreveria em colocar a situação do país dentro de um contexto qualquer de análise de mercado de produtos de música. A solução é olhar o mercado lá de fora. Com a economia do dito primeiro mundo por um fio, duvido e faço pouco, que produtos de música sejam lançados de forma aventureira, e que aquelas pessoas estejam lançando discos por puro altruísmo. Eu teria que ser muito ingênuo, para achar que produtos deste tipo não almejam lucro, como qualquer produto.

 A realidade lá fora é outra

Eu compro discos regularmente na América e na Europa. Neste último mercado em particular, me chama a atenção um momento das gravadoras onde uma recuperação de matrizes das décadas anteriores, com a inclusão de títulos de álbuns que nunca viram a luz do dia em qualquer formato digital. E não só isso: as gravadoras estão jogando discos no mercado na forma de coleções de bom porte, bom nível e a preços abordáveis. No passado recente, coletâneas deste tipo (Mosaic, por exemplo) se esgotaram e valem pequenas fortunas no mercado paralelo.

Atualmente, não é mais preciso cavar fundo, para achar algum título de interesse, editado em CD. Na Amazon-UK, de quem recebo mala postal, me chamou a atenção o lançamento de edições da Decca contendo a recuperação do catálogo de gravações analógicas do passado distante, incluindo principalmente exemplares dos métodos de captura da gravadora, batizados na época como FFRR (“Full Frequency Range Recording”), que nada mais é do que a alta fidelidade como a conhecemos na década de 1950.

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São 54 discos, só nesta edição, cobrindo um período de gravações de música clássica entre o fim da década de 1940 até aproximadamente o meio da década seguinte, em plena era estereofônica, da qual a Decca foi pioneira.

E se o ouvinte de clássicos ainda quiser ir mais a fundo, poderá encontrar na caixa da edição do centenário da Deustche Grammophon com a Filarmônica de Berlin outros cinquenta discos, cobrindo um período ainda maior (1913-2013), como o título sugere.

Aqui é importante lembrar que se trata de gravadoras que contribuíram com a evolução da gravação e reprodução do áudio durante décadas. A Deustche, por exemplo, foi pioneira na captura de som com microfones modificados, de maneira a completar a operação de conversão analógico-digital (ADC) e alimentar a saída diretamente em um console de mixagem capaz de receber e conduzir todo ele no mesmo ambiente. A tecnologia começou a dar frutos já em 1991, e foi chamada de “4D”. O uso de microfones digitais ganha depois força fora da Alemanha, como por exemplo, em sessões da Sinfônica de Londres, nos estúdios da EMI.

O objetivo aqui é abreviar a conversão do som capturado, de natureza analógica, para o ambiente digital, e só convertê-lo de volta no momento da reprodução. O leitor mais atento desta coluna poderá se lembrar de algumas das vicissitudes técnicas decorrentes de se manter o sinal de áudio em ambiente analógico anteriormente mencionadas.

Para fazer um Lp, por exemplo, a partir de fita master analógica, é preciso passar por nada menos que quatro etapas de transdução de energia: a primeira, ocorre na captura da onda sonora (pressão de ar) no diafragma do microfone, que transduz em energia elétrica; a segunda, que ocorre na transformação do pulso elétrico em pulso magnético (processo de registro); a terceira, que ocorre na transformação do sinal magnético em pulso elétrico novamente (processo de reprodução); e a quarta, quando o pulso elétrico é transformado em pulso mecânico, na bobina da cabeça de corte do acetato, usado depois para fazer o elepê. Se nós computarmos ainda a reprodução doméstica, então é preciso contabilizar a transdução da cápsula do toca-discos, que transforma de volta energia mecânica em impulsos elétricos, que recompõem a onda musical e são então amplificados.

Em todo processo de transdução de energia há uma perda de rendimento, inerente ao processo analógico da transformação de um tipo de energia em outra. A Física do ensino básico nos mostra que toda máquina tem um rendimento, calculado e definido. A máquina ideal deveria ter um rendimento de 100%, mas na prática se sabe que parte da energia perdida se dissipa na forma de calor, este mesmo que nos obriga ainda a usar enormes dissipadores quando se instala, por exemplo, uma CPU de computador em sua placa-mãe.

A digitalização da informação anula a necessidade da transdução de energia, exceto no momento da captura e da reprodução. Historicamente, pesquisadores se esforçaram em tentar evitar ao máximo perdas em ambos os lados, motivo pelo qual foram desenvolvidos os microfones e caixas acústicas digitais. Infelizmente, o custo deste esforço se mostrou excessivo no lado do consumidor e assim hoje em dia a estratégia prevalente é manter o sinal em ambiente digital, por HDMI ou equivalente, desde o reprodutor até o decodificador externo, Dali para frente, o sinal pode ser convertido (DAC) e ir direto aos estágios de amplificação, se o usuário assim o desejar. Se não for o caso, ainda é possível estender o sinal digital para os estágios de manipulação (bass management, etc.) e depois convertê-lo.

Com o contínuo avanço dos estágios de decodificação, o som do CD é mantido integralmente, sem qualquer tipo de artefato, com relativo baixo custo de implementação. Eu tenho discos de mais de vinte anos que tocam com notável perfeição, e isto evidencia que os problemas anteriores da reprodução de áudio digital não estavam ligados nem aos estágios de captura nem de armazenamento!

Se as gravadoras praticamente afundaram o DVD-Audio e o SACD, mas mantiveram o CD, se deve ao baixo custo de fabricação da mídia e à alta disponibilidade de meios de reprodução. Não só isso, mas de posse de um CD, e de um computador ou media player com acesso à internet, é possível a qualquer um converter o conteúdo em algum formato de interesse (MP3, AAC, etc.) com as informações da gravação original preservadas.

A disponibilidade de títulos é vasta

No mercado europeu atual, a quantidade de compilações é impressionante. No campo do jazz moderno, que eu às vezes, sigo de perto, são oferecidos mais de três discos originais ou CD duplo ou triplo, dependendo da duração de cada álbum.

É a tal estória: usa CD hoje quem quiser, mas o ouvinte que tem bom senso, e tem um equipamento de bom nível, não poderá se queixar da falta de recursos. Claro que existirá ainda uma parcela de material perdido em muitas gravadoras que poderá nunca ser recuperada. Sem falar nas gravadoras que fecharam ou impediram a reciclagem do seu material de arquivo.

A riqueza de gravações de bom nível técnico ou artístico ainda em existência, junto com os meios de reprodução que não custam mais os olhos da cara, servirá de fonte inesgotável de edições para aquelas empresas que se interessarem no esforço. Até agora, do que eu já comprei e ouvi, nota-se o cuidado da transcrição e assim merece o esforço do usuário em adquiri-las fora do país. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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Uma resposta

  1. Paulo, a lei da entropia é inevitável. O mercado lucra com ela. O ótimo não acaba nunca. O bom é da maioria. Não pare de escrever.

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