Conteúdo gerado pelo usuário e desintermediação

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Através da digitalização da informação e, em consequência, da convergência das mídias e seus protocolos de comunicação, criar nunca foi tão simples. O cidadão produz um vídeo ou um texto com a mesma facilidade com que o contempla ? através de câmeras digitais, laptops, desktops populares, filmadoras, toda uma parafernália tecnológica cada vez mais próxima financeira e operacionalmente do indivíduo comum.

A internet fornece o espaço necessário para que todo esse conteúdo apareça e multiplique-se e ainda incentiva nova produção.

Este é um belo discurso se analisarmos superficialmente apenas a questão quantitativa.

A ideia de acesso público e democrático e da produção personalizada de conteúdo seria perfeita se não houvesse outro lado a se estudar: a qualidade. O livro ?O Culto do Amador?, de Andrew Keen, é bastante útil para se pensar sobre a qualidade do conteúdo na rede. Sua leitura serviu, para mim, como um ótimo exercício de contra-argumentação das críticas à internet.

A obra trata basicamente do conteúdo feito e disseminado por amadores e como isso está afetando nossa economia e vida social.

Apesar de ser embasado em pesquisas, o texto é cheio de preconceitos e, acima de tudo, recalque ? algo aconteceu com Keen que o fez mudar completamente de opinião.

Entretanto, suas observações são interessantes, embora preconceituosas e exageradas, e levantam questões básicas.

O desejo pela visibilidade encontrou nas novas tecnologias de informação e comunicação um terreno farto para o culto ao ?eu ?. Todos querem aparecer, exteriorizar opiniões e criações. Seja através do Orkut, blogs ou Flickrs da vida, o propósito sempre será de se autopromover. O Youtube (alvo fácil de Keen) representa toda essa cultura do amador: vídeos feitos por amadores e para amadores. No entanto, uma crítica que o autor faz, por exemplo, é o fato de nem sempre a produção ser feita por indivíduos comuns.

Ele chama atenção aos vídeos falsos, de autoria de profissionais que se fazem passar por amadores, com propósitos publicitários. Esta enganação o desagrada, algo que não acontece na mídia tradicional. Lá, para ele, tudo é mais claro: o conteúdo é feito por profissionais, revisado por especialistas e publicado de forma objetiva, concreta e transparente. Para mim, esta opinião é bastante infantil.

Achar que os jornais e radiodifusores possuem conteúdo de qualidade por ter sido feito por profissionais é risível. Alguém realmente acredita que não há manipulação na mídia tradicional?

Vamos a exemplos. Na TV, temos o Big Brother Brasil. Não é difícil imaginar que de alguma forma o programa é manipulado, há edição tendenciosa ou orientação da produção sobre os participantes. Em jornais, para usar algo mais concreto, no dia 21 de outubro de 2009, foi publicada uma notícia sobre um jovem, portador de deficiência mental, que teve seus dentes extraídos desnecessariamente no dia 24 de setembro.

Por que, então, publicar uma notícia sobre algo que ocorreu quase um mês antes? Na página seguinte, havia uma propaganda ocupando mais de 80% do espaço sobre OdontoPrev e Bradesco Dental. Coincidência? Acho que não.

O que tem que ficar claro é que tanto na mídia tradicional quanto na internet, o indivíduo está exposto a interesses pessoais, políticos e mercadológicos. Qualquer comercial, independente da mídia, visa ao convencimento. Se o McDonald?s pagou secretamente para uma produtora publicar um vídeo viral, mas este vídeo é interessante e divertido, que me importa se ele possui propósitos publicitários? O BBB é falso e mesmo assim é assistido; as sinopses dos capítulos das novelas saem no jornal de domingo, mas mesmo assim as pessoas acompanham durante a semana. Acreditar que um jornalista, ou um profissional de mídia qualquer, é objetivo em seu trabalho é iludir-se com a ideia de uma utopia ética ? não há como fugir de interpretação, seja na internet ou na mídia tradicional.

Forjado ou não, o que o indivíduo quer é entretenimento barato.

O discurso de Keen não está de todo errado ao criticar o conteúdo produzido por amadores. É muito diferente quando se produz com o desejo de aparecer publicamente e quando a preocupação é criar algo com aceitação pública. Além disso, fazer simplesmente não gera qualidade. Um garoto que publica um vídeo no Youtube não é um diretor; da mesma forma que um blogueiro não é um acadêmico ou um jornalista.

Nestes casos, ao ler um artigo, uma notícia ou ver um vídeo, tem-se que ter em mente a questão da experimentação ? experimentar novas informações, opiniões, mas saber colocá-las, a princípio, no devido lugar.

O amplo acesso ao conteúdo amador (e pretenso profissional) diminuiu a importância do intermediário, do caça-talentos. A indústria fonográfica já sofre com isso, pois um número crescente de músicos consegue expor seus trabalhos sem precisar de uma editora ou gravadora por trás. Teoricamente, a oportunidade aparece para todos.

Com ou sem intermediários?

A visão de Keen é completamente contrária,para ele ?o talento é construído pelos intermediários. Se desintermediarmos essas camadas, poremos fim ao desenvolvimento do talento também?. O público amador é incapaz de escolher o que é bom e o que não é (justifica através da teoria de que as massas não são sábias). Infelizmente, mais uma vez, o autor peca pela revolta. Na realidade, o amador não pretende, ao escolher o que é de qualidade, definir os blockbusters; o que ele quer é compor seu acervo cultural com produtos satisfatórios para si.

Hoje, temos a oportunidade de avaliarmos nós mesmos o que estamos acessando, a seleção é feita de acordo com o que nós queremos e não de acordo com o que um especialista acha que será de bom gosto ? uma forma mais honesta.

O fato de a produção de conteúdo estar nas mãos de todos (o consumidor também é autor) gera um crescimento da quantidade de informação, somada ao crescimento do número de internautas dispostos a criar. A tecnologia digital, através de seus protocolos de comunicação e compressão de dados, criou o ambiente perfeito para o armazenamento e recuperação da informação.

Em 2008, o volume de informações digitais atingiu 453 exabytes, 61% a mais que a quantidade de dados digitais calculados em 2007. Logicamente, isso nos faz acreditar em um mundo criativo, comprometido com a produção e disseminação da informação. Não é tão simples assim. O número de weblogs registrados no Technorati (buscador de blogs) desde 2002 ultrapassa 133 milhões. Destes 133 milhões, quantos realmente produzem conteúdo próprio?

Control C, Control V

Uma prática comum na internet é o famoso ?ctrl C ctrl V ? (copia aqui e cola a mesma coisa ali) ? neste caso, a cópia nem precisa ser exata, pega-se a ideia e muda-se o suficiente para parecer nova produção. Com a tecnologia do mashup, não é nem mais necessário copiar e colar, basta acrescentar o código de programação que o conteúdo aparece automaticamente.

Com isso, a quantidade de informação não reflete relevância, mas abundância desnecessária e duvidosa. Boa parte do conteúdo é lixo pessoal (lixo no sentido de que não acrescenta em nada à massa que não conhece o autor daquele conteúdo) ou cópia ? a verdadeira criação fica nas mãos de poucos que, em sua maioria, ainda são os profissionais e especialistas.

Este pensamento ?copiador?, acomodado, aliado à formação de comunidades e grupos de afinidade, desestimula a discussão. A web, nestes casos, ?é usada para confirmar nossas próprias ideias e nos aliar a outros com a mesma ideologia (?) as únicas conversas que queremos ouvir são as que temos com nós mesmos e com os que se parecem conosco.?

Como exemplo, podemos pegar uma comunidade sobre o Fluminense no Orkut: os integrantes discutem sobre temas relacionados ao seu time; todos, teoricamente, são tricolores e, portanto, as conclusões chegadas ao fim dos debates são completamente influenciadas pela paixão e, ainda por cima, limitadas, já que os participantes possuem opiniões parecidas.

As poucas informações verdadeiramente apuradas e legítimas se perdem em um mar de ?achismos? e erros, que se multiplicam em fóruns de discussão sobre a existência de outras correntes de pensamento ? com isso, muitos de nós possuímos opiniões fortes, baseadas neste suposto acesso a uma rica variedade de informação, apesar de, na maioria, sermos completamente despreparados intelectualmente.

A facilidade operacional de cópia, aliada à cultura livre e cooperativa que fundou a base da internet desde sua criação em meados da década de 60, gera problemas maiores que a simples repetição: plágio e pirataria (repetições não autorizadas com ou sem ganho financeiro).

Keen defende a ideia de que a pirataria está acabando com a economia e com as mídias tradicionais. Obviamente, a pirataria e o conteúdo feito pelo usuário impactam diretamente no consumo dos conteúdos tradicionais, mas não a ponto de exterminá-los, como afirma. Como exemplo, ele usa o fim das lojas de CDs: lamenta-se pelo fato da pirataria musical acabar com um espaço genuinamente tradicional. Claro que sempre haverá baixas no processo, seja lojas de CD, locadoras de DVD ou jornais em papel, no entanto este não deixa de ser um passo importante para a evolução da comunicação e do comportamento.

As indústrias terão de se adaptar, mesmo que isso cause diminuição nos lucros (melhor ganhar pouco que não ganhar nada).

Além da valorização da própria especialização, a crítica à internet e às novas tecnologias ainda se baseia na nostalgia.

Saudades das lojas de CD

Lembrar-se de um tempo em que as coisas deram certo faz bem, o problema está quando não se quer sair deste cenário. Keen fala sobre o fim das lojas de CDs e dos livros em papel como se fossem fundamentais para qualquer ser humano. Eu gosto destes lugares, pois cresci com eles, mas e aqueles que já nasceram em uma época virtualizada? As crianças de hoje não passaram pelas instituições tradicionais como únicas fontes de informação e, assim, não sentirão falta delas como nós.

A necessidade da existência da mídia tradicional ainda está fortemente vinculada à manutenção do monopólio da informação.

A mídia tradicional, após parar de reclamar sobre os prejuízos do conteúdo amador e da livre distribuição da informação, percebeu que isso pode ser mais uma ferramenta lucrativa. A adaptação veio através do uso da força de trabalho barata (para não dizer gratuita ou colaborativa) em benefício próprio.

Quando um programa de TV utiliza imagens do Youtube ou estimula o envio de vídeos está aproveitando a disposição do usuário para ter menos trabalho e custos. Aqueles que ainda reclamam da situação no mundo digital é porque não pararam para pensar em um novo modelo de negócios (preguiça, incompetência ou orgulho? Tanto faz).

O estimulo à produção própria deve atuar junto ao acesso a obras culturais consagradas (aquelas validadas pela mídia tradicional). O acesso à cultura ajuda a produção de qualidade. Um rapaz que assistiu a filmes clássicos ou boas produções com certeza está mais capacitado para produzir um curta-metragem com qualidade que outro que só assiste novelas.

O crescente número de informação de qualidade criará um novo mercado para a produção de conteúdo qualificado; a internet, assim, poderá ser vista como mais uma mídia profissional.

A indústria digital precisa amadurecer e sair do amadorismo ?copia e cola ? para realmente produzir conteúdo. Hoje, ainda, apesar de boicotar, assumidamente ou não, a indústria tradicional, a digital precisa do mundo analógico e suas instituições consolidadas.

Uma banda só faz sucesso realmente (com retorno financeiro por seu trabalho) ao ser ?incorporada ? pela mídia tradicional (gravadoras, emissoras de TV, rádio) ? infelizmente, sucesso de milhões de ouvintes dentro do MySpace não garante continuidade na carreira.

Quero reconhecer que muitas das minhas opiniões não possuem base empírica formal, são apenas reflexos da observação do comportamento e do próprio uso da rede. Acredito que a utilidade de exteriorizar estas observações é propor um debate sobre o caminho que estamos seguindo na cibercultura.

Não há discursos certos; o radicalismo de Keen ou os discursos ciberutopistas não podem ser usados para esconder outras vertentes de pensamento ? o momento é de adaptação das mídias tradicionais, das novas mídias digitais e, acima de tudo, dos nossos próprios comportamentos e crenças.

Afinal, na realidade digital, somos todos amadores. [Webinsider]
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<strong>Gustavo Audi</strong> (gustavoaudi@fiocruz.br) é formado em Rádio e TV pela UFRJ, trabalha com produção de vídeo para a Fiocruz, é especialista em Mídias Digitais pela UNESA e mantém o blog <strong><a href="http://www.simplesdelembrar.wordpress.com/" rel="externo">Simples de lembrar</strong></a>.

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10 respostas

  1. Gustavo e amigos;
    Acho que as redes sociais, blogs, sites e outras “cositas màs” vem quebrar um monopolio do poder da comunicabilidade e “formação de opinião”, que hoje ainda se encontra na mídia tradicional, a qual ou está na mão de grupos políticos, ou na de grupos econômicos e agora mais recentemente, na mão dos grupos religiosos.
    A mídia digital é espaço irreversível do cidadão comum, pois epistemológicamente o ser humano é por natureza “comunicação” social. É o único animal racional e que usa simbolos escritos, falados e não-falados para sobreviver e superar-se. Claro que estamos na fase do oba-oba, onde todo mundo quer aparecer por algum motivo como disse Gustavo, e daí decorre suspeições em relação a seriedade e qualidade. Enfim, o carro da era Collor era uma carroça, e talvez estejamos na era Collor desses conteúdos digitais, comprovando mais uma vez a tese da seleção natural de Darwin: só ficarão os éticos, incondicionais, e que contribuirem de alguma forma para a sociedade do conhecimento.
    Valeu?!! bye bye Silvio Broxado

  2. Caro Gustavo achei brilhante o texto. Como se formam diamantes? A partir do carbono? A altas condições de temperatura e pressão? Assim acredito que pequenos diamantes já tenham surgido em meio a muito carbono e muito carbono ainda vai surgir até que a WEB seja definitivamente consolidada por gerações que já nascerão dentro dela!!

  3. Marcelo,

    Pode até ser ingenuidade minha, mas ingênuo também é achar que há coincidência na produção de conteúdo de massa…

    O importante deste exemplo é mostrar que há manipulação da informação, tanto por parte de amadores quanto de profissionais.

    um abraço

  4. Oi Gustavo

    Acho um pouco ingênuo da sua parte dizer que algum veículo publica uma matéria sobre um banguela porque na página seguinte haverá um anúncio de plano dental… 🙂

    Quem conhece a rotina de uma grande redação (jornal ou revista), sabe que os editores não têm a mínima noção de quais anúncios vão ser publicados – e o pessoal de publicidade não sabe quais matérias vão ser publicadas. Aliás, isso vale para a web também.

  5. Peço desculpas pelo tamanho do texto. Realmente ele ficou bem grande (e olha que cortei 1/3…). Mas o assunto é amplo e não consegui deixar de fora algumas observações.
    O livro do Keen é cheio de pontos questionáveis e, na medida que lia, anotava estes pontos. No fim, fiquei com um texto enorme e com pena de diminuí-lo.

  6. Gostei muito do texto. Gostaria de comentar sobre a desintermediação, mas puxando mais a braza para o meu lado.

    Trabalho com WEB a mais de 5 anos, e posso dizer que ainda falta muito pra me atualizar também como profissional.

    Foi muito lindo quando falaram que a WEB 2.0 vem trazer muito mais a integração com o usuário, onde ele mesmo poderia criar seu conteúdo!.

    Mas a realidade é cruel. O usuário padrão não sabe criar conteúdo de qualidade para seu site. Todas as ferramentas de administração, acessos aos usuários e toda esta parafernália para que? Para que o usuário escreva um texto corporativo como se estivesse conversando com um conhecido no msn.

    Acho que para estes casos deveria sim ter um profissional para a criação deste conteúdo.

    Mas sou totalmente a favor dos microblogs, orkuts, youtubes da vida, pois muitos amadores mostra qualidade de profissionais de alto porte.

    Por isso concordo com o Geraldo, este será um processo lento mas necessário, estas informações inúteis ou de baixa qualidade serão a base para que estes mesmos usuários aprendam como criar um conteúdo de alta qualidade, e a diferenciar o que é ou não é bom.

  7. Gostei do texto. Apesar de um pouquinho longo, levanta a importante questão da relevância X quantidade. Será que vamos encontrar um modelo para mensurar a efetividade de ações em redes sociais e de conteúdos colaborativos de forma menos subjetiva ou quantitativa?

  8. Caro Gustavo,

    assim como na vida real, as coisas no mundo virtual não acontecem da noite para o dia, guardadas as devidas proporções, é claro!

    É como a metáfora das palmas… alguém começa meio devagar até que todos juntos passem a bater juntos no mesmo ritmo. Assim também é na cibercultura!

    O que agora nos parece conteúdo de qualidade duvidosa, mais adiante pode ser encarado como algo interessante sob novos olhares.

    Afinal, a rede é um caleidoscópio que funciona como um emulador frenético de dados. Como tijolos empilhados na construção, um sempre servirá de base para o outro. Isso não é pirataria!

    Nessa mistura desvairada, o valor das marcas perde qualquer sentido diante do novo Deus chamado conteúdo. Não importa o autor…

    Portanto, vivemos em uma nova era onde o que para alguns é puro exibicionismo virtual, para outros é uma questão de vida ou morte.

    Que o digam os twiteiros do Irã!

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