Crepúsculo dos deuses

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Se por acaso um dia eu fosse consultado sobre filmes que merecem ser incluídos em um estudo sério sobre cinema, um dos indicados seria o clássico “Sunset Boulevard”, conhecido entre nós pelo título “Crepúsculo Dos Deuses”.

Produzido em 1950, o filme dirigido por Billy Wilder é amparado em um roteiro co-escrito por Charles Brackett e Donald M. Marshman, Jr., que versa sobre a decadência de uma grande estrela do cinema mudo.

Não por acaso Wilder convocou Gloria Swanson para fazer o papel de Norma Desmond. Atriz clássica e egressa do cinema mudo, Miss Swanson sabia como ninguém dar vida a este tipo de personagem como Norma Desmond.

Porém, como ela mesma contou em entrevista contida nas mídias de vídeo, em momento algum a sua carreira passou perto da situação pessoal da personagem. Gloria afastou-se do cinema, mas aceitou o convite feito para este filme. E, da mesma forma, o ex-diretor Erich Von Stroheim foi chamado para o papel do “mordomo” da ex-atriz Max Von Mayerling. Stroheim, já aposentado, foi um dos principais artífices do cinema mudo americano, ícone reconhecido por praticamente todos os diretores contemporâneos, inclusive e principalmente os europeus de vanguarda.

O filme gira em torno da decadência e obscuridade de uma famosa artista de Hollywood, esquecida pelos estúdios e pelos fãs. Norma Desmond vive na ilusão de que os fãs não a esqueceram, e nunca a perdoaram por ela se retirar da frente das câmeras.

Na trama, o roteirista sem sucesso e cheio de dívidas Joe Gillis (interpretado pelo impecável William Holden) vai parar acidentalmente na casa de Norma. Na sequência do reconhecimento da antiga celebridade feita por Gillis, o roteiro nos mostra um dos seus mais brilhantes diálogos:

Gillis: “Você é Norma Desmond. Costumava aparecer em filmes mudos. Costumava ser grande”.

Norma: “Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”.

Gillis é contratado para ser uma espécie de “ghost writer” de um roteiro medíocre da atriz, que ela acredita ser o seu grande retorno às telas. Em uma das cenas, Gillis é convidado para assistir um dos antigos filmes da atriz. Propositalmente, Wilder exibe na tela o filme “Queen Kelly” (no Brasil, “Minha Rainha”), último filme feito pela dupla Swanson-Stroheim. Durante a projeção, Norma se levanta e recita uma das falas antológicas do filme:

Eles pegaram os ídolos e os destruíram, os Fairbanks, os Gilberts, os Valentinos! E quem eles têm agora? Alguns zés-ninguéns!

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A referência me parece claríssima (“…os Gilberts”), e contam os historiadores que quando Louis B. Mayer, poderoso chefão da M-G-M, assistiu à première de Sunset Boulevard, saiu de lá furioso e xingou Billy Wilder com palavras de baixo calão. L.B., como era conhecido na Metro, vestiu a carapuça. Muitos dos seus antigos ídolos, todos “fabricados” por ele e por seu departamento publicitário, haviam desaparecido. E nesta triste lista inclui-se a lendária Greta Garbo, que se tornou uma pessoa completamente reclusa.

 Apreciação do roteiro

Crepúsculo Dos Deuses mostra aspectos claros da personalidade egocêntrica dos personagens, somada ao oportunismo em aproveitar a chance de explorar a vulnerabilidade alheia para benefício próprio. E neste ponto, todos os envolvidos são culpados!

Mas, acima de tudo, mostra o lado perverso de Hollywood e porque não dizer da mídia em geral, que explora a fama de seus artistas para vender um produto e depois descartá-los, quando a fama ou o prestígio dos mesmos acabam. Existe, inclusive, a mesma referência em relação à descartabilidade de atores consagrados, mencionada no filme “Ed Wood”, de Tim Burton, sobre a decadência de Bela Lugosi. Lugosi “vendeu” filmes de horror para a Universal, mas no final acabou como um homem sem amparo e sem dinheiro.

No filme de Wilder, Norma Desmond diz ao porteiro do estúdio da Paramount que sem ela não existiria o local onde ele trabalha, ou seja, mostra que ela tem consciência que ajudou os seus ex-patrões a ficarem ricos!

O filme mostra também evidências de que a fama é uma faca de dois gumes: se por um lado, as celebridades perdem a privacidade e às vezes a liberdade de ir e vir sem serem importunadas, por outro, uma vez esquecidas, elas perdem também tudo aquilo que conquistaram junto ao público, tendo reflexos profundos no que tange à autoestima.

Saber que um dia se teve valor profissional e depois ter a consciência de nunca mais ser lembrado pelo que se fez não é privilégio de artistas ou atores, apenas o escopo da perda é muito mais contundente. O que explica, de certa maneira, a loucura decadente de Norma Desmond, incapaz de aceitar que ela não tem mais importância alguma no métier onde ela um dia foi famosa.

A história do cinema americano mostra o uso abusivo de nomes de atores para vender filmes, a maioria deles com pequena aparição em papéis menores, porém explorados de forma contundente nos trailers e marquises. Uma das características das mega produções hollywoodianas é a enorme listagem de atores que aparecem em apenas um momento na tela, como eles próprios ou como personagens sem expressão no enredo.

A origem de todo e qualquer filme é o roteiro, ou então o tratamento, quando ele chega ser feito. No entanto, raramente roteiristas e escritores são considerados como “autores” ou até mesmo “cineastas”. Além disso, é comum até hoje roteiros originais serem modificados ou descartados por diretores e produtores. Em Crepúsculo Dos Deuses, o roteirista Joe Gillis aceita ser “patrocinado” sem receber crédito, aceita ganhar algum em troca da sobrevivência, algo bem próximo da prostituição intelectual consentida.

Crepúsculo Dos Deuses se propõe a ser, em última análise, uma crítica ao capitalismo brutal dos estúdios americanos do passado, onde artistas se tornaram operários de uma fábrica de ganhar dinheiro. Só a M-G-M fazia cerca de 52 filmes por ano, em uma linha de montagem fortemente controlada por executivos ou chefes de departamentos do estúdio.

Billy Wilder, para variar, costumava trabalhar com roteiros sem modificação extemporânea, até mesmo nos diálogos. Muitas das falas são consideradas antológicas por fãs e historiadores. Uma das mais citadas pelo AFI diz respeito aos últimos momentos de delírio da ex-atriz:

Norma: “Muito bem, Sr. DeMille, eu estou pronta para o meu close-up”!

 A obra de Franz Waxman

A trilha sonora de Crepúsculo Dos Deuses é competentemente composta por Franz Waxman, que fez obras antológicas para o cinema. Entre elas a minha favorita é a suíte do filme “A Place In The Sun” (no Brasil, “Um lugar ao sol”).

Se o leitor se interessar pela obra de Waxman, eu sugiro ouvir a gravação RCA – Red Seal com as partituras recuperadas pelo filho do compositor e gravadas pela National Philharmonic Orchestra, sob a regência de Charles Gerhardt, e cuja capa é mostrada a seguir:

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 Legado de filmagem

Crepúsculo dos Deuses, com a participação significativa de Gloria Swanson e do então ainda muito jovem William Holden, se sustenta como obra importante do currículo do diretor austríaco Billy Wilder.

O filme se tornou um clássico, ou uma obra “cult” se quiserem, ao longo dos anos. Apesar de ter deixado um gosto amargo na boca de muitas pessoas na época, o seu negativo não foi destruído, a não ser pela falta de conservação do mesmo. A película foi salva e restaurada recentemente, a partir de cópia interpositiva, e pode ser apreciada em DVD ou Blu-Ray. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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Uma resposta

  1. Assisti numa madrugada da Globo quando tinha uns 13 ou 14 anos e já na época me impressionou. Quando revi já adulto há uns 4 anos atrás e pude compreender nuances e detalhes que não entendi na primeira vez (até pq aos 13 anos sabia ainda menos do que o pouco que sei sobre cinema agora) o que era boa impressão se tornou fascínio e me apaixonei pelo filme. Gloria Swanson entrega uma das atuações mais fortes e competentes que eu já vi. Maravilhoso…

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