Jogos de Guerra: história, lições e previsões

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É impressionante como de uma obra despretensiosa, tendo como objetivo aparente o entretenimento em sua meta principal, possa alcançar todos os seus intentos com dezenas de mensagens no subtexto do roteiro. É o caso do filme da década de 1980, “Jogos de Guerra” (“War Games”), produção da United Artists/MGM, escrita por Lawrence Lasker e Walter F. Parkes, e dirigida por John Badham.

O filme foi apresentado em 70 mm na tela curva do cine Metro-Boavista, em 1983, apesar de ter sido filmado em processo Panavision esférico convencional (35 mm ampliado). Na tela, os então atores adolescentes Matthew Broderick e Ally Sheedy, em suas primeiras aparições de impacto.

O filme aborda inicialmente o pavor da guerra nuclear, potencialmente provocada pela escalada da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética.

Na década de 1960, o presidente John Kennedy iniciou um bloqueio a Cuba, em cujo território os russos haviam instalado bases de mísseis nucleares. Os norte-americanos preparam-se para se defender do ataque nuclear, ataque que teria sido no mínimo irônico, em se tratando do país onde a bomba atômica havia sido desenvolvida e depois jogada duas vezes no Japão, durante a segunda guerra mundial.

O episódio marcou, de qualquer forma, o perigo iminente da terceira e possivelmente mais destrutiva das guerras mundiais, e mesmo que a escala não fosse esta, só o fato de que dois países de dimensões continentais estarem envolvidos, seria impossível não haver sequelas para o resto do planeta.

A ameaça de alienação da raça humana com o predomínio de supercomputadores já havia sido abordado no interessante filme de Joseph Sargent, feito em 1970, “Collosus: The Forbin Project”, baseado na novela do escritor D. F. Jones.

Jogos de Guerra se ampara neste filme, mas vai mais além, ao introduzir personagens desconhecidos do grande público à época. Um deles, que propulsiona o desenrolar da estória, é do “hacker”, uma pessoa capaz de descobrir falhas e penetrar em sistemas, com algum tipo de objetivo em mente.

O outro, igualmente importante, se refere à ausência de controle absoluto do sistema pelo homem, no caso um computador que aprende por si próprio (extrapolação do conceito de inteligência artificial) e que depois toma as rédeas das ações ignorando quem lhe programou. A metáfora está clara e é perfeitamente possível até mesmo com a segurança dos dias de hoje.

 A informática dos 8 bits

Em Jogos de Guerra um dos personagens do roteiro é um microcomputador IMSAI 8080, que consta como o segundo computador vendido para usuários finais e declarado por alguns historiadores como o primeiro clone do primeiro kit vendido em território americano, o Altair 8800, vendido por mala postal para os hobbyistas da época.

Apesar do filme não se pronunciar a respeito, o fato é que estes primeiros computadores (e muitos dos que vieram a seguir) não faziam absolutamente nada, a não ser permitir que os seus usuários se aventurassem na redação de códigos de programa, para seu uso pessoal. É possível até que o termo “personal computer” tenha se originado deste tipo de usuário. E foi a IBM quem se valeu dele, para colocar o acrônimo (PC) no emblema do seu primeiro micro.

O IMSAI e o Altair usaram processadores Intel de segunda geração. Quase toda a microinformática deste período era baseada em processamento de 8 bits, e o panorama mudou radicalmente quando, primeiro, a Apple lançou o Apple II, com programas previamente escritos para o usuário final, e a IBM, sua mortal concorrente, o PC em 16 bits, baseado no Intel 8086.

Ainda no filme é possível ver o uso de um floppy disk de 8 polegadas, e um modem analógico primitivo, sendo que para este último o próprio personagem se encarrega de explicar como ele funciona. Nas décadas subsequentes nada de muito novo aconteceu nesta tecnologia, até o aparecimento da chamada banda larga, ainda com linha telefônica convencional. Por causa disto, Jogos de Guerra é tecnicamente apurado, atual e acreditável, mesmo passado estes anos todos!

 O conceito de “hacker” mudou muito!

No início da microinformática, o hacker era o usuário avançado, que havia se aprofundado em programação, de máquina ou em algum código de alto nível, a ponto de conseguir descobrir falhas de sistema.

No filme mesmo é citada a burla do sistema telefônico, através de um programa capaz de gerar tons, os quais possibilitavam as ligações locais ou de longa distância sem cobrança de tarifas. Mas, que fique bem claro, hacker deriva de hack, que se refere à pessoa envolvida em trabalho duro e tedioso. E eu posso até afirmar com segurança que linguagem de máquina não era para qualquer um!

Steve Wozniak, criador do Apple I, é creditado como um dos primeiros hackers que construíram um aparelho chamado de “Blue Box”, com esta finalidade. Na verdade, a descoberta foi do hacker John Draper, conhecido pela alcunha de Captain Crunch, em alusão ao fato de que ele percebera que os apitos de brinquedo colocados nas caixas de cereais emitiam um tom de 2600 Hz, capaz de dar acesso privilegiado aos tons de controle da operadora. Wozniak adaptou os recursos das Blue Boxes para os computadores Apple, mas o projeto foi abandonado, pelo receio de aumentar mais ainda o nível de fraudes no sistema telefônico americano.

O hacking do personagem David, de Jogos de Guerra, é “inocente” por princípio, já que a sua proposta é apenas de ter acesso a jogos de computador ainda não divulgados pela empresa que os projetou.

 

A diversão de penetrar em um sistema sem pedir licença.

A compulsão de penetração no sistema sem identificação se torna uma obsessão, no momento em que a promessa potencial de jogos sofisticados indica terem sido desenhados para desafiar a mais esperta das mentes humanas.

E David, então, não se furtou em entrar no que aparenta ser o mais sofisticado e o mais perigoso daqueles jogos, o da guerra nuclear. O interessante é que, neste ponto, o script dá mostras da rebeldia, questionamento e indignação com o establishment americano. David, de cara, faz opção pelo inimigo e a coisa chega a tal ponto entre os dois jovens que, quando indagada que cidade seria bombardeada primeiro, a sua amiguinha Jennifer responde prontamente: “Las Vegas”!

 As falhas do sistema educacional

Jogos de Guerra mostra, com impressionante didatismo, o contraste entre David, o estudante pouco produtivo na escola, e o menino esperto na frente do seu computador.

O que este contraste claramente expõe é a incapacidade do sistema educacional de motivar o estudante no aprendizado das disciplinas de formação de base. E paralelamente, denuncia a crise institucional que se desenvolveu não só no sistema americano, mas também no sistema de diversos países.

Este modelo educacional falido empurra David para aprender sozinho, e ele o faz com persistência e valentia. Apenas, a motivação em si, entrar em sistemas privados para jogar, é, aparentemente, superficial.

O que o filme também mostra, mas não torna explícito, e que é de enorme importância sob o ponto de vista da educação de base, é o uso do raciocínio lógico, assimilado quando do manuseio pelo personagem do computador pessoal.

Porque, para escrever algum programa, o programador precisa tomar decisões antes de coloca-las em código na máquina. Dentro do computador, a linguagem de programação é essencialmente binária, ou seja, só admite sim ou não. Não há espaço para ambivalência ou duplicidade de interpretação de qualquer comando. E o programador tem que prever todas as circunstâncias nas quais o usuário deverá receber respostas lógicas dos comandos por ele executados.

Abrindo um parêntese, é impressionante constatar que até hoje muitos educadores não enxergam no uso do computador este tipo de aplicação, preferindo ensinar como usar programas, estratégia pobre, que não passa nem perto do uso mais profundo do raciocínio lógico.

 O exercício de futilidade

O ponto principal de Jogos de Guerra é a inutilidade das ações bélicas, na resolução de problemas políticos, entre nações ou grupos de diferentes etnias ou religiões.

“Joshua”, o computador que pratica este tipo de jogo, jamais conseguiu aprender a mais fundamental das lições que todo ser humano deveria aprender: o exercício de futilidade!

Ele nos mostra que há momentos na vida, onde a lógica nos ensina que não importa o que se faça para tentar resolver o problema, o resultado será sempre o mesmo. E que, com isto, não resta nenhuma alternativa, a não ser abandonar qualquer projeto em andamento que diga respeito a esta solução.

Este conceito parece ir de encontro ao preceito educacional popular, de que “para todo problema existe uma solução”, mas não vai. Este preceito, é claro, é importante no avanço da ciência, na vida do administrador competente, na vida doméstica e em muitas outras atividades. Mas, quando o elemento humano entra em cena, passa a existir uma variável imponderável, que nada tem de lógica ou racional. E é aí que o exercício de futilidade se torna uma realidade.

No caso da guerra especificamente o exercício de futilidade seria enxergar que entre duas superpotências o resultado de um conflito seria tão dramaticamente radical, que nenhum dos lados alcançaria qualquer tipo de vitória. Pois não existem guerras sem perdas de vidas humanas, sem destruição do ambiente e sem mudança de vida nos territórios afetados. Com a destruição há uma consequente perda da memória de onde se viveu, não importa se pela guerra ou através da “modernização da sociedade”.

 O jogo da velha

Tão velho quanto a humanidade, o jogo da velha distrai crianças com um raciocínio estratégico: para vencer é preciso ser mais esperto e rápido do que o oponente. O filme fala que ele sempre termina em empate, mas isto não é verdade. O que acontece com este jogo é que quando duas pessoas experientes jogam, o resultado acaba sempre sem vencedor. O jogo da velha, neste sentido, é pura perda de tempo, ou seja, é um exercício de futilidade total.

Em outras circunstâncias, o jogo da velha é um bom estimulador de raciocínio e antecipação de jogadas. E como o resultado aparece rápido, ele estimula a busca de soluções em curto prazo.

Em Jogos de Guerra, é claro, o joguinho se presta a uma metáfora de que é preciso evoluir na vida. Seguir adiante, ir para frente, é meta de qualquer pessoa que acredita que a vida é dinâmica, cheia de novas experiências. Em sociedades culturalmente estagnadas, a chance de progresso é praticamente nenhuma.

Mas, abrindo outro parêntese, na construção de uma sociedade melhor, não basta só ir para frente, é preciso contemplar os meios pelos quais as pessoas possam viver uma vida com a necessária dignidade de sobrevivência. E isto não é fácil. A medicina está aí para provar o que eu afirmo: cada dia que passa novos medicamentos prolongam a vida biológica das pessoas, mas não garantem a qualidade desta sobrevida.

 Antecipando o futuro

Na década de 1980 as redes existiam em ambientes acadêmicos ou criados por entidades diversas. A Arpanet, uma das mais sofisticadas redes em existência nesta época, deu lugar à Internet. Inicialmente com o uso de texto em ambiente Unix, a Internet progrediu rapidamente para imagens e depois vídeos. Os primeiros aplicativos de texto foram criados por estudantes universitários e esta tradição continua até hoje, com aplicativos de todos os tipos.

O acesso a bancos de dados e a comunicação entre pessoas foram os maiores triunfos conquistados pelas redes acadêmicas e depois pela Internet.

O modem primitivo, mostrado em Jogos de Guerra, cedeu lugar a modems analógicos mais rápidos, e com isto muitos usuários finais daquela época foram capazes de usar computadores de 8 bits, para a troca de informações dispostas nos chamados Bulletin Board System (ou “BBS”).

A troca de mensagens entre usuários e BBSs deu lugar ao electronic mail (E-mail), e este foi criado muito antes de aparecer a Internet. A proliferação de e-mails nas redes locais teve o objetivo de facilitar a comunicação entre pessoas situadas na mesma instituição, mas em recintos distantes. E continua assim até hoje, exceto que internacionalmente.

Coube ao escritor Arthur Clark prever que um dia todos os países estariam conectados por uma rede mundial de computadores. Como qualquer sistema, ele poderá nos ajudar ou agir contra nós, como tentam mostrar filmes como Jogos de Guerra. Mais uma vez, é a imponderável variável da presença do ser humano quem irá determinar para que lado nós queremos ir.

Post Scriptum:

Jogos de Guerra completou 25 anos de vida em 2008, e foi relançado em DVD pela Fox. A nova edição corrige a péssima versão em DVD anterior, tanto em imagem quanto em som. Não há notícias, até o momento, de uma versão em Blu-Ray. [Webinsider]

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Leia também:
Anatomia de um Blu-ray player/
Trocando de A/V Receiver

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Quero aproveitar a chance de que a coluna ainda é lida, para retificar uma informação do final do texto: Jogos de Guerra tem, desde o mês passado, versão em Blu-Ray. O disco saiu na América, mas acho que ainda não saiu aqui.

  2. arthur c clarke também visitou o tema de computadores que se tornam “autonomos” no clássico 2001 uma odisséia no espaço, com o famoso “HAL” (IBM?), tenho pra mim que estas maquinetas ,que já nos escravizaram, estão quase chegando lá.

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