Napoléon e o preço de uma restauração

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A versão alternativa de Coppola, apesar da mutilação e da trilha sonora nepotista que o cineasta encomendou, foi a única versão de Napoléon até agora usada para videodisco e DVD, este fora dos Estados Unidos.

Napoléon, filme mudo de Abel Gance, apresentado em 2012 com 5:30 horas de projeção, em exibição de gala, mostra as principais inovações deste cineasta, completadas em 1927. Formaram a base do Cinerama e outros processos modernos de cinema.

 

O historiador e preservacionista inglês Kevin Brownlow gastou vinte e cinco anos de sua vida em uma obsessiva busca por segmentos de filme perdidos do clássico silencioso “Napoléon”, realizado pelo cineasta francês Abel Gance, e lançado nos cinemas em 1927.

Brownlow havia adquirido, ainda muito jovem, dois rolos em película 9.55 mm usados, contendo cenas do filme. A história iria demonstrar que Napoléon nunca havia de fato terminado. O filme havia sido planejado para ser revolucionário, e, de fato, o foi: inovação no processo de montagem (edição do filme), tomadas de cena em plano geral com o uso de dollies (a dolly é uma espécie de grua com rodas, que permite montar uma câmera em cima, e com ela realizar tomadas panorâmicas e travellings), planos próximos (close-ups) radicais, a tintura da película (para emulsionar o filme com cor), e a captura de cenas panorâmicas com o uso de três câmeras, guardadas neste caso, para o final do filme.

Estas três câmeras, montadas verticalmente, mas de forma a conseguir filmar uma imagem panorâmica de uma mesma cena, foi batizada de Polyvision. O formato compõe, na projeção, um quadro tríptico, que tanto foi usado para uma só imagem quanto para a composição de três imagens distintas:

O Polyvision foi, sem dúvida alguma, o precursor do Cinerama. A este respeito, Abel Gance escreveu uma carta em 1962, onde conta, em rápidas palavras, a sua experiência prévia com o formato tríptico. E não esconde a sua indignação sobre o que ele considerou como o roubo do seu conceito de filmagem e projeção panorâmica.

Gance iria dar apoio explícito ao Cinerama em 70 mm. E isto tem uma explicação óbvia: o alinhamento perfeito (sem linha divisória) das imagens trípticas nunca foi por ele resolvida, e ele mesmo percebeu que no Cinerama de três películas o problema continuava rigorosamente o mesmo!

Durante anos a fio, Kevin Brownlow reuniu-se com Abel Gance, com quem se tornaria um amigo, e quando este faleceu em 1981 (aos 92 anos) uma versão restaurada de Napoléon já havia sido preparada. E se a idéia original de Gance, de realizar um filme com muito mais partes (o filme parou de ser rodado por falta de dinheiro), também a restauração de 1981 mostrou-se incompleta! Foi somente em anos mais recentes que novos segmentos foram achados e uma versão “definitiva” de Napoléon pode ser mostrada.

Abel Gance (à esquerda) e Kevin Brownlow, em 1967, durante a primeira recuperação de Napoléon.

No momento da elaboração deste manuscrito, um evento está sendo programado para o San Francisco Silent Film Festival de 2012, para os dias 24, 25 e 31 de março e 1º de abril, com a exibição integral da obra de Gance, acompanhada de orquestra, que executará a trilha sonora composta pelo musicólogo Carl Davis.

As apresentações foram montadas em um cinema de Oakland, Califórnia, cujo tamanho interior e palco são adequados para um filme desta magnitude. O cinema é o Paramount Theater, cujo interior pode ser visto nesta captura:

Segundo o programa, três projetores separados, controlados por técnicos, irão fazer a apresentação das cenas em Polyvision, ao final da projeção. As sessões durarão 5 horas e meia, com três intervalos.

Em uma entrevista concedida em 2010 a Mark Lyndon, Brownlow declarou que uma versão em mídia doméstica (DVD e Blu-Ray) iria ser oferecida ao grande público. Membros da organização do festival, entretanto, acham pouco provável que isto aconteça, devido ao alto custo envolvido.

 As brigas pelas versões restauradas

Depois de cerca de vinte anos de trabalho, tendo ao seu lado Abel Gance, Kevin Brownlow e Carl Davis, com o apoio do British Film Institute, apresentaram em 1979 o que se supunha ser a versão integral de Napoléon.

A apresentação deste trabalho se deu durante a realização do Telluride Film Festival, na cidade do mesmo nome, no Colorado, Estados Unidos. No ano seguinte, o trabalho foi mostrado em Londres.

Entretanto, por volta da mostra da primeira versão de 1979, Francis Ford Coppola adquiriu os direitos de exibição do filme nos Estados Unidos, mas remontou o filme e reduziu a metragem para projeção em 4 horas, ao invés das 4:50 de Brownlow. Além disso, Coppola comissionou seu próprio pai, Carmine Coppola, para musicar o filme, descartando assim por completo o trabalho de Carl Davis. A apresentação foi fruto de uma parceria entre a Zoetrope Studios de Coppola e a Universal Pictures, e se deu em 1980, no Radio City Music Hall, em Nova York.

Além das alterações de tempo de projeção, Coppola ainda acelerou a cadência, de 20 qps para 24 qps, isto é, passou de filme mudo a sonoro, e desrespeitando a intenção original do diretor.

Abel Gance faleceu em 1981, mas os trabalhos de pesquisa de Brownlow continuaram. Em 1983, ele conseguiu recuperar vários segmentos de filmes e fez uma segunda restauração com sua equipe, sendo esta apresentada no Barbican Centre, também em Londres.

Apesar do sucesso parcial, o trabalho de Brownlow e colaboradores ainda iria conseguir resgatar mais de 30 minutos de segmentos do filme considerados perdidos, e no ano de 2000 este resgate se somou finalmente ao filme original, recuperando assim as cinco horas e meia atuais de filme. Esta foi a terceira restauração de Napoléon, e contou novamente com Carl Davis, para completar a trilha musical.

A primeira apresentação da última versão aconteceu no Royal Festival Hall em Londres e a segunda em 2004. Nela se pode ver a recriação da tintura original da parte tríptica do filme por métodos modernos de laboratório. A apresentação desta versão suscitou ameaças judiciais por parte de Coppola sem, no entanto, ter logrado nada.

Coppola, com o apoio da Universal, faria uma versão em 70 mm, apresentada em 2007 no Los Angeles County Museum of Art, mas ainda usando a versão cortada que ele remontara e com a trilha musical composta por seu pai.

Na apresentação proposta para 2012, que acontecerá nos próximos dias em Oakland, será a versão integral de 5:30, recuperada por Kevin Brownlow, com música de Carl Davis, e aparentemente, fruto de um acordo com a Zoetrope, empresa de Coppola.

 O filme

Abel Gance usou câmeras 35 mm, Debrie e Debrie L, segundo o IMDb. A relação de aspecto do negativo ainda é objeto de controvérsia, mas as apresentações modernas são relatadas em 1.33:1, e 4:1 na seqüência tríptica. A duração original do filme estava prevista para 9 horas, em 6 partes diferentes, mas o dinheiro se esgotou rapidamente logo na primeira parte.

Como suporte para travellings, Gance usou todo o tipo de veículo possível, inclusive trenós, cavalos e dollies.

Para o filme lançado em 1927 em Paris, com duração de 4 horas e 10 minutos, a trilha sonora havia sido composta por Arthur Honegger. Subseqüentemente, foi apresentada o que os historiadores consideram a “versão definitiva”, com duração de 9 horas e 22 minutos, com música do próprio Honegger. Uma trilha sonora separada foi escrita por Werner Heymann, e ela foi usada em uma versão mais curta, projetada na Alemanha, ao fim de 1927.

O filme chegou a América por intermediação da M-G-M, que comprou os direitos de exibição, mas foi rapidamente mutilado para 1 hora e 51 minutos e sem a parte tríptica. A apresentação foi feita em 1929, e segundo historiadores, recebida com indiferença pelo público, por causa da presença maciça nos cinemas de filmes sonoros já naquela época.

Gance, entretanto, continuou a fazer melhorias em Napoléon: em 1934, ele teria tentado o uso de som estereofônico, na forma de efeitos especiais, mas não há informações sobre o processo (chamado de Pictographe) e sobre o sucesso desta empreitada.

A influência da ousadia técnica de Abel Gance iria se refletir na construção do Cinerama© e o uso “moderno” da mixagem de filme plano com as imagens panorâmicas ou trípticas podem ser vistos em filmes como Brainstorm, de Douglas Trumbull (35 mm e 70 mm na mesma tela), e o documentário musical Woodstock, de Michael Wadleigh, respectivamente.

A influência da ousadia técnica de Abel Gance iria se refletir na construção do Cinerama© e o uso “moderno” da mixagem de filme plano com as imagens panorâmicas ou trípticas podem ser vistos em filmes como Brainstorm, de Douglas Trumbull (35 mm e 70 mm na mesma tela), e o documentário musical Woodstock, de Michael Wadleigh, respectivamente. Neste último, a composição é feita a partir de tomadas com câmera Éclair NPR© de 16 mm, conforme mostra a captura a seguir:

Tomadas em 16 mm, compostas para versões em Panavision 35 mm e Panavision 70 mm.

 

 O esforço preservacionista de Brownlow não foi em vão

Em 2010, Kevin Brownlow recebeu um prêmio honorário da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, pelo seu trabalho de pesquisa em filmes silenciosos, em particular Napoléon, que ele considera o maior filme de todos os tempos:

A apresentação de 2012 deve culminar o reconhecimento do seu esforço, durante o Festival de São Francisco.

A versão alternativa de Coppola, ao que tudo indica, continuará em existência, apesar da mutilação e da trilha sonora nepotista que o cineasta encomendou. Ela foi, a propósito, a única versão até agora usada para videodisco e DVD, este fora dos Estados Unidos.

A disputa, entretanto, se estenderá até uma possível edição em mídia digital doméstica, e o colecionador terá sorte se a recuperação integral de Brownlow, com a trilha sonora de Carl Davis, for mantida. Infelizmente, só o futuro dirá se isto irá acontecer.

Eu, que nunca tive a chance de ver a obra de Gance, a não ser por trechos, e nem tenho nada a haver com esta briga, graças a Deus, espero que Napoléon, no trabalho integral de Brownlow, seja preservado (sem trocadilho) e exposto ao público do resto do mundo civilizado. Sinceramente, acho Coppola muito pretensioso para querer impor a sua versão mutilada, não me importa se por homenagem ao pai dele. Afinal, a preservação do cinema não pode dar espaço à vaidade, em detrimento da abnegação de terceiros! [Webinsider]

. . . .

 

In Cinerama

 

Quando as telas de cinema ficaram curvas

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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9 respostas

  1. Nossa, como foi bom reler e rememorar esse filme que guardo na lembrança com muito carinho por sua grandeza e beleza de uma arte , em preto e branco, sendo projetado em três telas de cinema simultaneamente! Além disso, havia a orquestra da Uff, regida por Paul Bogaev, que era excelente! E olha… eu só tinha 10 anos na época. Não podia entrar no Caio Martins, mas dei um jeitinho e consegui furar o bloqueio continental, rs. Ficou a lembrança e a experiência de uma vida inteira!! Magnífico!!!

    1. Eu estava lá. Foi inesquecível, realmente. Só não lembro se a versão apresentada foi a completa ou a reduzida. 10 anos depois e este assunto ainda relevante. E agora um novo filme sobre Napoleão estará nos cinemas.

  2. Oi, Eduardo,

    Muito obrigado por sua colaboração. Eu desconhecia a presença do pessoal da Zoetrope em Niterói, e até, por coincidência, foi a época em que eu me preparei para me ausentar do país. Se passou também pelo Rio eu não prestei atenção ou tomei conhecimento.

    Portanto, a sua informação foi importante e eu lhe agradeço por ela.

  3. Senhores,

    Tive o prazer de trabalhar na apresentação do filme Napoléon de Abel Gance e re-ditado por Francis Ford Copolla, realizada no Ginásio Caio Martins em Niterói, no final dos anos 80 / início dos anos 90.

    Foi bom ler um pouco mais sobre estes fatos, já que na época e, tbm por não ser um afficcionado em cinema, nunca ouvi falar sobre estes fatos. O evento daqui foi sim negociado com a Zoetrope Estudios do Coppola e estes trouxeram todo o equipamento de projeção, uma pequena equipe de técnicos e produção e um maestro da confiança deles.
    Espero ter contribuído.

    Um abraço,
    Eduardo Gorga

  4. Oi, Ivo,

    Que pena que eu não soube!

    Agora, a questão é saber se alguém vai ter coragem de trazer a nova apresentação ao Municipal. Eu sou um que gostaria muito de ver isto de perto. Se morasse na California, teria ido!

  5. Oi Paulo
    Nosso amigo Elie Bessos fez uma linda apresentação desse filme, com tres projetores, há cerca de 4 ou 5 anos. Se não me engano foi no Municipal ou em Niteroi
    Abraços
    Ivo

  6. Oi, Tresse,

    Obrigado mais uma vez.

    Pois é, reforma de computador significa dias de agonia, para saber se algum componente não vai dar algum problema. E não é que eu desconfie de ninguém, mas eu gosto de fazer tudo sozinho. E isto me obriga a me atualizar e estudar cada mudança de formato, de modo a fazer a montagem do modo mais indolor. A última vez que eu montei um micro foi há cinco anos atrás, o que significa que eu estou ficando preguiçoso ou menos demandante de uma estação de trabalho com mais recursos!

    Em relação ao texto, eu te confesso que irei sempre dar apoio ao trabalho de pesquisa nesta área, áudio inclusive. E eu respeito muito o gigantesco esforço, abnegação e humildade dos pesquisadores como o citado na coluna, que fazem o seu trabalho por admiração da obra de terceiros.

    São pessoas que demonstram não terem ego (coisa rara nesta área) e que assim se conduzem pelo resultado do trabalho e não pela eventual fama que pode sair dele.

  7. Paulo,
    mais uma vez, parabéns. Você é a nossa “Enciclopéia de Cinema”. Quanto mais rápido você fizer o upgrade do seu comoutador, melhor para todos.

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