O projeto das fitas magnéticas

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A audição de gravações estereofônicas de música pré-gravada no ambiente doméstico só foi possível graças à disseminação dos tape decks de rolo, durante a década de 1950.

E embora o Lp estéreo tivesse sido desenvolvido e lançado comercialmente em 1957, muitos audiófilos e ouvintes casuais continuaram preferindo a fidelidade da fita magnética.

Foi neste embalo de mercado que Paul Klipsch, fundador da empresa Klipsch and Associates, decidiu criar uma divisão para a gravação de material capaz de demonstrar a qualidade de suas caixas. A Klipsch Tape Division lançou um produto com o nome de Kplischtape, contendo gravações supervisionadas pelo próprio Klipsch, com a ajuda do músico John Eargle, que mais tarde viria a ser o renomado engenheiro de gravação da Delos Productions.

A sua empresa, hoje com o nome de Klipsch, continua a fabricar caixas para o consumidor final, inclusive modelos legacy dos projetos originais do lendário Klipsch Horn©.

Dias atrás, eu recebi a mala postal eletrônica do site High Definition Tape Transfers, citando o lançamento de seleções das fitas originais da Klipsch. Trata-se de um projeto feito em parceria, e que resultou do emprego de uma cópia em fita magnética, feita a partir da primeira geração dos originais, e submetida à restauração e remasterização para PCM de alta resolução.

Na HDTT, é o seu proprietário Robert Witrak quem faz este processamento. Ele usa um deck Studer 810, que permite ajuste fino para o tipo de cabeça de leitura ideal para os diversos tipos de fita. As cópias das fitas são remasterizadas com todo o cuidado, respeitando as limitações originais e algum ruído que, se retirado, poderia adulterar o conteúdo.

O resultado fica então disponível para o consumidor, na forma de arquivos de áudio flac, de 192/24 (DVD-Audio), 96/24 (DAD), 44.1/16 (CD), ou então vendidos na forma de disco, tanto 96/24 (DAD) quanto 44.1/16 (CD), com mídia comum ou especial.

 A seleção de faixas

O download ou aquisição de disco consta de sessões de diferentes fitas, com seus respectivos números de série, em um total de 12, acompanhadas do áudio de uma entrevista de Paul Klipsch na TV em 1954.

O músico Flem Ferguson, com trio e conjunto de dixieland, aparece em quatro destas faixas. As restantes ficam por conta do órgão acústico de Weldon Flanagan e das interpretações, em forma de recital, também em órgão, por John Eargle, contendo excertos de peças clássicas conhecidas. Finalmente, o quarteto de Joe Holland é apresentado em uma faixa isolada, como parte da primeira destas fitas. Esta é, a propósito, uma fita feita para demonstração, e é acompanhada de apresentação narrativa das faixas por John Eargle. O projeto da HDTT conta então com quatro segmentos, listados com a numeração original: KST 1000, 1002 e 1001, respectivamente.

Esta edição se traduz em um inestimável registro histórico e deve ser encarado como tal. Como gravação para audiófilos, nem tanto. Existem gravações do período que superam amplamente a qualidade deste trabalho. E muitas delas estão disponíveis com excelente transcrição em SACD, como é o caso da série Living Stereo, editadas pela BMG. Nestas, a passagem para o DSD é feita 1:1, ou seja, dois ou três canais são remasterizados rigorosamente de acordo com o original, e isto, per se, dá uma dimensão maior do processo de gravação (Decca Tree), já comentado nesta coluna, e da qualidade acústica do ambiente no qual elas foram feitas.

Na HDTT, não há, em princípio, opção por 3 canais, mesmo que a fonte analógica esteja disponível. E neste caso, claramente, não estão! Em contrapartida, o que Robert Witrak faz de interessante é interferir o mínimo possível no som das matrizes e usar o melhor equipamento de transcrição ao seu alcance.

Dos originais, alguns aspectos são positivos: todo o processo de gravação é minimalista, os ambientes são escolhidos de acordo com o que a produção determinou ser o melhor e mais adequado para a reprodução acústica das peças.

Igualmente interessante é o conteúdo da entrevista feita com Paul Klipsch na TV: a começar pela confissão da apresentadora de que não entende patavinas do assunto. A seguir, ela convida um técnico de áudio da emissora, que provoca Klipsch com perguntas a respeito da sua participação na indústria de áudio e da sua controversa posição a respeito do que os chamados “audiófilos ortodoxos” pensam a respeito do áudio.

Aí a gente nota que Paul Klipsch não era bobo. Primeiro, porque ele já vai logo dizendo que o que se falava sobre áudio na época (e é assim até hoje, diga-se de passagem) é um monte de besteira, porque não existe forma eletromecânica de reproduzir o som de instrumentos exatamente como ele é. Note-se que se trata do pronunciamento de um projetista que ficou na história da indústria e era fabricante de caixas.

Ao comentar sobre o Klipsch Horn, Paul Klipsch justifica que na amplificação do áudio, os amplificadores podem dar, a baixo custo, a potência desejada, porém os alto-falantes (da época) são notoriamente ineficientes. A função da corneta é amplificar acusticamente o som que passa por elas. O seu mérito, o mérito do design do Klipsch Horn, segundo ele próprio, seria o de fazer isto sem distorção.

Mas, Klipsch foi bastante honesto na entrevista. Ele deixa claro que o design de corneta existia desde a década de 1930. Na verdade, abrindo um parêntese, é que o design de corneta teve uma aplicação muito grande quando o cinema passou de mudo para falado. E isto justamente pela sua capacidade de amplificar acusticamente o impulso elétrico oriundo do amplificador de potência.

Cornetas de grande porte podem ser alimentadas com amplificadores de baixíssima potência. Há décadas que correntes de audiófilos preferem usar amplificadores de 1 watt apenas, com super cornetas!

Eu peço licença ao leitor para discordar. Data venia, como diziam os antigos, e com todo o respeito ao eminente Paul Klipsch, o uso de corneta em ambiente doméstico introduz um desbalanceamento inaceitável na reprodução de médias e média-altas frequências, com uma distorção bastante audível em ambiente pequeno e fechado, mas que se disfarça em ambientes amplos, sendo por isto o seu melhor emprego em salas de médio e grande porte, como os auditórios.

Na parte das frequências baixas do espectro auditivo as cornetas funcionam bem, e este talvez seja o motivo pela qual as Klipsch Horns tenham se tornado populares. Não sem um preço: para torna-las interessantes é preciso aumentar o tamanho, e no caso de uma caixa, obriga a construção de um autêntico caminho de rato, dobras sucessivas, até chegar à saída do baffle.

 O projeto das fitas

Talvez tão interessante como o resgate da HDTT é saber que existe uma comunidade de pessoas que gira em torno de um projeto que consiste em reeditar gravações em fita magnética, que podem ser reproduzidas em decks dedicados.

Com o avanço da obsolescência da gravação analógica nos estúdios profissionais, muitos deles se livraram dos caríssimos decks analógicos e assim o mercado de aparelhos usados aumentou consideravelmente nos últimos anos.

Para resgatar este funcionamento, o usuário vai ter que sofrer um pouco com a manutenção do equipamento, e quando for o caso, do reparo dos mesmos, diante do material hoje escasso para este fim.

Para o leitor ter uma ideia do que eu estou falando, eu recorri ao meu amigo Nolan Leve, engenheiro que tem no seu currículo anos a fio como responsável na manutenção dos equipamentos dos estúdios da Som Livre. Eis aqui um clipe da demonstração da manutenção de um Studer 820A, onde se vê a reprodução de uma fita master, para testar a calibração do deck:

http://www.youtube.com/watch?v=8iTpp3HAs-4

A comunidade que gravita em torno deste projeto já o faz há alguns anos, e aparentemente, todos se ajudam entre si. As fitas que estão em catálogo para compra são caras e demandam um ritual de conservação fanático, se o usuário não quiser perde-las a médio prazo.

 Decks vintage

O Nolan, que eu citei acima, tem como hobby colecionar tape decks antigos, nos quais ele faz uma manutenção preventiva (“estão todos funcionando”, costuma dizer ele) e depois os armazena com cuidado. Para ilustrar a coluna, eu lhe pedi que me enviasse algumas amostras de decks usados na década de 1950, ou início de 60.

Um deles é o deck da marca Ampro, modelo 731:

 

Cortesia de Nolan Leve, de sua coleção particular.

 

Para vê-lo em ação:

http://www.youtube.com/watch?v=QLLdrdBodHI&list=UUJjF5HSP-PsMH2qwyoBQDTQ&index=3&feature=plcp

E o outro, com design super diferente, é o Eicor, modelo 1000:

 

Cortesia de Nolan Leve, de sua coleção particular.

 

 

 

 

Este também pode ser visto funcionando no seguinte clipe:

http://www.youtube.com/watch?v=a2NJ6wmCOKw&list=UUJjF5HSP-PsMH2qwyoBQDTQ&index=4&feature=plcp

 A magia das fitas magnéticas

A gravação em fita magnética revolucionou a maneira como a música passou a ser gravada, sem mencionar que possibilitou levar a alta fidelidade para as telas de cinema, primeiramente no Cinerama e depois embebidas na própria película, com o CinemaScope. O seu histórico é muito rico e extenso. Tentando resumi-lo, poderíamos mencionar o seguinte:

A gravação magnética tem seus primórdios já no final do século 19, e foi com Valdemar Poulsen que ela tomou o seu primeiro grande impulso. Os maiores avanços, entretanto, ocorreram na Alemanha do período pré-segunda guerra mundial: coube ao inventor Fritz Pfleumer a invenção da fita magnética.

Pfleumer era um visionário. Do seu projeto inicial de fita magnética em metal, ele passou para uma base de papel e depois esta formulação seria aplicada em base plástica resistente. Pfleumer tentou, sem sucesso, usar metal puro, mas este inflamava rapidamente, ao contato com o oxigênio do ar. Terminou usando um pó de óxido férrico (Fe3O4) embebido em laca.

Esta formulação foi mudada nos anos seguintes por várias vezes. A fita de metal, entretanto, só foi fabricada com sucesso na década de 1970, pela TDK, no Japão. Por volta desta época, cabeças magnéticas apropriadas já tinham sido desenvolvidas e foram introduzidas nos decks de fita cassete da época. Pfleumer tinha uma intuição de que a base de metal seria capaz de melhor qualidade de gravação e ele estava certo.

A fabricação do primeiro gravador de rolo foi possível quando Pfleumer cedeu à AEG (Telefunken) os direitos de sua patente. O Magnetophon K1 é considerado pelos historiadores como o primeiro gravador de rolo de uso prático.

O lançamento foi feito em 1935, mas pouca gente tomou conhecimento de suas aplicações. Ironicamente, os primeiros testes foram feitos com o apoio do maestro inglês Sir Thomas Beecham, e com a Orquestra Filarmônica de Londres. Sir Thomas teria se maravilhado com o resultado, mas com o advento da guerra, o avanço das gravações magnéticas caiu por terra, junto com as aplicações das mesmas, restritas à principal rádio estatal do Reich.

Na Alemanha deste período, um dos maiores triunfos foi a redescoberta da corrente de bias, na correção da linearidade da gravação magnética. Aplicando-se um sinal de altíssima frequência na fita, conseguiu-se retificar significativamente a resposta de alta frequência na faixa audível do espectro, e consequentemente a observação desta melhoria na reprodução foi imediata!

A BASF, fabricante de produtos químicos, transformou-se na primeira empresa que aperfeiçoou a base (suporte) da fita magnética e da formulação e colagem do pó de óxido, ainda na década de 1930.

Quando os aliados entraram em Berlin, os oficiais americanos ficaram surpresos ao conhecer o gravador de rolo e a fita magnética, cuja patente foi confiscada como “espólio de guerra”. Posteriormente, a patente da fita magnética foi cedida à 3M, de Minnesota, que supriu fitas com base de acetato aos estúdios americanos. Tanto o Magnetophon quanto as fitas da BASF tinham sido transportadas para os Estados Unidos e usadas em transmissões de rádio, particularmente por um show do cantor Bing Crosby, até que ficou impraticável reusá-las.

O resto desta história é muito rico, mas não é do interesse desta coluna prolongar o assunto. Entretanto, quem tiver interesse em saber a que ponto tudo isto alcançou, eu sugiro a leitura desta página. A redação está detalhada o suficiente e contém links para outros sites. [Webinsider]

…………………………

Leia também:
Anatomia de um Blu-ray player/
Trocando de A/V Receiver

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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9 respostas

  1. Parabens por seu trabalho. Tenho um pequeno rádio japones que não consigo identifica-lo melhor. Agradeço se o puder. O Rádio é um Parler kss. Muito obriga Cesar

  2. Excelente artigo! Tenho um estúdio experimental 100% analógico com gravadores de 2″, 1/2″ e 1/4″. Gostaria de manter contato com o citado Nolan. Existe algum website dele?
    Anderson.

  3. Nolan,

    Eu retribuo o teu comentário e acho que você também, com tantos anos na área e tanto conhecimento sobre gravação em estúdio, deveria deixar algo em documento escrito.

    E pelo jeito, o Alexandre Grimberg concorda comigo!

  4. Parabéns Roberto Elias pelo artigo fabuloso,
    repleto de informações técnicas e históricas.

    Fico muito feliz em saber que meu amigo de infância Nolan continua vivendo intensamente sua paixão pelos gravadores de fitas magnéticas, preservando a história e ajudando o resgate do excelente material artístico contido nas fitas magnéticas.

    Alexandre Grimberg

  5. Como sempre,Paulo,seu artigo está excelente,e não menciono isto porque nele figurei.Você REALMENTE devia juntar todos eles e publicar um livro.Teu texto está irretocável.Tive algumas fitas pré-gravadas,e só o simples fato de não se ouvir os malditos cliques que só um disco de vinil pode dar,já colocava as tais fitas em um pedestal acima.

    Parabens,

  6. Oi, Tresse,

    Eu estou atualmente envolvido em um projeto de um livro, mas sem ter a mínima noção se vai servir de algum tipo de referência.

    Eu acho uma super generosidade sua encarar o meu trabalho como de responsabilidade na formação de novos profissionais, mas, por outro lado, eu não invalido a minha contribuição, seja lá qual for, porque eu mesmo amadureci lendo pilhas de trabalhos de pessoas da minha área, com visões do mesmo assunto completamente díspares.

    Sobre o MIS, acho pouco provável que eles se interessem por uma pessoa como eu. Eu fui muito ao MIS nas décadas de 60 e 70, quando eles tinham uma cinemateca. Depois disto, eu sumi de lá e nunca mais soube de iniciativa nenhuma que tenha partido deles na área de cinema. Com a possibilidade da construção do novo prédio, eu perguntei a uma pessoa de lá sobre a chance de se ter uma ala que fosse, sobre projetores de cinema fabricados no país, e depois disto nunca tive nenhuma resposta. Não insisti.

  7. Paulo,
    acho que você tem uma rsponsabiliodade muito grande com as próximas gerações. Você precisa deixar o seu conhecimento escrito em algum lugar. O Museu da Imgaem e do Som seria um bom local? Não pare de escrever.
    abs.

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