O Senhor dos Anéis e o roteiro deturpado

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Procuro poupar os leitores e guardar minhas opiniões controversas para os amigos, estes já acostumados com meu gênio estapafúrdio; porém, acabei não me agüentando com tantas críticas bem intencionadas sobre o mais recente episódio de O Senhor dos Anéis (As Duas Torres). Resolvi destilar meu veneno.

Antes, um aparte: não sou estudioso da obra de Tolkien, tampouco especialista em cinema. Apenas um simples mortal, apreciador jurássico da Trilogia dos Anéis e fã inconteste de boa parte da filmografia de Peter Jackson, diretor do filme em questão.

A primeira parte da trilogia me deixou boquiaberto, acabei revendo 3 vezes, incluindo uma versão americana do DVD sem cortes, com 30 minutos a mais de filme.

Apesar de adorar os filmes de Peter Jackson, sob seus ícones do cinema trash “Náusea Total” (Bad Taste), “Fome Animal” (Braindead) e o excelente “Almas Gêmeas” (Heavenly Creatures), assisti ao primeiro filme da trilogia de Tolkien com um certo receio.

Parecia–me inconcebível que fosse possível passar para as telas a grandiosidade do mundo imaginário de Tolkien. Ledo engano. Jackson conseguiu de forma magistral transformar o que já era grande, numa coisa ainda maior. Ponto para ele.

O filme é monstruoso (no bom sentido), as locações e as batalhas atestam a qualidade de Jackson atrás das câmeras e são o ingresso definitivo na galeria dos grandes diretores –– e dos grandes orçamentos. Minha birra fica mesmo é com o roteiro, em particular com as personalidades de alguns povos e personagens.

Explico: não sou purista, não acho que o roteiro tenha de ser fiel à obra ou coisas assim. Acho até que as mudanças são muitas vezes necessárias, para fazer um filme melhor ou para adestrá–lo em três horas de projeção. Os problemas que vejo na segunda parte da saga não têm nada a ver com isso, são algumas alterações completamente desnecessárias, que tiraram boa parte da moral e grandiosidade de certos personagens.

Mudanças para pior, sem nenhuma razão de ser. Vejamos algumas, em ordem cronológica:

O Rei do Palácio Dourado: Após encontrar Gandalf (o Branco), Légolas, Gimli e Aragorn chegam à Terra dos Cavalos, no Palácio de Meduseld. Lá encontram o rei Théoden, este velho e cansado, vítima de um feitiço de Gríma, mais conhecido como Língua de Cobra. No filme, numa cena que remete diretamente ao Exorcista, de 1973, Gandalf rechaça a influência maligna de Saruman sobre o “velhinho”.

Conforme o livro o rei estava sob o feitiço dos conselhos venenosos de Língua de Cobra, este sim, agindo através do poder de Saruman, e é na verdade o próprio Gríma quem é confrontado por Gandalf. Até aí nada grave. É a seqüência de fatos que deixa muito a desejar…

Após cair em si, o rei, segundo o filme, como um verdadeiro bunda mole, resolve juntar seu povo e exército e fugir para se esconder no Abismo de Helm, ao invés de apoiar a cruzada dos outros heróis.

O que aconteceu de fato (conforme contam as canções do Condado) é que o rei, após escapar do feitiço, imediatamente se torna bravo e grandioso, voltando toda sua cólera contra Sarumam e de bom grado juntando–se ao grupo de heróis, ele e seu exército, para lutar em defesa do Abismo de Helm, como podemos ver no livro:

Eu mesmo irei à guerra, para cair frente à batalha, se isto tiver de acontecer”, diz o rei.

Mulheres, jovens e crianças são enviados sob a proteção da bela Éowyn (Miranda Otto, no filme) para o templo da colina. O exército, ao perceber seu rei rejuvenescido e bem disposto, se enche de alegria e coragem, e com disposição partem para a batalha em Helm.

Não consigo entender. Por que tirar toda a coragem e grandiosidade do rei na telona? Iria alterar de alguma forma a história? Fugir para o abismo de Helm? Na obra de Tolkien, este já estava em guerra com Saruman e seus Orcs, e para lá nossos heróis partem para lutar. Isso realmente iria interferir no filme?

Na minha opinião, um grande personagem de Tolkien perde razoável parte da moral no filme, fugindo covardemente – mesmo que depois, ao final da batalha, o rei se junte ao restante do grupo para lutar bravamente.

O Abismo de Helm (e um pouco antes): Sem dúvida, uma seqüência e tanto, fotografia impecável, um verdadeiro show. Apesar dos pesares…

– Gimli vira um verdadeiro anão de circo nas mãos do roteirista, alvo de gags constantes, sem nenhuma pena. Se existissem anões como os da Terra Média em nosso mundo, a New Line e a Warner já estariam em chamas neste momento – e os entusiastas de RPG sabem bem do que estou falando.

– Aragorn, um dos personagens mais valiosos da história, aquele que será o grande rei (que me perdoem aqueles que ainda não sabem), está sempre levando umas porradas e desmaiando. Um fracote.

– O que é aquele grupo de arqueiros elfos que aparece de uma hora para outra, juntando–se à defesa do abismo? Tudo bem, até passa, mas nunca aconteceu. Na verdade, quem chega em socorro na última hora é Gandalf e Erkenbrand, com mais de 1000 guerreiros, nenhum deles elfo.

A Janela Sobre o Oeste e O Lago Proibido: Aqui a história retorna aos pequenos heróis Sam, Frodo e seu “fiel” guia, o Gollum. Quanto a este, não tenho muito o que reclamar, saiu melhor do que a encomenda. Faltaram os inúmeros erros de vocabulário, dignos do Seu Creysson, que dão um toque especial ao personagem no livro.

O injustiçado da vez é Faramir, irmão do finado Boromir. Ao contrário da versão do livro, Faramir se mostra um verdadeiro PC (e não me refiro ao computador), obrigando de forma desleal e traiçoeira os hobbits a seguir com ele.

No livro, apesar de ser um tanto quanto desconfiado, Faramir revela toda sua dignidade e carisma ao deixar os pequenos seguirem seu caminho, revelando–se uma pessoa mais digna e grandiosa do que seu irmão –– o qual teve uma recaída diante do anel, para morrer pouco tempo depois. Se o roteiro do filme obrigava que os hobbits seguissem Faramir, que fosse de outra forma, sem prejudicar a moral do personagem.

Enfim…

É um excelente filme, recomendo a todos. Com exceção de uma porção de cenas piegas típicas dos requintes de Hollywood, além de todos as injustiças citadas acima, o filme se desenvolve em cima de belíssimas paisagens da Nova Zelândia, com fotografia impecável, efeitos especiais de última geração e cenas de ação empolgantes.

Só faço uma ressalva: não deixe de ler o livro, pois suas qualidades ultrapassam de longe as do filme. É uma grande oportunidade para encontrar um Theodor (o rei) destemido e vingador; um Gimli que, apesar de ranzinza, é o primeiro a colocar seu machado frente aos perigos da terra de Mordor; um Aragorn imbatível, que já demonstra toda sua majestosidade; e um Faramir que busca acima de tudo a verdade e a justiça, sem recair em nenhum momento.

Vamos esperar que no próximo episódio, O Retorno do Rei, não encontremos criaturas como Jar Jaromir. [Webinsider]

Alexandre Kavinski (kavinski@gmail.com) é um hopeless romantic.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

Mais lidas

2 respostas

  1. Tenho que discordar em alguns pontos de você.

    Você diz que não é purista, em relação aos livros, mas acaba sendo da mesma maneira. Não é em relação à história, mas, sim, à mentalidade e aos valores.
    O filme é uma adaptação, ou, ainda, baseado nos livros, o que não o obriga a ter nada à risca de acordo com os livros.

    Théoden mostrou-se fraco para demonstrar a situação limite em que estava a Terra-média. O medo natural e para dar clímax à história.

    Aragorn, mesmo rei, é um ser humano. Heróis intocáveis não são mais tão apreciados como antes. A humanidade é demonstrada em muitos anti-heróis atuais.

    E a mudança no caráter de Faramir foi uma estratégia clímax.
    Era necessário um desafio para o protagonista e esse desafio (na verdade, tensão provocada nos expectadores) era que tudo seria posto à prova e talvez perdido por causa dos homens novamente.
    É necessário criar clima e reforçá-lo sempre, no cinema. O que é difícil fazer em 3 horas, se houver preocupação com a moral de personagens secundários.

    Faramir venceu a mesma fraqueza de seu irmão, de seu pai e dos homens, mas foi testado, antes disso.

    Os filmes já foram terminados há muito tempo, mas você deveria saber que moral é algo relativo e mutável. Não se pode esperar que um filme dos anos 2000 siga à risca o determinismo de um livro 50 anos mais velho.

  2. Meu Caro Alexandre Kavinski,

    Concordo com você em partes e em outras eu descordo até porque sou suspeito em falar da maravilhosa obra de Tolkien. O fato de se adaptar um livro para as telonas do cinema não é tão fácil como se aparenta. Realmente o Rei Théoden estava mesmo precisando de um update, mas ai vem a parte do roteirista de imaginar o rei se reabilitando e dando continuidade ao processo de levantar o exército e ir ao combate.
    Sabemos nós que na verdade não tem como mesmo sair totalmente perfeito, Peter Jackson é um excelente diretor para mim um dos melhores diretores em minha opinião. A verdade sempre vai estar na cara meu caro é que ninguém jamais irá conseguir transmitir de um livro para o cinema 100% de toda a obra aplicada pelo o autor do livro.

    Sem mais, espero que tenho gostado da minha opinião.

    Um forte abraço

    Thiago

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *