Imagine que você é o editor de um site que gera 50 milhões de páginas vistas por mês e tem centenas de milhares de leitores. Você não paga pelo conteúdo publicado porque o que alimenta o site são mensagens da própria comunidade. Mas como aproveitar esse material –checar os dados, conferir a procedência da informação, editar o texto entre uma infinidade de posts diários – sem ficar louco?
No entendimento da mídia tradicional essa operação deve parecer inviável por demandar a contratação de centenas de jornalistas para encontrar as mensagens “quentes” e instigantes perdidas entre a grande maioria que podem ser consideradas como spam: mal–escritas, com conteúdo incerto, desatualizado ou, o que é pior, falso e plantado para manipular a opinião da comunidade.
Mas no mundo virtual, a tecnologia digital – que permite o processamento rápido e massivo de informação a baixo custo –, aliada a uma arquitetura de sistema inteligente permite que a própria comunidade se responsabilize pela filtragem das mensagens postadas. Essa é a receita do sucesso do Slashdot, uma central de notícias e mural de discussão fundada em 97 por Rob Malta, um geek de Michigan (EUA) que ainda hoje trabalha como editor–chefe do site.
Um raio X da linha de montagem
A primeira característica desse sistema de moderação massivo é que a capa e o mural de discussão têm dinâmicas de atualização separadas. A notícia “quente” chega à capa, atrai o visitante e o convida a postar no mural; as milhares de mensagens postadas têm a variedade e a relevância necessárias para trazer novos internautas.
São dois mundos interconectados: o planeta “capa” é o domínio dos editores. O planeta “mural” é gerido quase exclusivamente pela comunidade. Apenas os editores têm autorização para publicar na capa – para evitar que esse espaço seja controlado por grupos com causas específicas, como os opositores de Bill Gates e da Microsoft, os “gamers” ou os interessados no debate sobre Open Source e Linux.
A comunidade, por sua vez, fica responsável por garimpar as mensagens e apontar as mais interessantes. No planeta dos murais de discussão, a interferência dos editores é irrelevante: não passa de 3%, segundo os números registrados pelo sistema. Ou seja, os usuários postam as mensagens e eles mesmos moderam esse material.
As mensagens postadas têm valores entre menos um (–1) e mais cinco (+5). Uma mensagem – 1 tem relevância mínima enquanto uma com valor +5 é supostamente muito interessante. O trabalho dos moderadores é aplicar esse sistema de pontuação para facilitar a função dos editores, que usam um filtro para selecionar apenas as mensagens +5.
Como ser moderador
Mas se todos os usuários fossem sempre moderadores, fatalmente apareceriam os mal–intencionados e também os mal informados comprometendo a qualidade do serviço. Para resolver esse impasse, o Slashdot determina as condições para que um internauta possa participar da comunidade como moderador. Primeiro, ele precisa se registrar. O registro permite que o sistema siga os passos desse usuário dentro da comunidade, determinando a qualidade de seu comportamento online – ou karma, segundo a gíria do site.
Após o registro, os pretendentes ao cargo de moderador devem passar alguns meses freqüentando diariamente os murais, lendo e postando. Quando ele publica, outros moderadores avaliam a relevância da informação. Se a avaliação for positiva, a pessoa que a enviou ganha pontos, elevando seu karma. No caso da mensagem ser considerada ruim, o karma dele se desvaloriza.
Mas nem um bom karma nem a familiaridade com o mural dão direitos ilimitados de moderação ao usuário. A moderação é distribuída randomicamente entre o grupo de pessoas que cumprem esses requisitos. Os sorteados ganham 5 pontos que aparecem postados na sua interface de usuário. Esses pontos são para ele distribuir entre os post – exceto os deles próprios – que ele considerar mais legais. Último detalhe: os pontos desaparecem se não forem usados após três dias.
Meta–moderação: avaliando o moderador
O crescimento exponencial da comunidade Slashdot levou ao desenvolvimento de uma solução para checar as decisões dos moderadores. Trata–se do sistema de “moderação da moderação” ou meta–moderação, uma responsabilidade reservada à elite dos usuários do site, os mais atuantes, antigos e com “karma” exemplar entre os 92,5% cadastrados.
Quando os meta–moderadores abrem uma mensagem do mural, eles vêem a lista de moderadores que avaliou seu valor e o julgamento de cada um. O meta–moderador compara o conteúdo da mensagem com a percepção do moderador e determina se ele está de acordo ou não com a decisão deste.
Além do sistema de moderação
Para além do sistema de moderação, o Slashdot tem outros elementos que justificam a popularidade do site junto a nata dos internautas. Chama a atenção, por exemplo, a abertura dos editores para o diálogo com a comunidade e também a clareza e objetividade das regras que regulam o funcionamento do site. O tamanho do documento de perguntas mais freqüentes (FAQ) ilustra essa postura.
Outra característica que enriquece o conteúdo do Slashdot é opção que o usuário registrado tem de postar mensagens anonimamente. Esse elemento da interface possibilita que “spammers” dificultem o já complexo sistema de moderação. Mas este é um preço que se paga para permitir que o usuário bem–intencionado publique informações com conteúdo confidencial, polêmico ou por alguma razão delicado, sem se comprometer junto a seu empregador ou mesmo publicamente. Tradicionalmente as mensagens postadas por anônimos são mais ricas em “furos” editoriais.
Além disso, o Slashdot tem a política de apenas julgar a relevância das mensagens, mas nunca apagar o que é publicado. Isso garante que as mensagens de valor apareçam em destaque sem fazer pouco caso do esforço do usuário que postou uma nota considerada menos interessante. Ela continuará sempre no sistema e disponível para consulta através de busca.
Receita de sucesso
O projeto Slashdot conquistou o respeito do público, a atenção da mídia tradicional e, conseqüentemente, os dólares dos investidores ao demonstrar sua viabilidade em relação aos modelos tradicionais de produção e administração de conteúdo editorial. O sistema de moderação do site gera e disponibiliza mais rapidamente a informação que interessa a seu nicho de usuários. Esse é um mérito do Slash, o software de moderação do site. A seguir destacamos as três características principais desse programa:
1. Arquitetura que permite à comunidade se autogerir, valorizando os dedicados. Esse sistema lembra, por exemplo, a divisão de poderes de um regime democrático moderno: o legislativo faz as leis, que são aplicadas pelo executivo que, por sua vez, é avaliado pelo judiciário.
2. Funciona de uma forma transparente e aberta usando regras iguais para todos os participantes.
3. Concentra o grosso do trabalho, que são os cálculos para a avaliação das mensagens e do trabalho dos moderadores, permitindo que moderadores e editores gastem pouca energia com a logística e se concentrem na edição propriamente.
Essa solução ‘inteligente’ de moderação não apareceu junto com o Slashdot. No início Malda acumulava as funções de moderador e editor. Com o crescimento da comunidade ele passou a moderação aos 25 usuários mais atuantes. Quando esse número ficou pequeno, comprometendo a eficiência destes 25, ele aumentou o grupo de moderadores para 400. Essa mudança mais uma vez deu certo e fez a comunidade crescer mais, até tornar–se impraticável manter o controle sobre os 400 moderadores. Foi quando ele desenvolveu a solução em uso atualmente.
Metade do caminho andado
A boa notícia é que você, editor, não precisa fazer esse trajeto inteiro para chegar à ferramenta. O Slash tem o código aberto: pode ser carregado e utilizado gratuitamente, e tem até um manual disponível. Se você estiver interessado em desenvolver um projeto nas linhas do Slashdot, o seu trabalho não dependerá mais de tecnologia. Resume–se à identificação de demanda e do cultivo da comunidade.
Malda dá a dica: “Faça o que você conhece. Não tente apenas realizar a idéia de outra pessoa, e também não tente fazer o que você não acredita. O Slashdot ficou famoso primordialmente porque eu representava a minha audiência. Eu não estava tentando fazer um site para outras pessoas, eu estava fazendo o site que eu gostaria de ler. Eu acho que ninguém pode falsificar isso, e mesmo que você consiga, as pessoas acabam percebendo.” [Webinsider]
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Juliano Spyer
Juliano Spyer (www.julianospyer.com.br) é mestre pelo programa de antropologia digital da University College London e atua como consultor, pesquisador e palestrante. É autor de Conectado (Zahar, 2007), primeiro livro brasileiro sobre mídia social.