Quando eu era moleque, lá pelos meus oito ou nove anos, vi pela primeira vez um “PX”, um rádio–transmissor também conhecido como ‘Faixa do Cidadão’. Ninguém que eu conhecesse tinha idéia do que era aquilo. No Rio o rádio era usado por alguns motoristas de táxi e uns poucos gatos pingados espalhados pela cidade.
Esse primeiro PX eu vi no quarto da Gracie, uma mulher que trabalhava no consultório da minha mãe. Era na verdade do marido dela, o Duarte, camarada com pinta de Harvey Keitel com um toque de malandro da Lapa, com direito a moto Harley e tatuagens de marinheiro.
Ainda me lembro muito bem de ver num canto escuro do quarto, em meio a uma estante de madeira, as luzes do possante Cobra 148GTL.
O moderno indicador de canais funcionava com leds vermelhos. Uma luz verde indicava quando estávamos ouvindo e uma vermelha acendia ao se apertar o botão do microfone, igualzinho aos dos carros da polícia dos filmes americanos. Era sinal que estávamos transmitindo. A intensidade do que ouvíamos ou falávamos era indicada por uma agulha dentro de um mostrador de luz amarela.
O Cobra funcionava em AM ou SSB e vinha com 40 canais de fábrica. Era possível ‘abrir’ o rádio analógico colocando um cristal e ganhávamos mais quarenta e poucos canais.
Cada canal era um espaço para uma conversa. A conversa podia acontecer entre quantas pessoas quiséssemos, mas com a condição básica de que apenas uma pessoa falasse de cada vez. O rádio transmissor não recebia ao mesmo tempo que transmitia. Então, ou a gente falava ou escutava.
Portanto, para organizar uma conversa nesse sistema eram necessárias algumas coisas. Em primeiro lugar dizer ‘câmbio’, ‘vai’ ou qualquer outra coisa que indicasse para a pessoa com quem você estava conversando que era a vez dela falar. Isso ajudava o receptor a ter certeza de que você havia terminado sua fala e não tinha dado uma pausa breve entre pensamentos. Ou, em outros casos, que seu sinal não havia ‘sumido’, o que era muito comum quando estávamos com o rádio no carro em movimento.
A outra questão era organizar uma roda com muitas pessoas. Com muita gente para falar no mesmo canal, era indispensável ter um comandante da roda, que anotaria a ordem em que as pessoas haviam chegado e passava a vez de um para um.
Uma última coisa, fundamental em uma conversa animada, era deixar um espaço entre o ‘câmbio’ do seu colega e o começo da sua fala, para que os ‘corujas’ (alguém que estava escutando a conversa mas ainda não havia se pronunciado) tivesse a chance de se anunciar e pedir para ser anotado pelo comandante da roda para ter uma vez para falar.
As pessoas voltariam todas as noites ao mesmo canal durante anos para falar com o mesmo grupo. Tanto que os grupos aos poucos ganhavam nomes, organizavam reuniões. Daí saiam namoros, casamentos, brigas. Ainda tenho aqui em algum lugar meu diploma dos ‘Tubarões de Copacabana’, meu grupo de amigos do PX. Falavam todos em código: ‘falar’ era ‘modular’, ‘microfone’ chamava ‘ppt’, ‘entendido’ era ‘qsl’ e por aí afora.
É claro que meu primeiro PX não foi um Cobra nem tinha SSB, que permitia a gente falar entre distâncias maiores. Era um Lafayette HB 650, com apenas 23 canais (foto). Se alguém quisesse marcar um papo no canal 35 eu não podia ir. Mas eu me divertia muito com o radinho aos nove anos de idade. Muitas vezes dormi com ele ligado ao lado da cama, sem ninguém falando, apenas com o ruído da estática do silêncio. E depois de uns tantos anos cheguei a ter o meu Cobra, com tudo que tinha direito, mas aí os papos já não tinham mais tanta graça.
Outro dia vi um filme de terror bastante ruim, onde um caminhão misterioso seguia dois rapazes e uma moça pela estrada. Um dos garotos encontra um rádio PX no carro (nos EUA é chamado de CB – citizen band), começa a usar e diz: “meu Deus, isso aqui é a internet pré–histórica!”.
E eu, que nunca tinha feito o link até então, fiquei impressionado. Sem me dar conta, eu havia circulado durante anos nas salas de chat da ‘pré–história’.
Pouco mais de duas décadas se passaram e esses rádios Lafayette e Cobra hoje realmente pertencem à pré–história da tecnologia.
GSM, voz sobre IP, chats com vídeo, Tivo, banda larga, SMS, MMS, redes WiFi, uma quantidade interminável de siglas e criações tecnológicas incríveis inundam o mundo com porrinholas digitais fantásticas, muito mais avançadas e poderosas. Qualquer celular é hoje um rádio em potencial e podemos falar com gente de todo o mundo, ao mesmo tempo.
Mas na raiz de todas estas novidades, uma única e verdadeira mudança liga o PX direto à comunicação do futuro: a tecnologia permitirá que todo os meios de comunicação deixem de ser unilaterais e sejam bilaterais ou, como tantos gostam de chamar, interativos.
Para quem trabalha e pensa comunicação, não importa se o rádio é analógico, ou se o device é feito com nanotecnologia e funciona dentro de uma rede WiFi. O que importa é de que forma trabalharemos a possibilidade da interação na comunicação.
Com o que interagir? Para que interagir? Quando interagir? O que fazer com as respostas? Quem serão os Tubarões de Copacabana do futuro? Quem interagir verá.
[Webinsider]
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Michel Lent Schwartzman
Michel Lent Schwartzman (michel@lent.com.br) é um empreendedor serial e especialista em marcas e negócios digitais, com sólida experiência em acompanhar carreiras e aconselhar empresas. Pioneiro na indústria digital, é formado em Desenho Industrial pela PUC-Rio e mestre pela New York University. Ao longo de quase 30 anos, fundou e dirigiu agências e atuou como CMO em grandes fintechs, além de prestar consultoria para diversas empresas globais
4 respostas
Ah… a propósito, lembra das gincanas que faziamos (CAÇA A RAPOSA) e cujo ponto de encontro era numa sorveteria?
Michel, você me fez relembrar nosso velho GTC, do qual fui um dos fundadores. Lembro ainda do Cláudio PX1-6700, do Naon PX1-4327, do Leonam, Seu Mário, Wagner (o Wagner Montes), Daniela, Robertinho (do táxi, que morava na Rodolfo Dantas, Marcel (que depois foi ser piloto na Varig), Charles (o que faleceu, do Hells Angels) e outros. Nossa barraca na praia ficava próxima ao Copacabana Palace, em frente à Rodolfo Dantas, Lembra?
Grande abraço
Marcelo PX1B-0755
CoMo SeRa AmAnHa???
Prezado Mario,
Tudo bem?
Esta leitura é para Você recordar seus bons tempos.
Um abraco!
Moacyr