Leminski

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Quem tem menos de quarenta anos não deve nem saber o que significa a palavra catatau. Para poupar a visita ao dicionário: catatau é sinônimo de coisa grande e volumosa. Geralmente se refere a material impresso.



Os que já estão entrando na meia–idade (como o tempo passa rápido) vão se lembrar provavelmente de duas referências. A mais famosa é a televisiva: o urso baixinho de voz anasalada, parceiro do Zé Colméia. Divertiu muito as nossas jovens tardes de domingo e dos outros dias da semana. E ainda hoje pode ser visto na TV a cabo, para alegria dos hoje provectos senhores pais de família.



A segunda referência também pode ser vista ainda hoje, depois de anos desaparecida. E é a mais importante. Com a republicação da obra–prima do poeta curitibano Paulo Leminski, o romance–idéia Catatau ganha uma edição definitiva e deixa de ser um ex–estranho.



Ou assim esperamos. Porque Catatau continua sendo um dos livros mais ignorados da nossa literatura. O “bandido que sabia latim”, segundo a ótima biografia de Toninho Paes, não sabia apenas latim (idioma do qual traduziu o Satyricon, de Petrônio), mas também japonês (Bashô, de quem traduziu diversos haicais) e, principalmente, português. Paulo Leminski sabia português como poucos. E escreveu neste livro o que muito crítico ainda acha heresia: uma narrativa que não deve nada a Grande Sertão: Veredas.



Cautela, roseanos radicais: não estou querendo aqui lançar um concurso de quem é o melhor escritor brasileiro de todos os tempos. Guimarães Rosa mudou para sempre a maneira de encarar a linguagem com sua prosa sertaneja e clássica ao mesmo tempo, mineira em sua prosódia e grega em sua estrutura trágica. Mas isso foi nos anos 1950: Leminski, leitor de Joyce e da poesia de mimeógrafo dos anos 1960/70, era de outra geração. E construiu seu sertão com as veredas que existiam em seu tempo.



As pedras no meio do caminho eram um estranho e ousado misto de literatura alternativa (sim, senhores, o que hoje é considerado um subgênero da ficção científica, pasmem) onde o filósofo René Descartes acabou vindo integrar a comitiva de Maurício de Nassau no Recife. E é no exótico jardim botânico dessa cidade que Descartes, sentado à beira de uma árvore, fumando uma estranha erva (estranha naquele tempo, mas que é bem nossa conhecida hoje), alterna elucubrações filosóficas e honestos delírios, enquanto espera um amigo que há de lhe esclarecer uma séria dúvida filosófica (que não sabemos ao certo qual é e que o amigo, ao chegar na última linha do livro, completamente bêbado, continua sem nos revelar). Mas entregar o final do livro aqui é o de menos: o que interessa no Catatau é o fluxo ininterrupto de prosa poética de suas páginas, prosa que também lembra o Finnegans Wake de Joyce e oferece ao leitor a possibilidade (apenas vislumbrada timidamente por Cortazar em O Jogo da Amarelinha) de efetivamente iniciar a leitura do ponto em que desejar, o que torna Catatau um romance–idéia e um livro–oráculo, um I Ching em prosa. E (para aqueles irredutíveis gauleses que gostam de Códigos da Vincis) ainda por cima com história.



A nova edição da Travessa dos Editores veio substituir a da Sulina, que andava sumida das prateleiras. E a editora de Fábio Campana deu o devido valor ao polaco–curitibano mais querido do Brasil. Ao invés da figura de Descartes ostentada pela outra edição, o novo Catatau apresenta, num alentado volume de capa dura, uma foto simples de Leminski novo, barbado, sentado de pernas cruzadas. Nu, simples como a capa que de resto é branca. Descartes entra na lombada e na quarta capa, pretas e sóbrias, bem como era em seu tempo de puritanismo europeu e guerras entre católicos e protestantes. Um puritanismo que definitivamente não ocorre no Catatau.



A nova edição não contém apenas mudanças cosméticas. No final do livro, o leitor interessado em conhecer mais sobre a figura do poeta/compositor/escritor vai travar contato com uma farta documentação: uma iconografia, composta de fotos de Leminski, sua esposa Alice Ruiz, os filhos Áurea, Estrela e Miguel (este último, falecido precocemente). Além disso, há também uma seção de explicações sobre o cotejo, ou seja, a comparação entre a cópia datilografada por Leminski e as duas edições anteriores, cada qual com pequenas diferenças editoriais. Um cuidado quase artesanal, amador no melhor sentido (de amador como sendo aquele que ama), e que compensou os esforços.



Catatau é coisa para caramba. Catatau é um riverrun, como diria Joyce, um riverão, como diria Glauber. Enquanto hoje tanta gente fala, fala e não tem nada a dizer, Leminski foi lá e aplicou um belo golpe de karatê nas pretensões literárias da terra brasilis: escreveu uma obra pós–moderna que fala, fala e diz tanta coisa que ainda hoje não se decifrou todo esse caudal de conteúdo. Da missa, meus filhos, não se sabe ainda a metade. Mas Leminski (e agora, seus editores) fez a sua parte. Agora é com a gente. Agora é que são elas. [Webinsider]



Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.

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2 respostas

  1. Bela exposição do livro, parabéns, é isso mesmo
    o livro é muito pouco lido, mas é muito bom.
    Também achava e fui lá estudar o tal,
    em maio de 2007 defendo tese em Rio Preto sobre o livro,
    mais uma contribuição para a leitura do mostro.
    Um abraço,
    Daniel

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