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Por Ricardo Bánffy.

Eu escolho bem meus amigos. Eu sei que sempre posso confiar neles.

É mais ou menos por isso que eu achei divertida uma expressão com a qual tomei contato esses dias: “amicus curiae”. Amicus Curiae é aquela pessoa ou entidade que se oferece para ajudar uma corte a formar uma opinião. Quer dizer “amigo da corte”.

História

Há algum tempo atrás, descontente com uma lei do Estado do Rio Grande do Sul que favorecia a escolha de software livre nas compras dos órgãos do governo, o PFL interpôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Funciona assim: a Constituição do país é o conjunto de leis mais importante e nenhuma lei abaixo dela pode contrariá–la. Se a Constituição disser que você tem o direito de tentar assobiar enquanto chupa um limão ou dizer “farofa” enquanto come paçoca, nenhuma lei, estadual ou municipal, pode proibí–lo disso. Se uma lei for julgada inconstitucional, ela perde o efeito e passa, mais ou menos, a “nunca ter existido”.

Se Direito fosse mágica, esse seria um encantamento dos mais poderosos.

Em uma manobra que, eu pessoalmente acho, foi cronometrada para evitar que opiniões contrárias se manifestassem da mesma forma, a ABES (Associação Brasileira das Empresas de Software) e a Assespro (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação, Software e Internet, versão modernizada do original, Associação das Empresas de Processamento de Dados) pediram ao Supremo Tribunal Federal para serem “amica curiae”. O pedido foi aceito e a ABES passou a ser considerada “amiga da corte”.

Tirando os anexos, a petição tem umas 20 e poucas páginas e se divide em três pedaços: o primeiro justifica o pedido, o segundo aproveita a oportunidade e já dá a opinião da ABES e da Assespro sobre o que a corte deveria decidir e o terceiro sobre a constitucionalidade de se preferir software–livre.

A primeira e a terceira partes são um deleite para os advogados. Como não sou um advogado, vou ficar com a segunda.

“Concepções Errôneas Implantadas pelo Senso Comum”

Não é de se surpreender que a ABES e a Assespro defendam os interesses dos grandes fabricantes de software. Afinal, devem ser eles que mais contribuem com o custeio das duas entidades.

Mas defender os interesses de alguém tem limites.

Eu gostaria muito de poder acreditar que eles ainda não entenderam o que é software livre, o que é software proprietário e quais as diferenças e vantagens de cada um. Eu, pelo menos, não tenho mais energia para explicar isso de novo. Todo mundo já falou muito disso. Como diria um amigo meu, eu e a torcida do Flamengo.

Infelizmente, não consigo acreditar que quem arquitetou essa manobra seja tão simplório ou que tenha uma severa limitação de aprendizado. Afinal, são a ABES, a Assespro e um bom escritório de advocacia.

Essa segunda parte da petição, a parte em que a ABES e a Assespro expõem suas opiniões, está repleta de “concepções errôneas implantadas pelo senso comum” (eles usam essas palavras).

Mas vamos começar pelo começo.

Imediatismo

Na página 270, no último parágrafo, a adoção do software livre é chamada de “imediatista” e “falsamente menos onerosa”. Eles dizem isso porque o custo de licença costuma ser nulo, mas os custos de implantação, eles dizem, são mais altos.

Temos bem à mão o exemplo do Office dos deputados, a tentativa de compra de licenças de Office pela Câmara dos Deputados (uns R$ 6 milhões). Uma das justificativas apresentadas foi a de que alguns sistemas da casa dependiam do Excel e que não funcionavam com o OpenOffice.

Pois é. Alguém, em algum momento passado, escolheu incorporar o Excel como componente de um software que a Câmara usa por considerar que essa seria a forma menos custosa de desenvolvê–lo. Imaginemos (chutando muito alto) que, por escolher esse caminho, o projeto original gastou R$ 100 mil a menos do que teria custado se tivesse optado por outra alternativa. Gastou menos e, com isso, economizou dinheiro público? Certo?

No fim, não. Essa escolha infeliz quase resultou em R$ 6 milhões em gastos com licenças de Office. Usando as palavras da ABES, eu diria que essa foi uma escolha imediatista e falsamente menos onerosa. Só não custou mais caro porque alguns parlamentares de bom–senso torpedearam a licitação (que tinha algo esquisito, além do mais).

Garantia

Na página 271, eles insinuam que software livre não conta com a “responsabilidade pelo seu artífice e disponibilizador”. Qualquer um que já leu uma licença de software proprietário sabe perfeitamente que o fornecedor não garante seu funcionamento ou adequação ao propósito para o qual ele foi comprado e blá blá blá. Eu me lembro de uma licença de uso de um banco de dados proprietário muito popular no mercado que, inclusive, proibia seus usuários de conduzirem testes e de publicar resultados. Se a nem Microsoft quer garantir que seu Windows funcione ou que seu Office sirva para aquilo para o que você o comprou, que vantagem o usuário tem?

Mais: no caso do software livre, quem garante também não é quem fez, mas quem vendeu. Quem garante que seu servidor de arquivos funciona não é o pessoal do samba.org, mas a empresa que instalou – e que cobrou por instalação e suporte, não pela permissão de uso. Isso tem a vantagem de uma relação mais próxima entre o cliente e aquele que garante que o produto funciona do jeito que devia. No caso do software livre, quem vendeu pode garantir isso porque tem o mesmo acesso ao código–fonte que todos os demais têm, incluindo aí os próprios desenvolvedores.

Na página 273 explora–se novamente a garantia dos produtos: “Os softwares comerciais são garantidos por aqueles que desenvolvem a tecnologia, os quais tornam–se responsáveis pela qualidade e operacionalidade do produto”. Você já tentou devolver o seu Access porque ele não aguentou seu banco de dados? Já conseguiu de volta o dinheiro que você pagou por aquele anti–vírus que deixou algum vírus passar? Pois é. É um mercado em que os únicos que garantem alguma coisa são usuários e desenvolvedores pequenos. Quando eu entrego um software que foi feito para rodar em Windows (os clientes, às vezes, pedem), eu acabo dando garantia sobre o programa e sobre o Windows em que ele roda. Se a bomba estoura, a culpa é minha. E, se meu cliente ligar pra Microsoft, eles vão acabar dizendo isso mesmo. A culpa nunca é deles.

Pergunta pra Microsoft se é culpa dela que o programa da Câmara não roda com o OpenOffice. Claro que não é. A culpa é do cara que escolheu Excel lá no começo.

Como se tudo isso não bastasse, existe uma relação, muito perceptivel em projetos caros, entre satisfação do cliente e escalão do funcionário que assinou o cheque. Quanto mais alto o escalão (e mais gordo o cheque) mais provável será que a implantação seja um grande sucesso, que o produto atenda completamente as necessidades da empresa e que isso a deixe muito mais preparada para competir no mercado em que atua. Ao menos, é o que dizem os press–releases. Funciona assim – se for muito doloroso demitir o resposável pelo projeto que atrasou, estourou orçamento e nunca funcionou direito, todos fazem de conta que a porcaria que foi comprada faz exatamente o que se queria que fizesse. Eventuais céticos, dissidentes ou potenciais testemunhas acabam sendo demitidos (eles sairão para “buscar novos desafios”).

Direito Autoral

Na página 272, no último parágrafo, se estabelece a noção errônea de que software proprietário ser protegido por direito autoral é uma distinção em relação ao software livre. Não entendi bem que ponto da ABES/Assespro isso demonstra, mas está errado, de qualquer modo. Todos os contribuidores individuais do kernel do Linux mantém seus direitos autorais. As partes da IBM continuam da IBM, as partes da Silicon Graphics continuam dela e as partes que o Linus Torvalds escreveu continam propriedade do Linus Torvalds. E ai da IBM se ela pegar o pedaço que a Silicon fez pra usar no AIX (o Unix–like proprietário dela). E, se você achar que isso não vale aqui no Brasil, a lei nº 9.609, de 19/2/98 fala precisamente isso, no seu artigo 2º.

Será que esses advogados leram a petição que escreveram? A qual aula eles faltaram?

Academia e Academismos

Também na 272, fala–se que software livre se origina no meio acadêmico. Tirando o fato de existirem ótimas cabeças no meio acadêmico e que elas costumam dar grandes contribuições, existe um enorme corpo de software que nunca viu uma faculdade na vida. O ambiente de desenvolvimento integrado NetBeans começou como um projeto da Sun. O Eclipse, como um projeto da IBM. O servidor de aplicações Zope (excelente, aliás – eu uso e recomendo) começou como uma ferramenta de uso interno da Digital Creations (hoje Zope Corp.) e teve seu código aberto por insistência de um investidor. Eu poderia continuar a lista por muitas páginas mas, na minha opinião, está claro que a idéia de que software livre seria coisa do meio acadêmico é uma “concepção errônea implantada pelo senso comum”. Eu só não culparia tanto o senso comum – culparia uma evidente surdez seletiva.

Adaptação e Adaptabilidade

Eles ainda dizem que software–livre tem que ser adaptado e que isso dificulta seu manejo. Não sei de onde eles tiraram essa. Nos meus computadores, muito pouco software é modificado. A maioria está exatamente como é distribuído oficialmente. Quando ele é, de fato, modificado, essas modificações são devolvidas aos mantenedores para que possam ser incorporadas às versões futuras (o que traz o benefício de que outros passam a cuidar delas).

Pior seria não poder adaptar o software às necessidades do cliente (que é o que costuma acontecer com software proprietário).

Eles vão ainda mais longe, anexando o parecer de um perito, (página 274) que afirma que com software proprietário não há gastos de adaptação, porque “ele está feito para ser compatível com as formas existentes”. De fato, deixar como está costuma sempre sair mais barato na hora.

O que ele esquece de mencionar é que existe um custo contínuo de renovação das licenças. Em dado momento, haverá incompatibilidade entre o que você já tem e o que o fornecedor quer ou pode vender. O produto que você usa pode não receber as vitais atualizações de segurança. O suporte pode ser interrompido. Tudo isso pode obrigar seu upgrade. Quando metade do seu escritório funciona muito bem com Office 97, o que você acha de ser obrigado a escolher entre trocá–lo por Offices 2003 ou a ter problemas na troca dos arquivos? Quando seu Oracle mais antigo não fala mais com as ferramentas de gerenciamento, é divertido pagar alguém para migrar os dados (e correr o risco de parar a empresa durante alguns dias)?

Quando você usa software livre, você se atualiza quando você achar que é hora, não quando o fornecedor precisar de uns trocados.

Ainda quanto a isso, o que vale mais para a administração pública? Pagar menos hoje e ter que continuar pagando sempre, porque os programas, os dados e todo o ecossistema ligado a eles depende de um produto “perecível” que tem que ser periodicamente “renovado”, ou tomar de uma vez as rédeas desse processo e poder decidir como e quando investe seus recursos?

E se o software não se adaptar perfeitamente, é bom negócio investir no seu desenvolvimento? Antes de responder, leve em conta que o usuário de software livre se beneficia de todos os investimentos feitos em seu produto por todos os usuários dele. De volta ao exemplo do Linux, a HP investiu nele e, por conta disso, empresas podem usá–lo em supercomputadores Itanium da Silicon Graphics. A Silicon Graphics investiu no Linux e, por conta disso, eu tenho acesso mais rápido aos arquivos no meu servidor IBM. Quando alguém na Malásia soluciona um bug no servidor de e–mail que eu uso, eu e todos os demais usuários dele somos beneficiados por isso.

Se a Administração Pública Federal investe recursos nos programas livres que ela usa, os benefícios desse investimento são multiplicados por todos os outros usuários do sistema e de seus derivados.

A matemática do software proprietário, de segredos, competição e duplicação de esforços não tem como competir com o modelo de software livre, de abertura, cooperação e uso eficiente de recursos.

Segurança e Auditabilidade

É claro para mim que ABES e Assespro não iriam mencionar a relação entre a disponibilidade do código–fonte e a capacidade de garantir a aderência do programa à sua especificação, de forma a garantir, sob todas as condições práticas, que ele faça apenas o que é especificado.

É impossível, a menos que você confie integralmente no autor do programa, você ter certeza de que ele só faz aquilo para que ele foi projetado ou contratado. Isso é importante na iniciativa privada e importantíssimo em funções governamentais. As consequências de perdas de dados ou de vazamentos de informação podem ser por demais desastrosas. Eu me lembro de um mal–estar gerado por um arquivo redigido em Word que manteve suas versões anteriores, com dados de um outro documento anterior no qual ele foi baseado. Mais recentemente, o governo dos EUA divulgou um documento censurado em vários pontos que, quando examinado, mantinha os trechos de texto que deveriam ter sido removidos.

Em outro artigo eu mencionei que o mais prolífico espião dos EUA durante a Guerra Fria tinha sido uma fotocopiadora instalada na embaixada soviética em Washington. Além de copiar, ela microfilmava todos os originais.

Software livre não é imune a bugs ou problemas de segurança, mas a disponibilidade do fonte, que é apenas opcional com software proprietário, permite que problemas como esse sejam descobertos por qualquer um e não apenas pelo fabricante do produto que, normalmente, não tem os recursos necessários para auditar completamente o código (ou não teríamos o alarmante número de vírus e worms que temos hoje em dia).

Obrigação Moral

A ABES e a Assespro não mencionariam, em hipótese alguma, outra coisa muito importante.

Se a Câmara dos Deputados tivesse gasto os R$ 6 milhões em licenças de Office, esses R$ 6 milhões passariam brevemente pelas contas bancárias do distribuidor, que repassaria quase tudo para as contas da Microsoft no Brasil, que descontaria os gastos locais – essencialmente mercadólogos e lobistas e uma ou outra doação de campanha – e remeteria quase tudo para as contas da Microsoft em Redmond, que os acrescentaria ao gigantesco caixa que alimenta todos os seus escritórios e centros de desenvolvimento, por todo o planeta.

Nenhum centro de desenvolvimento fica no Brasil.

E, quando precisassem de mais licenças, seriam outros R$ 6 milhões. R$ 6 milhões aqui, dez lá e outro tanto acolá.

Por outro lado, os mesmos R$ 6 milhões, se investidos na adequação entre os sistemas da casa e o OpenOffice, gerariam empregos locais altamente qualificados (aproximadamente 600 homens x mês em empregos diretos). O dinheiro ficaria aqui e movimentaria a economia local.

E, quando precisassem de mais cópias, a conta já foi paga. Uma só vez. Para sempre. Para qualquer um.

Bandeiras

O presente governo fez da geração de empregos uma bandeira. Vamos apenas torcer para que o grosso desses empregos seja gerado aqui, no Brasil, e não em Redmond, na Califórnia ou na Índia.

E quanto a amizades, espero que a corte tenha a sabedoria de escolher bem seus amigos. Eu não chamo de amigos aqueles que tentam me enganar. [Webinsider]


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Ricardo Bánffy (ricardo@dieblinkenlights.com) é engenheiro, desenvolvedor, palestrante e consultor.

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Uma resposta

  1. É fácil entender essa jogadas de corte para desquilificar o software livre, afinal, estamos atualmente em um sistema que beneficia o uso, comercialização e consequëntemente a software proprietário no Brasil. Além de políticas públicas para implantação do Software livre no País, o governo federal deveria incentivar nossa já calejada indústria de software nacional, criando incentivos às software houses nacionais à produzir, comercializar e exportar software livre. Afinal, incentivando a produção de PCs com SO livre, a quem estes compradores irão recorrer para equipar de software para suas empresas? Lembrando: enquanto as industria de software exporta para o mundo, o brasileiro na maioria das vezes, adquire software proprietário estrangeiro, e muitas vezes pirata…

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