A história do áudio nos mostra um aspecto impressionante e recorrente da sua evolução: o de que todas as vezes que grandes saltos técnicos foram dados, estes saltos foram impulsionados primeiramente pelo cinema!
Não há dúvida de que a gravação da voz e dos instrumentos musicais foi um dos maiores sonhos do fim do século XIX. Os primeiros instrumentos para a gravação de sons foram desenhados para estudar a propagação das ondas sonoras, bem antes do aparecimento do fonógrafo, supostamente inventado pelo controvertido Thomas Edison.
A associação entre som e cinema iria, no entanto, demorar mais de trinta anos, e quando finalmente aconteceu, o que se fez foi usar o mais banal dos recursos existentes: o disco fonográfico. Este processo foi desenvolvido pela Western Electric, subsidiária dos Laboratórios Bell, nos Estados Unidos, e chamado de Vitaphone. Com ele foi lançado o primeiro filme sonoro de grande sucesso comercial: “The Jazz Singer“, com Al Jolson.
O processo de gravação de som em discos, para exibição de filmes de cinema, foi de relativa curta existência. Um dos principais motivos foi a sua falta de reprodutibilidade: quando o filme se partia e era emendado, o som perdia o sincronismo e não era possível ser consertado nem durante nem depois das exibições. Por causa disso, os produtores de cinema se valeram de um processo de gravação no próprio filme.
O “som-no-filme” foi inicialmente introduzido por um processo chamado de “Phonofilm“, aperfeiçoado pelo inventor da válvula Lee de Forest. Processos como o “Movietone” (Fox/Western Electric) ou o “Photophone” (RCA) foram posteriormente produzidos, com grande compatibilidade entre os projetores. Este último serviu de base, por exemplo, para a gravação multicanal do filme Fantasia, de Walt Disney e depois usado para arquivamento de trilhas sonoras, bem antes da invenção e comercialização da fita magnética.
O som ótico no filme, que é conhecido como “banda ótica”, teve o seu último grande uso como veículo do Dolby MP, conhecido como Dolby Stereo, em fins da década de 1970.
Entretanto, o som ótico continua a ser usado, em todos os cinemas de hoje. N.B.: Se o leitor quiser saber se o som que ele está ouvindo no cinema é ótico ou digital, basta reparar que quando o filme projetado apresenta uma emenda qualquer, o que se ouve na tela é um ruído de impulso, na forma de um estalo, resultante da passagem da emenda no leitor ótico. Quanto pior a emenda, mais alto é o ruído da banda ótica. Trilhas digitais não apresentam qualquer tipo de ruído desta natureza.
O desenvolvimento do Dolby Stereo foi baseado nos seguintes aspectos: o som de alta fidelidade não era possível, comparado com a da gravação em faixa magnética no filme (“banda magnética”); estes últimos se tornaram problemáticos e caros; o som ótico era de baixa relação sinal/ruído.
O Dolby Stereo dividiu a banda ótica em duas, gravando dois canais separadamente. Esses dois canais derivam o canal central e um surround mono, por algoritmo matricial. A qualidade e a relação sinal/ruído são engenhosamente preservadas em um processo do tipo “compander” (compressor-expander: compressão na gravação e expansão na reprodução) e pelo redutor de ruídos Dolby A da empresa. O processo é usado até hoje nas salas de exibição. Seu único concorrente foi o Ultra Stereo, lançado na década de 1980, mas com poucos filmes lançados.
Uma segunda versão do Dolby Stereo, em películas 70 mm, consistindo na adaptação das 6 faixas de banda magnética do sistema Todd-AO, precedeu o que a gente conhece hoje como Dolby Digital 5.1, o qual dividiu o surround mono em surround esquerdo e direito, em definitivo. Tentativas semelhantes haviam sido feitas, mas sem sucesso comercial aparente. Um deles, chamado de “Quintaphonic“, por exemplo, foi lançado com o filme da ópera-rock “Tommy”, mas abandonado a seguir (o leitor poderá ouvir esta trilha no DVD do filme). Outra, já com formato digital, foi o sistema Cinema Digital Sound (CDS), mas foi logo substituído pelo Dolby e pelo DTS.
Acima, mostra da parte lateral de um filme 35 mm de cinema: à esquerda, em azul se vê a trilha SDDS, entre as perfurações se vê a trilha Dolby Digital, e à direita é mostrada a banda ótica Dolby Stereo e o timecode DTS em azul, o qual se sincroniza com o áudio DTS, gravado em CD-ROM.
O áudio doméstico, principalmente aquele usado para a reprodução de música, sempre esteve preso a um ou dois canais. Houve época, e não tão distante assim, em que os estúdios se davam ao trabalho de gravar matrizes em até 4 canais, mas os discos que saíam das fábricas eram feitos com remixagens para mono, e nos casos onde a matriz original foi perdida, o que sobrou foi exatamente a fita mono, remixada para LPs.
Na década de 1970, foi feita uma tentativa libertária, muito mal sucedida, com o disco quadrafônico. O LP quadrafônico era péssimo, porque a multiplexação do formato matricial exigia freqüências tão altas, que eram rapidamente “raspadas” dos sulcos. O formato foi usado em fitas magnéticas, mas pouco práticas, e que exigiam equipamento dedicado. Entretanto, o motivo principal pelo qual o som quadrafônico não deu certo era de que o público não tinha ainda uma formação de opinião capaz de valorizar a expansão de dois canais. Na realidade, a grossa maioria dos audiófilos que eu conheci na minha vida foram pessoas que objetavam fortemente o uso multicanal, dois canais era mais do que suficiente para formar um palco frontal.
Este cenário somente foi mudado com o emprego do som surround no cinema. Até a década de 1970, o campo surround era esparsamente usado. O Dolby Stereo, e em particular o filme “Star Wars”, mudou tudo isso! Com ele foi implementado o conceito de que os melhores efeitos técnicos de som são conseguidos com a adição de um segundo campo de reprodução, o chamado “surround soundfield”.
Note-se que no campo frontal (3 canais da tela, no caso) é possível criar um palco com primeiro, segundo e terceiro planos (profundidade do palco), mas isso não resolve o espaço entre a tela e a platéia, e muito menos o trajeto do áudio dentro deste espaço. Para resolver isso com eficiência, é preciso usar o campo criado por um ou mais canais surround. E dentro dele, fazer o som se deslocar da frente para trás, através de técnicas de “panning“, obtidas mais facilmente hoje em dia nas mesas de mixagem.
Com a separação dos canais surround, posteriormente, foi possível ainda manipular o campo surround, deslocando sons em praticamente todas as direções. Enquanto o surround convencional é tipicamente composto por sons dispersos no ambiente (este é o meio, aliás, para saber se o Dolby ProLogic está corretamente instalado), o surround stereo, em 5, 6 e agora 7 canais, torna praticamente ilimitado o design de efeitos sonoros, para compor cenas ou momentos dos roteiros, onde o som passa a se tornar parte integrante do desenvolvimento da estória.
Enquanto estes novos conceitos não foram introduzidos e devidamente implementados por decoders adequados, nada havia mudado muito na reprodução de música no áudio doméstico. Antes da era ProLogic, a difusão doméstica era restrita ao chamado Dolby Surround, e mais primitivamente, ao chamado “circuito Hafler”, que muitos acreditam ser melhor do que o primeiro. Eu mesmo usei o Hafler na minha primeira instalação surround. O circuito funciona bem, se devidamente equilibrado. Com ele, eu ouvi satisfatoriamente trilhas de filmes como por exemplo Jurassic Park ou Crimson Tide, gravadas em LPCM, nos antigos videodiscos.
A extrapolação do Dolby ProLogic gerou, em ambiente doméstico, aos formatos ProLogic II (com o uso de 5.1 canais) e ProLogic IIx (para 6.1 e 7.1 canais), e nesses formatos é possível ampliar mais ainda o conceito do circuito Hafler, fazendo com que o som leve o ouvinte de música para dentro do palco, e não fique de frente para ele somente.
O cinema botou para frente a audição do áudio doméstico, embora os desenvolvimentos de formatos tivessem sido aplicáveis em ambos os ambientes.
Com o advento dos formatos de alta definição, cujos codecs mais se aproximam das fitas matrizes dos estúdios de gravação, estamos revertendo as expectativas em torno do progresso e do sucesso do som multicanal: a de que hoje é possível ter som de cinema em casa, de melhor qualidade do que na salas de exibição! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
5 respostas
Paulo:
Foi um prazer encontrar o Ray Gillon como leitor da tua coluna,o que prova o excelente valor tecnico da mesma.
Caso o Ray volte a ler, fica um recado:
Prezado Ray.
VC foi sim um marco tecnico na Som Livre e tornou a nossa equipe na epoca uma das melhores do Brasil em som para cinema. Pena que a coisa nao foi para frente. Hoje temos muitos estudios espalhados pelo pais trabalhando em Dolby digital, alguns deles muito bons mesmo. Mas com a crise do CD, a Som Livre encolheu e hoje so possui um estudio, gravando no famigerado (mas tecnicamente bem-vindo) ProTools. Eu atualmente presto consultoria e alguma manutençao. O resto da equipe infelizmente se dispersou. E,conforme vc constatou, conheci Paulo Elias, cinefilo emerito e possuidor de um conhecimento tecnico absolutamente invejavel.
Bem, se algum dia VC vier ao Rio, me avise.
Regards, Nolan
Gostei muito leer o articulo. O Nolan disse que eu ensinei muito. Isso e facil quando um equipe como ele de Som Livre foi preparado aprender. Foi uma boa epoca. Tenho saudades com boas lembrancas.
Ray, Londres.
formatos de sons
formatos de videos
formatos de imagens
preciso saber como fociona esta tv gato. O que precisa para posuir. Qual o custo. Obrigado pela as informações
Excelente o artigo do Paulo Elias. Aqui na Som Livre, tivemos um estudio modificado para Dolby pro-logic e calibrado por um engenheiro da Dolby chamado Ray Gillon, que nos ensinou muito. Apenas um adendo: na codificação, o canal central é obtido pela soma dos canais L e R, enquanto que o canal traseiro(mono, mas saía em duas caixas) era obtido com a diferença dos canais L e R.
A Som Livre possuiu muito equipamento de primeira linha na epoca e chegamos a fazer apenas sete filmes, de produção nacional. A coisa não deu certo porque as produtoras aqui economizavam num teste chamado de cross-modulation que checava o tempo de esposição de cada lote de negativo em 35mm. Como o som ótico tem sua definição em altas frequencias (acima de 12k), a exposição é importantíssima, pois erros eliminavam a resposta a estas frequencias, resultando em som abafado e distorcido. Tivemos também que verificar o som em vários cinemas e a coisa ficou cansativa e inviável. Até hoje tenho um filme de calibração em 35mm da Dolby. Virou relíquia.
Nolan Leve