Steve Jobs e Tim Berners-Lee são duas das personalidades mais influentes da história recente da humanidade. O mundo da tecnologia – e consequentemente, o mundo todo – definitivamente não seria o que é hoje, se não tivessem eles realizado o que realizaram.
Aos mitos, porém, cabem, além das justas glórias, atribuições de feitos que não foram deles, tamanha a magnitude do seu brilho. Foi o caso das duas reportagens que comento abaixo.
É impressionante – e lamentável – a frequência com que a grande imprensa peca ao mergulhar em temas que não são de domínio público, quando dela esperamos, justamente, que nos esclareça, informe e embase.
Já explico: em uma mesma semana, li duas reportagens sobre dois ícones do nosso tempo, em dois respeitáveis veículos impressos. E ambas continham equívocos significativos. A primeira delas foi na revista Exame e falava sobre Steve Jobs, da Apple. A segunda foi no Meio & Mensagem, publicação conhecida e reconhecida da área de propaganda e publicidade, que falava sobre Tim Berners-Lee, cientista, pesquisador e lenda viva.
Aproveito e falo um pouco sobre ambos, resgatando alguns fatos.
Vamos começar por esta última. Para quem assina o Meio&Mensagem, é a edição 1343, de 26 de janeiro de 2009. Na página 43, justamente na seção ?digital?, uma intrépida repórter relata os acontecimentos da Campus Party Brasil – evento cada vez mais representativo no meio internet – em uma página inteira dedicada ao assunto. Tudo ia muito bem, até o box ?Batismo na rede?.
Ali, temos a foto do já acima citado Tim Berners-Lee, com a seguinte legenda: ?pai? da internet faz previsões sobre o mundo digital. Blasfêmia, blasfêmia!!! Perdoai-os, senhor? O Tim é, na verdade, o pai da web. Do www. Não da internet. Sim, existe diferença e ela é grande. Apesar deste engano ser comum (e cada vez mais, graças a matérias como esta!), internet é uma coisa e web é outra. No meio da matéria ele até é citado como o criador da World Wide Web, o que, isso sim é correto, mas acabou passando o recado de que web e internet são sinônimos?
Bem, vou economizar texto e colocar esse link aqui, onde já expliquei tudo isso, anos atrás. Só pra resumir, a World Wide Web (a “internet gráfica”, com multimídia) e seus protocolos foram criados pelo Tim entre 1989 e 1991. Mas antes disso, bem antes, já existia internet, gente! E o pai dela é o Vinton Cerf, outra lenda viva e hoje vice-presidente do Google.
Já a mãe, pode-se dizer que é a ARPANet, rede militar criada em 1969. Desde esta data, já havia computadores interligados em rede por um padrão descentralizado – a lógica e a grande sacada da internet. Não muito tempo depois disso, o Vinton desenvolveu o nosso até hoje utilizado Internet Protocol, o famoso IP.
Reparado este ponto, vamos ao caso do Steve Jobs. Ninguém nega que ele é genial. Nem que foi ele o responsável por trazer ao nosso cotidiano facilidades e avanços incríveis, como tudo o que está relatado na matéria da Exame no. 935, de 28 de janeiro de 2009. Mas não se pode deixar dúvidas, como no caso do parágrafo aí de cima, de quem é o pai de quem? Popularizar algo não significa ser o criador deste algo. De fato, a revista não afirma explicitamente que foi Jobs quem criou o mouse, nem que foram ele e a Apple que desenvolveram a interface gráfica para os computadores. Mas leva a crer que sim.
Fala genericamente nas ?criações de Jobs? apenas alguns parágrafos após ter citado aquelas inovações? E quem não conhece os fatos, acaba por achar que Jobs e a Apple são maiores do que são. E eles já são gigantes! Sem dúvida que são. Acontece que grande parte das inovações que hoje utilizamos – e que a reportagem venera – foram concebidas, ironicamente, por uma empresa conhecida por ?copiar? (fotocopiar, na verdade): a Xerox!
Foi no lendário PARC (Palo Alto Research Center), na Califórnia, que a Xerox gestou grandes inovações que perduram até hoje. O primeiro computador ?pessoal? a utilizar o mouse e a interface gráfica, inclusive, foi o Xerox Alto (1973) e não o Macintosh (1984). Ocorre que Jobs fez do Macintosh um sucesso e o colocou nos lares dos cidadãos comuns. E é este seu grande mérito.
Mas vamos ao pai das crianças, então? O mouse foi concebido no Stanford Research Institute, pelo genial pesquisador Douglas Engelbart. Foram dele, também, os esforços que criariam o hipertexto e as interfaces gráficas.
Agora, uma curiosidade interessante sobre as duas histórias que cito aqui: em dado momento, elas se cruzam! O computador que Tim Berners-Lee utilizou como primeiro servidor web era um NeXT, do Steve Jobs! (computador desenvolvido na NeXT Computer, empresa que Jobs criou no período em que esteve fora da Apple).
Veja uma foto do NeXT utilizado como servidor por Tim Berners-Lee.
Uma outra curiosidade, já que estamos falando tanto de paternidade aqui, é que acharam um novo pai para o iPod!. Confira aqui, aqui e aqui. Mas isto já é outra história, polêmica, inclusive. Prefiro ficar com as certezas dos fatos acima.
Para saber mais, clique:
- O que é a internet
- O que é a World Wide Web
- Quem é Tim Berners-Lee
- Quem é Vinton Cerf
- Veja o que foi gerado no Palo Alto Research
- Quem é Douglas Engelbart
- Conheça a NeXT Computer, outra empresa que Steve Jobs teve.
[Webinsider]
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Ricardo Formighieri de Bem
Ricardo Formighieri de Bem (ricardo@divex.com.br) é sócio-diretor da Divex - Internet gerando valor, foi diretor da ABRADi RS - Associação Brasileira dos Agentes Digitais - RS durante dez anos e escreve regularmente sobre Internet. Mais no Google.
7 respostas
Lembre-se. Quem criou o mouse foi Doug Engelbart.
Uma coisa é fato, se dependesse da mente revolucionária de empresas como IBM, Xerox e HP, Tim Berners-Lee nunca teria tido acesso ao NeXT e nossos computadores pessoais seriam do tamanho de geladeiras.
Naquela época essas empresas eram muito boas para fazer dinheiro, a característica que possibilitava isso era o poder de controlar o que iriam mostrar, quando iriam mostrar, quanto o mercado estava disposto a pagar ou ainda quem estava disposto a pagar.
Mas sem dúvidas elas pesquisavam e tinham excelentes cabeças pensantes, uma delas era Steve Wozniak, co-fundador da Apple e o criador do primeiro Mac. Jobs? Marketeiro e aproveitador, o que não o faz menos inteligente do que um técnico.
Oi, Ricardo!
Você tocou em temas pelos quais eu ainda tenho uma visão, digamos, apaixonada!
A história não trouxe justiça à figura de Doug Engelbart, e assim ele se juntou a muitos outros pioneiros da ciência que nunca tiveram o devido crédito pelas contribuições que fizeram. No caso de Engelbart, chega a dar pena. Eu ainda tenho comigo um programa da BBC, onde o documentarista comenta que ele passava pelo campus da Universidade de Stanford sem ser reconhecido por nenhum estudante. E ele mesmo fala, numa entrevista onde mostra visíveis sinais de depressão, que o momento em que o mouse apareceu não era propício para que as pessoas entendessem a mudança de tendências. E creio eu que isso se aplica de forma contundente à própria interface gráfica (GUI), que rolou durante anos pelos laboratórios, sem aplicação alguma.
No início da Internet na UFRJ, era tudo feito com comandos digitados pelo usuário e na tela só se via texto. Naquela época, eu fiz um esforço no laboratório para juntar alunos e professores, em torno dos meios que tornavam a comunicação em rede possível. Mas foi justamente no meio dos meus próprios colegas que a idéia em si não foi adiante, mesmo que fosse possível a troca de mensagens por e-mail (recurso que, a meu ver, alavancou o uso da Internet pelos não iniciados). As pessoas simplesmente não se interessaram. E quem iria culpá-las? O número de comandos e as sintaxes davam para encher um dicionário!
Eu não sei se essas coisas são fruto da preguiça de se aprender e assimilar coisas novas, ou se as interfaces gráficas conseguiram de fato estimular a criança que existe dentro de todos nós, mas o fato é que, em ambos os casos citados em sua coluna, foi a interface gráfica que permitiu que sistemas operacionais e a Internet tivessem hoje o uso que têm.
Parabéns pelo texto!
É por isso que não tenho mais paciência em ler revistas e jornais. Além dessas confusões, há também professores de universidade afirmando que o primeiro sistema operacional foi o MS-DOS, tem que ter paciência mesmo!!!
Simplesmente este bando mauricinhos e patricinhas que não conhece nada do nosso meio vem querendo alterar a história a seu belo prazer. Por ignorância ou por preguiça de pesquisar afirmam um monte de besteiras aleatórias e consequentemente destruindo a história da informática.
Eu acredito que os meios de comunicação tem o objetivo de informar corretamente, porém se houverem muito detalhes técnicos o texto acaba não ficando atraente para um determinado público que não é ligado à informática, tecnologia e etc.
Eu pessoalmente considero como inventor de algo aquele que acreditou e popularizou, muitas vezes o idealizador mesmo não acreditava no próprio projeto.
O fundo da história, aquela parte mais desconhecida e remota talvez só interesse para nós, fãs de tecnologia.
http://tecnologiainc.blogspot.com
Olá, Ricardo
Excelente a desmistificada, porque fica parecendo que esses caras são sobre-humanos e que deram um salto quântico. E não foi: são grandes inovadores e implementadores, mas se basearam no trabalho de um monte de gente que os precederam.
No caso da internet, faltou dar um passinho atrás: conceitualmente, o link de texto – que é a base da internet gráfica – foi concebido na década de 60 por um cara chamado Theodore Nelson, que desenhou o conceito de rede implementado parcialmente por Berners-Lee. Enfatizo o parcialmente, já que a proposta do Ted Nelson ainda não foi completamente implementada. O nome hipertexto, foi ele quem criou.
E antes do Nelson, um cara chamado Vannevar Bush publicou um artigo visionário, no qual modelava uma máquina de armazenamento e recuperação de informações, o Memex, que seria o precursor eletromecânico do hipertexto.
Deste último cara, ainda se fala um pouco mais; do Ted Nelson, fala-se muito pouco.
Grande ação do seu artigo: ciência é coisa de formiga – só que algumas poucas voam e brilham no escuro 🙂 Esses caras são geniais, mas não saíram do nada. Grande abraço,
Marcos Benassi
Outro termo polêmico é Hacker e Cracker…