Redes sociais não existem. Ou, melhor, existem desde sempre. Pelo menos desde que os primeiros australopitecos estabeleceram relações afetivas e conseguiram demonstrar isso de maneira objetiva, segundo códigos que puderam ser apreendidos pelo grupo e reproduzidos sistematicamente. Talvez mesmo antes, o “elo perdido” já pudesse interagir – racionalmente – com os de sua espécie e com outras entidades do mundo físico.
O que não há é o advento da “rede social” enquanto decorrência do avanço tecnológico, das plataformas de troca de dados por meio dos sistemas digitais online. Esta definição, que internacionalmente consagrou o fenômeno dos espaços virtuais agregadores de pessoas (ou perfis) e que proporcionam a interação remota entre elas, é nada mais do que o exercício da capacidade humana do relacionamento, só que agora em um novo terreno midiático.
Claro que o Twitter, o Facebook, o Orkut e similares só foram possíveis por conta do amadurecimento tecnológico dos meios de comunicação. Mas o fato é que este avanço configurado no aumento do espectro de possibilidades gerado pela internet não é um acontecimento social – no sentido de exprimir o significado sociológico de relacionamento – mas simplesmente um amplificador de uma característica inerente aos seres humanos: comunicar e estabelecer relações de reciprocidade entre si e com as coisas do mundo.
Chamar estas plataformas de comunicação de “redes sociais” é, portanto, um pouco de exagero. Sem dúvida elas se prestam ao que trazem na nomenclatura, proporcionar o relacionamento entre pessoas. Mas não são, definitivamente, redes sociais: são, sim, espaços virtuais para o interação daqueles que utilizam tais meios como forma de encontrar outros membros do mesmo serviço. Ou seja, são mais um ambiente para colocar em prática o desenrolar, a evolução e constante modificação dos embates psicossociais dos integrantes destas redes – que não são tecnológicas, mas humanas.
E esta interação acontece nestes espaços, assim como acontece na rua, em supermercados, nas escolas, no trabalho. A internet criou apenas mais um palco para que pessoas encontrem outras. Certamente este novo campo tem suas especificidades e regras que permitem a ordenação semântica das mensagens trocadas e do relacionamento ali travado. Mas o mesmo acontece com todos os outros espaços da prática social.
No trânsito, por exemplo, precisamos interpretar um farol vermelho como o comando para parar; na internet, em algumas destas plataformas mencionadas, se eu não clicar em “adicionar contato”, não será possível dizer “oi” para a pessoa com quem quero me comunicar. Se não parar ao sinal vermelho, posso causar um acidente ou então receber uma multa; se enviar uma mensagem a um membro do Orkut sem adicioná-lo como contato e sem ter a certeza de que “tenho este direito”, posso ser ignorado ou até bloqueado por aquele a quem endereço a mensagem.
Existem milhares de possibilidades em um e outro sistema. O ponto é que cada um deles tem seus mecanismos de interação predeterminados. E todos que compartilham daqueles modelos devem seguir as respectivas estruturas de significação a fim de que seja possível a interação entre os membros.
Mecanismos de comunicação
O nome do meio, todavia, pouco importa. Chamar o Twitter de rede social não interfere na finalidade ou nas consequências de seu uso. Este exercício retórico, no entanto, se presta a uma análise mais cautelosa dos mitos que permeiam o estabelecimento das plataformas de comunicação e seu estudo.
A primeira conclusão a que se pode chegar é que as tais redes sociais não são em si um índice de evolução tecnológica (embora dependam dela, assim como dependeram todas os outros artefatos que suportam a comunicação, como o telégrafo e o telefone). São, em verdade, um item importante que denota a evolução dos mecanismos de comunicação.
O avanço da tecnologia proporciona a criação de novos braços, de novos tentáculos para a interação humana e amplificam imensamente a capacidade de profusão e absorção de informação. E seu o impacto não é sobre a tecnologia, mas sobre as estruturas de comunicação.
Em seu livro Cultura da Convergência, Henry Jenkins descreve de maneira muito didática e instigante este fenômeno. Seu argumento principal se baseia no rompimento de uma dos mais importantes lendas que circundam o progresso tecnológico, que é o das novas plataformas de comunicação suplantando as antigas.
Jenkins tem uma visão absolutamente pluralista e propõe que, diferente das profecias da extinção dos meios, o que deve acontecer é a convergência multimidiática dos mecanismos. Daí, conforme seu raciocínio, o estabelecimento de novos paradigmas de comunicação e a reinvenção dos suportes de mídia de maneira complementar e proporcionando novas significações técnicas e socioculturais.
Ou seja, ele entende que a televisão não vai acabar por conta da internet, assim como a internet não vai inventar um novo modelo de comunicação em vídeo: o acoplamento das duas propostas vai criar uma terceira via, com a possibilidade de novas ferramentas e de mecanismos de interatividade.
E isso, por sua vez, deve reconfigurar a maneira pela qual as pessoas se apropriam da comunicação em vídeo, vai determinar um novo modelo de raciocínio comunicacional e que, por fim, vai gerar impactos na economia, na arte, nos modos de consumo e no relacionamento entre pessoas e o mundo como um todo.
Como explica Jenkins, “a convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento.”
Na apresentação do mesmo livro, o produtor Mark Warshaw nos traz outra reflexão sobre a mudança de paradigma no consumo de informação e entretenimento.
E ironiza o discurso apocalíptico dos entusiastas das tecnologias midiáticas (aqueles que entendem o avanço da mídia enquanto tecnologia, não como fenômeno determinante das relações sociais):
O comercial de 30 segundos morreu. A indústria fonográfica morreu. As crianças não assistem mais à televisão. As velhas mídias estão na UTI. Mas a verdade é que continuam produzindo música, continuam veiculando o comercial de 30 segundos, um novo lote de programas de TV está prestes a estrear, no momento em que escrevo estas linhas – muitos direcionados a adolescentes.
As velhas mídias não morreram. Nossa relação com elas é que morreu. Estamos numa época de grandes transformações, e todos nós temos três opções: temê-las, ignorá-las ou aceitá-las.
O interessante da observação de Jenkins é a paulatina reinvenção dos meios. Ele fundamenta seu raciocínio na relação entre três conceitos basais da comunicação contemporânea, que pautam toda a avaliação sobre os casos práticos apresentados em sua obra: a convergência dos meios, a cultura participativa e a inteligência coletiva.
A convergência dos meios
Por convergência das mídias, Jenkins toma a expressão da informação em múltiplos suportes. Ele dá um exemplo bastante pitoresco: a associação de Osama Bin Laden com um personagem de Vila Sésamo, decorrente da brincadeira de um jovem norte-americano.
A montagem feita pelo adolescente percorreu o mundo em diversos formatos e com diferentes finalidades. Foi descoberta na internet por um militante islâmico que, sem conhecer o verdadeiro sentido da brincadeira e mesmo o tal personagem da TV, estampou a imagem criada pelo americano em faixas de protesto.
Tais cartazes foram filmados pela CNN e voltaram ao ocidente em forma de matéria jornalística transmitida pela televisão. Os criadores da série Vila Sésamo execraram a ligação indevida do personagem com o terrorista e ameaçaram entrar na justiça (sabe-se lá contra quem).
Cultura participativa
Cultura participativa, conforme o professor Jenkins, é a interação dos atores sociais envolvidos no processo de comunicação, como emissores e receptores das mensagens e atuando em papeis distintos, em diferentes situações – e variando esta atuação indefinidamente tanto quanto assumem diferentes papeis sociais.
É o caso de um executivo de uma empresa, que em determinado momento é telespectador, noutro, formador de opinião, num terceiro, pai de família e que interage com a professora de seus filhos numa reunião escolar.
Esta professora também é mãe, tem seus filhos na mesma escola (e são colegas dos filhos do executivo), e consumidora crítica, quando, em dado momento, posta na internet comentários sobre um produto que, por acaso, é a marca líder da empresa na qual o pai de seu aluno é diretor de marketing.
Inteligência coletiva
Finalmente, se apropria do termo “inteligência coletiva”, cunhado pelo teórico francês Pierre Levy, para definir a malha amorfa de informação e conhecimento que é resultado da confluência do pensamento e da participação de muitas pessoas, em ambientes diversos e com propósitos não necessariamente relacionados.
É o grande “banco de dados” coletivo que possibilita o armazenamento e a troca de informação infinita sobre qualquer tema em qualquer lugar. Ele explica que isso acontece porque ninguém pode saber tudo: cada um de nós sabe alguma coisa. Juntando-se estas peças temos a inteligência coletiva. A internet é o advento da comunicação capaz de elevar este sentido a sua milésima potência.
Unindo-se o tripé proposto por Jenkins, temos as bases da comunicação de hoje, num mundo guiado pela renovação infinita dos meios e dos conceitos. E aqui volto ao assunto das redes sociais. Não seriam elas muito mais mecanismos convergentes de interação do que propriamente redes? As ditas redes sociais, na verdade, são alguns dos alicerces que sustentam este novo modelo de comunicação.
Os Twitters, Facebooks e Orkuts, são, sim, as expressões mais nítidas e propositoras da realidade mais atual da convergência midiática. É aí que está a beleza e a riquíssima contribuição destas plataformas: ser o ambiente que proporciona o relacionamento humano em perspectiva multimídia, com a possibilidade de criação e reconfiguração dos discursos e da própria cultura num plano mediado em constante transformação. É o espaço da revisita, da releitura, da paráfrase de si e dos outros e o resultado da ação de muitas mãos. [Webinsider]
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Gustavo Schor
Gustavo Schor (gschor@machadomeyer.com.br) é gerente de comunicação do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice, jornalista e especialista em Jornalismo Econômico.
3 respostas
Belíssimo artigo. Parabéns pela desenvoltura e pelas belas palavras.
Marcos, você está certo: as possibilidades que se abrem são infinitas. Estou definitivamente certo de que a comunicação digital em confluência com os meios analógicos, vai proporcionar uma mudança cultural paulatina e em proporções nunca vistas. Outro dia fiquei encantado com o comentário do filho de um amigo meu, a se deparar com uma máquina de escrever antigo:
“Que fantástica essa máquina! Ela imprime no mesmo momento em que se escreve!”
Enfim, obrigado pelo comentário.
Estou à disposição sempre que quiser “prosear”.
Abraço,
Gustavo Schor
Mídias sociais servem como meios para a interação das redes. As possibilidades da internet em fornecer esses meios é riquíssima, que pode inclusive ser diferente dependendo do perfil de quem a utiliza.
Nanonichos se formam a partir destas necessidades, que vão buscar a melhor forma de se comunicar entre si. Seja por vídeo, texto, mensagens, imagens, etc ou a combinação de muitas delas.
Parabéns pelo texto.