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Eu terminei de ver este filme outro dia e fiquei com aquela sensação de que havia algo superficial e errado com a história que o roteiro tentava contar. Não a “estória” com “e”, mas a “história” com “h”, que aponta para fatos incorretos sobre a origem do rock & roll.

Entretanto, olhando o filme por outro ângulo (todo filme tem mais de um), é possível vislumbrar um aspecto insólito, bem descrito por sinal, no processo de criação musical: a presença do conflito racial e dos problemas sociais associados a ele! Além deste, a cineasta que escreve e dirige o filme coloca na mesa uma outra carta, e deixa a indagação no ar: afinal, quem grava música explora ou dá chance aos outros?

Fazendo um retrospecto da abordagem da maioria dos cineastas a respeito da biografia dos músicos, o que se nota imediatamente é o mar de controvérsias de suas obras ficcionais, e se nós formos nos ancorar nisso para excluir qualquer outro tipo de qualidade nesses filmes, nós iríamos acabar por não assistir nenhum deles. Se, por outro lado, ignorarmos as liberdades de criação desses roteiros, então é possível achar alguns pontos importantes em comum, sejam eles falsos ou verdadeiros:

1 – Uma grande parte das tragédias existenciais dos grandes compositores e músicos é marcada pela presença relatada de um processo de opressão familiar. E eu cito alguns exemplos, como Amadeus, de Milos Forman, onde o pai, Leopold Mozart, assombra o filho mesmo depois da morte, ou então Immortal Beloved, de Bernard Rose, que afirma taxativamente, que o pai de Beethoven teria levado seu filho à surdez, de tanto bater nele quando criança.

E se a gente estender isso para outros cineastas vê a mesma coisa em Walk The Line, de James Mangold, onde Johnny Cash é sistematicamente desqualificado e humilhado pelo seu pai, Ray Cash, e castrado pela primeira mulher dele, Vivian. E falando em mulher castradora, é preciso não esquecer Bird, de Clint Eastwood, que mostra Chan Parker castigando impiedosamente o músico Charlie Parker, ele próprio uma figura para lá de problemática, falecido prematuramente aos 35 anos de idade.

2 – Associação de drogas com a miséria humana: eu me lembro de uma aula de farmacologia na faculdade, onde a nossa professora comentou sobre o uso de certos estimulantes pelos músicos, como forma de aumentar a acuidade auditiva. Mas o uso deste tipo de medicamento serviu (e possivelmente ainda serve) para estender a capacidade de trabalho além das forças de um indivíduo normal. E como o organismo humano não é máquina, a combinação de exaustão física com estimulantes costuma ser uma bomba com prazo marcado para estourar.

No lado das doenças derivadas do estresse, o alcoolismo tem uma notória precedência para o uso de drogas mais pesadas, como maconha, cocaína ou heroína, sem falar no tabagismo desenfreado, que costuma resultar em patologias cardiovasculares e cancerígenas bastante agressivas. Um número significativo de músicos de jazz e rock & roll se tornou prisioneiro deste tipo de vício. E quando a situação chega a um ponto crítico, nem a música funciona mais como veículo escapista!

E muitos músicos voltam ao alcoolismo, para tentar compensar a síndrome de ausência das drogas mais pesadas, mas sempre resultando em êxito letal, como foi o caso de Billie Holliday, retratada no dramalhão Lady Sings The Blues, de 1972.

Outro exemplo bastante marcante é a descrição do estado permanente de intoxicação alcoólica do músico fictício “Dale Turner”, personificado por Dexter Gordon, em ’Round Midnight, de Bertrand Tavernier. A impressão que passa neste filme é que não foi preciso muito esforço a Dexter Gordon para interpretar o personagem. Os seus problemas de impedimento de fala são notórios, e ele falava na vida real exatamente daquela maneira como aparece no filme. O grande tenorista foi, infelizmente, acompanhado de um grande número de músicos eminentes do be-bop jazzístico, como nos mostra este trabalho de 2003, escrito por Geoffrey Wills, para o British Journal of Psychiatry.

Em Paris Blues, de Martin Ritt, se vê o drama de um guitarrista viciado em cocaína, e a luta de um dos músicos para libertá-lo do vício. O filme é uma alusão claríssima aos músicos de jazz expatriados em Paris, vindos da América do Norte, para se libertarem dos grilhões do racismo e da intolerância.

3 – Associação da miséria psicológica humana com a criatividade: esta é uma constatação mais ou menos óbvia e bastante impressionante, sendo possível que seja o resultado da necessidade de alívio de algumas pessoas, perante o isolamento da qual elas se tornaram vítimas, e fazendo com que elas aumentem significativamente o seu potencial de criatividade.

O cinema na procura de respostas

Freqüentemente, o filme biográfico segue padrões ficcionais, e Cadillac Records não é exceção. Escrito e dirigido pela mesma pessoa, a cineasta afro-americana Darnell Martin, o filme se perde em um mar de indagações subjacentes e acaba no final não discutindo quase nada.

Em muitos filmes, particularmente aqueles realizados dentro do padrão hollywoodiano, e na ânsia de dramatizar o roteiro, diretor e escritores terminam por tomar liberdades de retórica, que mascaram a história (com “h”) dos personagens, interpretando mais do que descrevendo, e por causa disso incorrendo em erros, facilmente descobertos pelos aficionados. A gravadora Chess Records, por exemplo, pertencia aos irmãos Phil e Leonard, mas o primeiro nunca é citado, não se sabe por quê!

Em Cadillac Records, o foco inicial está em Leonard Chess, mas sem responder à pergunta: teria sido ele um pioneiro do rock & roll ou mero oportunista? Mesmo na época em que a Chess Records atingia o seu ápice, a intolerância racial ainda impedia que muitos dos talentos musicais negros chegassem a um estúdio de gravação ou a um veículo de comunicação como o rádio. Se tal não tivesse acontecido eventualmente, o aparecimento do jazz e do próprio rock & roll teria sido retardado e provavelmente atribuído a algum músico branco. Então, é possível se admitir que pessoas como Len Chess tivessem um papel catalisador importante, ao ceder aos músicos negros a oportunidade de gravar e expor suas músicas, ao invés de vê-las roubadas (literalmente) por algum oportunista explorador de plantão!

Por outro lado, é bom que se enfatize que partir do pressuposto que a música jazzística e o rock & roll são obras exclusivas de músicos negros é um engano igualmente racista. Até mesmo o grande Louis Armstrong tinha convicção de que Bix Beiderbecke foi o cornetista que mais influenciou a evolução do jazz, até o seu prematuro falecimento.

Mas Cadillac Records atropela esta idéia, e de uma forma absurda. Enfocando a gênese do rock & roll de forma maniqueísta, o roteiro trata de forma excludente a participação de músicos brancos, como Jerry Lee Lewis ou Elvis Presley, apenas para citar dois dos que tiveram influência evolutiva e progressiva no rock daquela época. E, de tabela, exclui também a gravadora Sun Records, que gravou estes músicos e outros, do mesmo processo, e que certamente têm mais crédito do que a Chess, em ter feito aparecer o rock & roll nos lares americanos e no resto do mundo.

A sobrevivência das pequenas gravadoras

A discussão racial parece que não tem fim, mas ela obscurece uma outra igualmente importante, para a sobrevivência da música como veículo moderno de comunicação: a da participação das gravadoras!

E neste caso, Cadillac Records parece mandar uma mensagem que talvez nem mesmo a cineasta tenha se dado conta dela: a de que pequenas gravadoras levaram, e ainda levam, um tombo bem menor do que as gravadoras dos grandes grupos! Basta ver aqui mesmo pelo Rio de Janeiro, onde estúdios como os da CBS, RCA e Philips (Polygram) não ficaram para contar a história.

Talvez o grande mérito, a meu ver, de Cadillac Records, foi mostrar uma gravadora pequena por dentro. E com certeza foi o aspecto que me atraiu ao filme. As gravadoras pequenas são montadas em torno de um sonho de um pequeno grupo de pessoas, no caso da Chess, de dois irmãos. E depois do produto pronto e vendendo para a massa, elas ainda vêm os seus principais artistas cooptados pelas gravadoras maiores. Foi assim com Elvis Presley (RCA), Ray Charles (ABC-Paramount), Johnny Cash (CBS) e muitos outros.

Nos pequenos selos, não existe somente a ambição comercial. Na verdade, o lado artístico do empreendimento costuma ter precedência sobre o lucro. Existe, é fato, uma visada de quem produz, de tentar alcançar o mercado de massa, uma espécie assim de faro do sucesso, constantemente citado em filmes. E Cadillac Records mostra que, quando o produtor tem este faro, ele ouve e enxerga além dos limites do estúdio. Numa dada cena, por exemplo, Chuck Berry aparece por lá e todo mundo acha que ele toca o gênero country & western. Mas, Leonard Chess diz que não, e ele tem razão. Vários músicos de rock começaram tocando country, mas Berry tem uma maneira de tocar diferente. Não se trata, como o filme sugere, o ponto de partida do rock & roll. Os pontos de tangência entre country e rock são admitidos pelos historiadores e musicólogos, alguns até acreditam que o rock no seu início tenha partido ou tenha tido grande influência da música country, mas não passa disso.

Chuck Berry, entretanto, fez uso do country inicialmente, e modificou o seu andamento. Dizem seus historiadores que a platéia achou esta modificação meio esquisita, mas acabou entendendo que o som era novo, uma espécie de crossover entre o country e um estilo mais ritmado, que seria depois rotulado como “rock & roll”.

Não há dúvida alguma de que os donos dessas pequenas gravadoras tinham visão, não só do potencial gosto do público, mas da evolução para alguma coisa nova, além dos valores tradicionais da música popular de qualidade, porém pouco difundida, como foram o blues e depois o rock.

Historiadores ou pesquisadores nem sempre são precisos

Às vezes, é preciso desculpar os cineastas pela imprecisão dos seus roteiros, porque nem sempre os historiadores conseguem levantar dados concretos sobre a vida dos seus personagens, e isso conduz à especulação de fatos que poderão nunca terem acontecido.

Um exemplo dos mais interessantes vem em Amadeus, baseado numa peça do escritor inglês Peter Schaffer. No seu relato, o compositor Antonio Salieri teria sido o algoz e o indutor da morte do seu antagonista Wolfgang Amadeus Mozart, mas, segundo historiadores, não há nenhuma prova ou fato concreto de que tal coisa tenha acontecido. Na época do lançamento do filme, a CBS colocou vários discos de Salieri nas lojas aqui no Brasil, para provar que ele nunca teria sido o compositor medíocre que o filme faz crer.

Um outro tipo de viagem é a suposta paixão secreta, o chamado alter ego do compositor Beethoven em Immortal Beloved, em pista deixada numa carta sem um nome que a denunciasse como sua verdadeira herdeira. O filme deixa em suspense uma verdadeira revolta entre os fãs do compositor, e a bem da possível verdade, tudo indica que Beethoven teria tido surdez progressiva, e era alcoólatra crônico, uma das poucas coisas reais que o filme de Bernard Rose ilustra.

As licenças na retórica são perdoáveis, por se tratar de cinema. Em alguns casos, porém, o exagero é insuportável. Em The Five Pennies (no Brasil, A Lágrima Que Faltou), os cineastas descrevem o afastamento do trompetista Loring “Red” Nichols como resultado de uma doença da filha, mas uma consulta à biografia do artista mostra que ele parou por pouco tempo e por motivos bem diferentes. E porque se decide mudar a história? Porque é mais fácil inserir momentos de melodramaticidade no roteiro de um filme deste tipo, e atrair um determinado tipo de público.

O diagnóstico sobre o uso de drogas por artistas é complicado

Eu me arrisco a dizer que não vai ser o cinema quem vai dar pistas sobre o uso de drogas por artistas diversos, mas ele, bem ou mal, faz a sua parte.

Um dos maiores fatores, na minha modesta opinião, que poderia explicar a miséria mental humana é a ausência do retorno afetivo. Todo mundo, precisa, mais cedo ou mais tarde, receber um incentivo ou aprovação sobre aquilo que faz, e não há nada de errado nisso. Quando se trata das relações interpessoais, a mágoa costuma ser bem mais contundente quando esse retorno afetivo não acontece. É que todo mundo quer e precisa de carinho, para levar sua vida à frente, mas nem todos, em sua proximidade, entendem ou atendem esta carência.

Nas relações interpessoais, principalmente aquelas envolvendo familiares ou amigos mais íntimos, coisas como um colocar o outro para baixo, não passar adiante palavras de incentivo ou apoio, ou fazer o outro acreditar que ele não tem capacidade de aprender ou evoluir, se aplicados sistematicamente, podem fazer qualquer um baixar a sua própria auto-estima.

De uma maneira geral, o ser humano se respalda no seu berço, e na sua educação de base, para racionalizar e enfrentar problemas desta natureza. Uma vez eu ouvi da minha ex-colega da UFRJ, a psiquiatra Munira Aiex Proença, que o que a gente conhece e chama de maturidade é a capacidade de adaptação do indivíduo a situações adversas. E como problemas a gente enfrenta a vida inteira, a maturidade per se é um processo em constante evolução, ou seja, nós vamos até o fim tendo a necessidade de pular barreiras e arrumar solução para problemas, em prol da nossa sobrevivência.

Tudo isso explica, mesmo que de uma forma rasteira, que pessoas incapazes de se reequilibrar ou achar meios de fazê-lo, são as que mais se expõem a formas alternativas de escapismo, e neste ponto, as drogas funcionam como uma forma enganosa de fuga, e acabam se tornando uma muleta sem a qual a pessoa não consegue mais andar.

É muito triste para nós que somos fãs de música ou cinema saber que os nossos ídolos maiores foram, na realidade, prisioneiros de um sofrimento que tornou suas vidas um calvário com uma cruz difícil de carregar, e que um belo dia acabaram neste sofrimento de forma trágica.

Pois no artista, mais do que em qualquer outra pessoa, a depressão é fruto de um estado de consciência bem mais profunda sobre o sentimento, ou a ausência dele, nas vidas das pessoas. Em última análise, é neste sentimento que nós, como ouvintes, ancoramos a nossa própria sensibilidade.

Certa vez, o genial compositor Michel Legrand se referiu à melancolia inclusa nas músicas do nosso autor maior Antonio Carlos Jobim, e ele então disse: “é a tristeza que nos faz felizes”! [Webinsider]

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Avatar de Paulo Roberto Elias

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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6 respostas

  1. Oi, Tresse,

    Seria bom contar logo aos leitores que clicando com o mouse na palavra “crossover” ele irá ouvir uma gravação original de Chuck Berry para a Chess: You Never Can Tell, uma mistura de country com rock.

    Sobre o tema sugerido, fico feliz que você não tenha me colocado uma corda no pescoço! É que o assunto é delicado, e eu não quero ofender ou desqualificar quem lida com este tipo de música. Seria no mínimo hipócrita da minha parte fazer apologia de samba enredo. As minhas opiniões sobre eles são negativas demais, e assim, se você não se importa, eu prefiro declinar o assunto.

    De resto, obrigado pela sua ilustre presença aqui na coluna!

  2. Oi, Frank,

    Boa lembrança a sua sobre “The Doors”. Infelizmente, eu já escrevo demais da conta e a coluna é curta, e como você sabe o que não falta é filme sobre o assunto.

    Eu acho que uma das piores coisas que podem acontecer com o ser humano é ele ser esquecido, seja por familiares e amigos, e, no caso dos artistas, pelo público.

    O tema é muito bem abordado no filme de Tim Burton “Ed Wood”, no personagem Bela Lugosi, que aliás era também viciado em droga.

  3. Paulo,
    obrigado pelo Ôvo de Páscoa. Confesso que gosto mais de blues do que de rock, mas não sei o porque disso, Seu texto me fêz ouvir o rock com mais atenção.Quando ia a NY, gostava de ir num bar (tipo o nosso botequim) que ficava no Village e que tinha um programaànoite chamado Fat Tuesday. Eram compositores/cantores da velha guarda falando de Blues. O programa acabou;fiquei triste.Vou te sugerir um tema para seus próximos artigos: Samba Enredo das Escolas de Samba do Rio. Tenho muitas dúvidas sobre esse tema. Fique à vontade para recusar minha sugestão, mas não pare de escrever. Abs. Tresse

  4. Ótimo texto Prof. Paulo Roberto, só faltou citar outro ótimo filme que mostra o resultado da bomba (problemas+drogas+rock), é o filme do The Doors um dos o meus preferidos de alguns que comentou.
    Além disso, gosto também de lembrar dos livros de Carlos Castaneda que vive algumas experiências com drogas alucinógenas e que aprende “canções” em estados alternados da mente, mas com certeza são experiências muito além da libertinagem vivida pelos rock star’s.

  5. Oi, Marcos,

    Muito obrigado por sua apreciação e leitura.

    Deixei uma resposta na outra coluna sobre o pedido que você colocou.

  6. Belíssimo artigo do Prof.paulo Roberto;sua sensibilidade e inteligencias múltilplas nos induz a reflexão e analise mais detalhada do Assunto em pauta.Obrigado mestre ;espero novos artigos.
    Marcos A. Valentim

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