Na minha aula inaugural do curso da ESPM, em 1987, um querido professor disse uma frase que marcou a minha carreira até hoje: “criar é reorganizar ideias”. Rearranjar, recombinar, como queira. Mas, se pensarmos bem, esse é o nosso ofício.
Pegamos duas, três ou mais informações que já existem, jogamos dentro de uma espécie de mixer cerebral, as coisas se combinam de outra forma ou de outro ponto de vista e voilá! Nos saímos com uma ideia original.
Não é um processo fácil. Às vezes, é até penoso. Criar, não importa se sozinho ou no meio de um brainstorming com 18 pessoas, é uma atividade solitária pra cacete. E por isso mesmo difícil. Então, quando nos saímos com uma boa ideia, aliviados, respiramos fundo, explicamos com o maior entusiasmo para o atendimento (algumas vezes vamos nós mesmos, cheios de energia) e a dita cuja chega ao cliente. E… leva bomba.
Vocês sabem bem da sensação de que estou falando. Aquela cara de “mas, como?” que todos nós, criativos, fazemos nessas situações. E a tentação quase irresistível de ver, em agentes externos, os vilões que mataram nosso fi… quer dizer, nossa ideia.
Com o tempo, o amadurecimento e mais uma série de outras coisinhas que são, digamos, pálidas compensações pelo crescimento dos fios de cabelo branco na cabeça, a gente começa a se dar conta de que a coisa não é bem por aí.
Talvez o pior inimigo daquela ideia que foi para o cliente sejamos nós. Talvez ela tenha nascido morta, e não nos tenhamos dado conta disso. Assim como é solitária de per se, criação também é paixão. E paixão, que os poetas românticos não me deixem mentir, costuma cegar.
Pare e pense: talvez o processo de “reorganizar ideias” que gerou aquela última tenha rolado meio duro, meio travado, e você nem tenha percebido. Talvez nem tenha sido uma “reorganização” que mereça esse nome. Ou talvez tenha sido um rearranjo meio freio de mão puxado. Por que?
Somos seres humanos, ora bolas. Apaixonados pelo que fazemos, mas não somos de ferro nem à prova de balas. E, se você pensar bem, o criativo (no sentido mais abrangente da palavra, o cara que acha soluções para problemas propostos) é um cara que acaba ouvindo mais nãos do que sim durante sua vida profissional. É preciso o equilíbrio de um monge budista pra não ser afetado ao longo do tempo.
Resumindo: o dia a dia vai criando uma carga que vamos arrastando, e que está sempre lá, fazendo peso, quando entramos na solitária atividade de “reorganizar ideias”. Por vezes, chega a comprometer o resultado. É preciso ficar atento a essa carga e, de tempos em tempos, dar um refresh. E que carga é essa?
- 1. Medos. “Caramba, isso não deu certo uma vez”. Em outro contexto, outra situação, outros clientes, com outra equipe. Use o medo a seu favor, tenha juízo, mas mantenha-o sobre controle. Escolha uma determinada situação que parecer mais confortável, feche os olhos, prenda a respiração e se jogue, quer dizer, tente de novo aquilo que não deu certo uma vez (claro, se parecer fazer sentido). Sem arriscar psicologismos de botequim, a melhor maneira de anular uma experiência negativa é uma experiência positiva.
- 2. Referências. Referência é muito útil, mas tem um pouco de ler e-mail de seis meses atrás. É sedutor, a gente até revive algumas emoções boas, mas aquilo já foi. E talvez o mais grave é que, com o acúmulo de referências boas, a gente acaba criando uma carga crítica muito pesada de se carregar. Se nada do que pensarmos for parecido, ou estiver naquele nível, não serve. Convenhamos, começar um job assim equivale a subir dos juniores e, na sua primeira partida profissional, achar que só terá ido bem se marcar dois gols, sendo um de bicicleta e um driblando a defesa inteira. Se a sua perna não tremer numa situação dessas, ou você é o Neymar ou é sem noção mesmo. Lembre-se: referência está lá para ajudar. Se estiver atrapalhando, delete.
- 3. Critérios estabelecidos. Em qualquer atividade humana, estabelecem-se critérios do que é bom ou ruim. Isso é útil, mas tem uma hora que vira zona de conforto. Se estou fazendo algo que é considerado bom pelo critério vigente, tá ótimo. Huuumm… não tá não. Os verdadeiros pontas de lança de qualquer indústria são aqueles que estão estabelecendo novos critérios. Fique sempre atento para ver se o check-list mental que você usa ainda está valendo. Se perceber que ele está ficando velho, delete – da cabeça, mas principalmente do coração, que é a parte mais difícil. Ainda hoje existem excelentes datilógrafos, mas ninguém mais faz nada em máquina de escrever.
- 4. Expectativas exageradas. Sonho é uma coisa, realidade é outra. A gente enche a cabeça, ao longo de toda a vida profissional, com o desejo de ser reconhecido, premiado, trabalhar na melhor empresa, ganhar o melhor salário etc, etc. Quando vamos começar a “reorganizar ideias” tudo isso tá lá, enchendo a caixa. E você precisa de espaço pra trabalhar. Delete tudo isso. Vai acontecer ou não, em consequência do que você fizer com seu trabalho. Então, faz todo o sentido do mundo dedicar toda a sua inteligência a ele, e não a dúvidas do tipo “será que é isso que os jurados gostam”? Sabe Deus. O tal jurado que você está falando ainda nem foi escolhido, afinal muda todo ano. E você já está preocupado com a opinião dele?
Essa é a carga que eu conheço (e que às vezes me consome). É possível que você conheça muitas outras. Sejam quais forem, sugiro que você mantenha vigilância constante. E não tenha receio de enfrentá-las.
Da próxima vez que alguma ideia for para a gaveta, pare, pense e seja sincero se o medo, o excesso de referências, a subserviência aos padrões ou a preocupação mais com o seu umbigo do que com o problema não foram os responsáveis. Nesse caso, você vai descobrir que quem reprovou a ideia foi você.
Não deixa de ser uma boa notícia, né? Afinal, você sempre pode mudar de ideia. [Webinsider]
…………………………
Conheça os serviços de conteúdo da Rock Content..
Acompanhe o Webinsider no Twitter.
Tulio Paiva
Tulio Paiva é presidente e diretor executivo de criação da Paiva Comunicação, Twitter @paivacomunic.
4 respostas
Obrigado Túlio pelo artigo!
É realmente isso que muitas vezes acontece e nos impede de oferecermos o melhor. No meu último emprego isso me levou a questionar se eu realmente estava na área certa porque alguns layouts não foram aprovados e eu não conseguia alcançar a proposta ideal. A cabeça se fechou para novos caminhos. Faltava me atentar a esses itens que você apontou no artigo e que vão ser muito úteis para os meus próximos projetos!
muito responsa
TULIO,
SHOW DE ARTIGO! A GENTE PENSA TANTO NESSAS COISAS, CHATINHAS DE JOGAR FORA. MAS O MÍNIMO QUE CONQUISTAMOS VALE TANTO, TANTO…!
PARABÉNS MESMO! BOM DEMAIS LEMBRAR.
Parabens pelo artigo!
Sem dúvida alguma você falou o que a um bom tempo vinha martelando em minha cabeça, os projetos pessoais esquecidos se deram a todos o fatores a cima que você falou.
Mas com essas dicas vou batalhar para seguir as dicas. Valeu!