Com Geraldo A. Seabra*
“O educador que ‘castra’ a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica.” Paulo Freire.
A realidade dos jovens na Itália a respeito dos jogos eletrônicos não é muito diferente daquela vivenciada pelos jogadores brasileiros, americanos, ou japoneses. A razão é muito simples: as mídias são padronizadas numa esfera global.
Embora seja uma mídia planetária, os games ainda são encarados como “mídia demonizada” pela sociedade. A situação é tão alarmante que isola os adolescentes no submundo de seus quartos, condição que remete à metáfora do urso polar hibernado. Diante de um cenário hostil, os jogos digitais são consumidos no Brasil e exterior ainda com muita timidez e desconfiança pelos professores dentro da sala de aula.
Na maioria dos casos, o motivo do pouco uso dos games como disciplina se deve ao fato de os próprios professores não carregarem em seu currículo acadêmico a cultura dos jogos como aprendizagem e informação.
Quando era professor e coordenador de curso de Comunicação Social, Geraldo Seabra notava que os professores universitários tinham certa dificuldade de entender a extensão das possibilidades das novas mídias. Essa realidade ainda não mudou. Então, é muito natural que os educadores do ensino médio tenham até hoje bastante dificuldade de adotar as infinitas formas didáticas de aplicação dos jogos em sala de aula.
Essa realidade torna-se um total contrassenso quando inúmeras pesquisas apontam o avanço gigantesco dessa mídia para fora do universo dos fãs usuais de videogames. A sua força tem sido de tal ordem que fez surgir o fenômeno chamado gamification – tendência do uso de técnicas dos jogos em situações cotidianas.
Uma proposta europeia de manual para professores
Traduzido para o idioma italiano, o manual “Os Jogos Eletrônicos nas Escolas – um manual para professores” é um projeto financiado pela Federação Europeia da Indústria de Videogame (IFSE, sigla em inglês). O trabalho foi desenvolvido pelo Departamento de Informática, do Instituto de Tecnologia Waterford, na Irlanda. A iniciativa contou com a participação de vários profissionais da área e especialistas em jogos. O guia nasceu a partir de publicações de textos que foram compilados no universo do uso educacional dos jogos digitais nas escolas. Finalizado em 2009, o trabalho de organização do manual coube à editora belga European SchoolNet.
O objetivo do guia foi analisar o ensino dos jogos digitais em oito países: Áustria, Dinamarca, França, Itália, Lituânia, Holanda, Espanha e Reino Unido. O projeto foi baseado em uma pesquisa com professores, pesquisadores, especialistas e comunidades de jogadores. O material foi transformado em um guia com objetivo de fornecer informações práticas e teóricas no uso educacional de jogos de computador. Ele enumera uma série de vantagens pedagógicas de se usar os jogos como ferramenta de ensino em sala de aula.
Entre outras coisas, os jogos digitais podem desenvolver nos jogadores habilidades cognitivas, especiais e motoras. Contribuem para ensinar fatos básicos, aumentar a capacidade de memorização e resolução de problemas complexos. Permite também o aumento da capacidade criativa, bem como a sociabilização de crianças e jovens.
Segundo o manual, os jogos têm sido usados em escolas primárias e secundárias para ilustrar conceitos científicos, históricos e geográficos. Por exemplo, o jogo Civilização III tem sido utilizado para o ensino da história americana. Experiências semelhantes foram conduzidas nas escolas dinamarquesas com o jogo de estratégia Europa Universalis II.
O guia para professores da European ShcoolNet está alicerçado no sistema de Ensino Baseado em Computador (Computer-Based Training – CBT) voltado para jogos educativos. Desde o seu nascimento, o sistema CBT tem evoluído bastante. Do primeiro sistema baseado em perguntas e respostas enlatadas que permitia uma interação mínima, aos novos jogos de treinamento que apresentam maior grau de flexibilidade, graças a sistemas de tutoria baseados em Inteligência Artificial (AI), que permitem monitorizar o progresso dos alunos de forma dinâmica. Os jogos Role-Playing Games (RPG) são frutos dessas experiências com realidade virtual.
Por exemplo, numa turma com histórico de problemas de sociabilidade, o professor pode usar categoria de jogo Massive Multiplayer Online Role-Playing Games (MMORPG’s). Os jogos de RPG têm a característica de promover o desenvolvimento e a concorrência entre os alunos, o senso de colaboração, motivando-os para se juntar ao equipes para objetivos comuns. Em grupos, os alunos podem criar, compartilhar informações na forma escrita ou oral e aprender observar a ação informativa dos outros jogadores. Os novatos podem aprender com seus colegas e melhorar suas habilidades cognitivas. Esse gênero de jogo pode ter um impacto emocional sobre os jogadores: eleva a sua autoestima e permite-lhes participar ativamente de trocas sociais.
NewsGames: informação e interação
Apesar de rico e extenso, o manual europeu peca ao não indicar o uso educacional dos newsgames – games baseados em notícia ou acontecimento em tempo real. No e-book “Do Odyssey 100 aos NewsGames – uma genealogia dos games como informação”, propomos a urgência da aplicação e desenvolvimento de jogos que utilizam a chamada informação pura como elemento narrativo da trama do jogo.
Embora sejam ainda desconhecidos no meio acadêmico, os newsgames começam a despontar como ferramenta de ensino-aprendizagem. Spent é um excelente newsgame que pode ser aplicado para classes de alunos dos últimos anos do ensino médio. O jogo trabalha uma temática bem atual: a crise econômica e o desemprego. Baseado em dados reais, a jogo exige do aluno que ele entenda aspectos relevantes da economia para poder equilibrar o orçamento doméstico. No desenvolvimento do jogo é preciso eleger prioridades para não gastar dinheiro em compras desnecessárias. O aluno pode trabalhar conhecimentos de matemática, ações de tomada de decisão e posicionamento estratégico.
No quadro abaixo, uma proposta de classificação dos jogos sob uma perspectiva informativa.
Problemas antes de entrar na sala de aula
Antes de tudo, precisamos ter em mente que, para aprender algo verdadeiramente, é preciso saber aprender. E saber aprender exige muito do conhecimento e reflexão sobre as nossas próprias cognições – metacognição.
Inúmeras pesquisas afirmam: o uso da metacognição pelos alunos é a principal causa de diferenciação nas estratégias usadas por eles. Os indivíduos com mais rendimento em qualquer idade são aqueles que possuem a função executiva para monitorar seu desempenho na tarefa e aplicar as técnicas que possuem para resolver problemas e tomar decisões.
Nesse aspecto, os videogames são insuperáveis. A interatividade dos jovens com o mundo dos jogos digitais se dá mais facilmente em função da sua dinâmica de comunicação hipertextual.
Por outro lado, a falta de uma cultura como jogador de videogames faz com que muitos professores criem uma barreira natural e quase intransponível contra a ideia de usar os jogos eletrônicos como plataforma de ensino-aprendizagem.
Para tanto, o educador precisa encarar o ato de jogar videogame como algo inerente ao seu trabalho de professor. Passada a fase de estranhamento, o docente precisa descodificar a narrativa do jogo a ser usado como ferramenta didática. Talvez, o maior desafio dos jogos educacionais seja oferecer ao aprendiz um ambiente que propicie a verdadeira interação imersiva.
Assim, a escolha do jogo a ser trabalhado em sala de aula é a tarefa mais difícil e de suma importância.
De posse de um plano de aula interativo, o professor poderá propor estratégias para que o aluno atente para a quantidade de informações que pipocam na tela, assim como nas diferentes janelas que se abrem e se fecham diante dos olhos do jogador. Primeiramente é preciso refazer o roteiro descritivo do jogo a ser usado pelos alunos em sala de aula. Quem ensina precisa entender e dominar a complexidade do tabuleiro do jogo, a partir de alguns pontos cruciais:
- Categoria;
- Gênero;
- Classificação do jogo;
- Tipo de narrativa;
- Jogabilidade;
- Mecânica de jogo;
- Roteiro descritivo e suporte de mídia;
- Objetivos didáticos que se quer extrair do jogo.
Elaborando um plano de aula interativo
A partir daí, o professor deve elaborar um plano de aula dinâmico e interativo que não faça o aluno dormir em sala de aula.
O grande erro dos jogos educativos é apresentar para o aluno uma coleção de enigmas sem nenhuma ligação, tornando o jogo desinteressante. Numa visão mais atualizada, o uso dos jogos para fins educacionais baseia-se na premissa de que os jogadores devem aprender, armazenar e colaborar fazendo.
O artigo de Juliano Fagundes apresenta um storyboard da trama de um jogo: uma história (conteúdo), uma época (identidade visual), um conjunto de regras (o sistema) e um certo limite de opções (navegação). Uma interface de jogo para ser boa não pode impedir a imersão – o gameplay. O desafio dos desenvolvedores de jogos é fazer com que o gameplay permita que o jogador navegue pela trama e consuma as informações de forma fluída e imersiva, sem precisar parar pensar nos botões que precisa clicar.
Pedagogicamente, o especialista em games, Cláudio Lúcio Mendes, faz duras criticas ao sistema de ensino tradicional: “Respostas corretas, dadas por quem está aprendendo, serão bem avaliadas, mas as respostas incorretas, muitas vezes, não serão sequer problematizadas”.
Para ele, o uso dos jogos como artefatos de ensino pode se dá de três formas básicas:
- Estão presentes objetivos, conteúdos, avaliações que caracterizam um currículo cultural que educa quem joga;
- Em seus processos de elaboração, os jogos são planejados como ferramentas de aprendizagem (escolares ou não), como os jogos educativos;
- Qualquer jogo, independente dos objetivos de seu planejamento, pode ser empregado em processos de aprendizagem – escolares ou não.
Em resumo, a aula interativa baseada em jogos digitais deve levar o aluno a entender o uso dos atalhos que encurtam as tomadas de decisão, bem como a importância das informações emuladas fora da interface de jogo, mas que são inerentes à trama.
Quando a aprendizagem ocorre enquanto o aluno joga? Quando ele é capaz de fazer a contextualização das mensagens visuais, descritivas e subjacentes, permitindo fazer o cruzamento de informações que rolam de dentro para fora do jogo e vice-versa.
É nessa sanfona cognitiva que o conhecimento é alcançado. O processo de conhecer se dá a partir da interação intuitiva dos alunos com um sem-número de cliques que precisam realizar com o joystick de controle do videogame. Ocorre ainda mediante o uso de diferentes menus informativos existentes dentro do jogo. Como num caleidoscópio imersivo, o roteiro informativo da trama do jogo se transfere interativamente para dentro do cérebro do jogador. No final do processo, o resultado é o conhecimento.
Link: download do e-book Do Odyssey 100 aos NewsGames – uma genealogia dos games como informação.
* Geraldo Seabra, jornalista e professor, mestre em estudos midiáticos e tecnologia, e especialista em informação visual e em games como informação e notícia. Na área acadêmica lecionou no UniBh, Unipac Lafaiete e Funorte. No mercado trabalhou em diversos órgãos de imprensa: Rádio Itatiaia, Rede Minas de Televisão, Rádio Alvorada, Agência de Publicidade CMK3, Revista AMIRT, Diário de Belo Horizonte e Jornal Sabará em Minas. Nascido em Belo Horizonte, está radicado atualmente em Treviso (Itália), onde atua como editor e produtor do Blog dos NewsGames.
[Webinsider]
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Luciene Santos
Luciene Santos, jornalista e especialista em games como informação e notícia. É co-autora do e-book “Do Odyssey 100 aos NewsGames – uma Genealogia dos Games como Informação”. Nascida em BH, está radicada atualmente em Treviso (Itália), onde atua como apresentadora da WebTV do Blog dos NewsGames.