Poucos foram os cineastas do mundo inteiro que puderam ser chamados de “Mestre do Cinema”. Alfred Hitchcock é o “Mestre do Suspense”, gênero no qual consagraria a sua extensa filmografia.
Por mais que fãs, entusiastas, estudantes e historiadores se esforcem, muito do que Hitchcock fez ainda permanecerá um mistério. Sua filha mesmo, Patricia Hitchcock, disse em entrevista, que toda vez que assiste de novo um filme do pai sempre entende ou descobre alguma coisa nova. São mensagens que não são tão óbvias assim, muitas delas subjacentes, e só mesmo assistindo várias vezes é que se consegue perceber alguma coisa. Acontece, mas são raras as vezes em que roteiristas e diretores deixam passar mensagens subliminares à plateia sem terem tido intenção de fazê-lo. Normalmente tudo é feito de forma proposital, e com Hitchcock, aparenta ser evidente que todas as suas intenções eram mais do que planejadas, antes sequer que qualquer cena tivesse sido filmada.
E, em se tratando do mestre do suspense, não é para menos: Hitchcock parece que nasceu com a linguagem do cinema na cabeça. Peggy Robertson, sua assistente de direção, disse em depoimento que o diretor sequer se sentava perto da câmera, apenas dizia aos técnicos o que fazer, onde queria e como queria que as tomadas fossem feitas.
Para tal, um dos pré-requisitos, segundo ela, era a elaboração de um “storyboard”, espécie de estória em quadrinhos, contendo a sequência das cenas a serem filmadas. O storyboard ficava pronto antes de o filme ser rodado. Historiadores e críticos traçaram correlações entre eles e as sequências de planos das cenas, e notaram o detalhamento da montagem e a semelhança plástica entre ambos.
E a montagem, diga-se de passagem, foi, sem dúvida, a mola mestra que permitiu ao cineasta levar à tela as suas ideias. Eu, por acaso, tive um professor de cinema que nos dizia que a montagem é tão importante, que muitas vezes ela pode salvar um filme completamente. No caso de Hitchcock, é muito mais do que isto.
Hitchcock acreditava no que ele chamava de “cinema puro”, e mesmo não tendo, ele mesmo, esclarecido com detalhes o que era isso, a percepção visual de seus filmes demonstra cabalmente o que é: o cinema puro é o cinema baseado na força do impacto visual, com pouco ou nenhum diálogo envolvido.
Hitchcock não foi o único a fazer do cinema puro a sua base de trabalho. Cineastas egressos do cinema mudo, e que acabaram arrumando soluções de cena com impacto visual, o fizeram também. E um exemplo notório, já citado aqui várias vezes, é o de Charles Spencer Chaplin, até próximo da década de 1940.
A visão do cineasta em Um Corpo Que Cai
Vertigo (ou Vertigem) é o título original de “Um Corpo Que Cai”, filme que ganhou a merecida reputação de “obra prima”. Vertigo foi fotografado no processo VistaVision e em 1996 ganhou cópia em 70 mm com som DTS, a partir da restauração do negativo. O arquivista Robert A. Harris e o seu produtor James C. Katz pesquisaram os arquivos da Paramount, e acharam a maior parte da trilha sonora em boas condições. Durante a restauração, as anotações deixadas por Hitchcock ajudaram a remontar som e imagem, mas para preservar integralmente a alta qualidade de ambos, os dois restauradores transferiram o negativo para filme 70 mm. Na parte de áudio, apenas alguns efeitos especiais de sonoplastia foram acrescentados e a remixagem da parte orquestral estereofônica (nunca antes usada para a exibição em cinemas) com os diálogos foram feitos de forma bastante conservadora.
Tudo isto ajudou potenciais observadores a se concentrar muito mais no conteúdo do filme do que nos seus méritos técnicos. Não obstante, estes últimos são impecáveis e não é de todo absurdo que eles sejam também apreciados em toda a sua plenitude.
A estória de Vertigo é simples: um detetive aposentado por problemas de saúde é contratado por um amigo para vigiar a sua mulher, suspeita de estar encarnando o espírito de uma personagem do passado, com tendências suicidas. Acontece que no processo de vigiar de perto esta mulher, ele acaba se envolvendo emocionalmente com ela, iniciando em paralelo uma relação afetiva adúltera, sem pensar nas consequências.
Vertigo, mais do que qualquer outra coisa, focaliza os tormentos de um homem profundamente apaixonado, que acaba resultando em uma obsessão pela proteção daquela mulher supostamente enlouquecida, e que tentara suicídio em sua frente.
O tema paixão – obsessão desce a detalhes e sutilezas, graças à visão do diretor, frente ao desenvolvimento da estória contida no roteiro. As cenas entre Scottie (James Stewart) e Madeleine/Judy (Kim Novak) são pontuadas por uma beleza cênica extraordinária, neste ponto ajudadas (e muito) pela trilha sonora magistral criada por Bernard Hermann. O filme acaba, e a música de Hermann permanece na nossa cabeça por dias seguidos, uma prova contundente da força da imagem e do som concatenados pelo olhar genial de Alfred Hitchcock.
Existem sim aspectos de suspense e mistério dentro de Vertigo, mas eles perdem a prevalência perante a introspecção sobre o comportamento humano dos personagens, o que talvez tenha conferido ao filme a transcendência entre temas e subtemas, e a perenização da obra como um todo, ao longo de todas estas décadas.
As edições em home video
Depois de restaurado, Vertigo foi disponibilizado em videodisco, com imagem widescreen letterbox (4:3, 1.85:1), mantida até a primeira edição em DVD. Até recentemente, muito pouco da qualidade da imagem original conseguiu ser reproduzida em mídia. Na segunda edição em DVD, o filme foi novamente masterizado, mas desta vez observando a relação de aspecto 1.85:1 em transcrição anamórfica, portanto facilitando a visualização para as telas 16:9.
Entretanto, mesmo assim, cores, contraste e detalhamento são insuficientes frente à natureza do fotograma, e só conseguiram ser de fato melhorados e corrigidos na recente edição em Blu-Ray.
O processo fotográfico de alta precisão (VistaVision, lente esférica, filmagem transversal de 8 perfurações) necessita de transcrição para vídeo de alta qualidade, para ser totalmente apreciado.
Nota-se, por exemplo, a manutenção da clareza da imagem, em cenas onde a profundidade de foco, característica deste processo de filmagem, pode ser observada:
A transcrição do filme em Blu-Ray mostra, pela primeira vez, uma cópia de Vertigo que premia todo o esforço do trabalho de restauração, o que é importante para colecionadores e cinéfilos, já que não tivemos acesso à projeção da versão em 70 mm nos cinemas.
A propósito, vários outros filmes de Hitchcock foram também realizados no processo VistaVision, perfazendo um total de cinco filmes. Os outros quatro são:
- To catch a thief (Ladrão de casaca, 1955)
- The trouble with Harry (O terceiro tiro, 1955)
- The man who knew too much (O homem que sabia demais, 1956)
- North by northwest (Intriga Internacional, 1959)
O declínio e a crítica
Em filmes como Cortina Rasgada (Torn Curtain) e Topázio (Topaz), de 1966 e 1969, respectivamente, Hitchcock foi alvo de impiedoso ataque da crítica especializada, inclusive no Brasil.
Em franca fase de recesso de suas atividades, e com a inclusão de shows de TV na sua rotina, o cineasta foi acusado de ter perdido o “toque” que o fizera um diretor diferente dos demais.
Em entrevista contida no disco do filme Topázio, Leonard Maltin afirma que o mestre fora vítima de uma injustiça, mesmo entendendo que os seus últimos filmes tenham perdido a magia dos anteriores.
No meu espírito e entendimento sobre o teor das críticas, acho que uma boa parte delas foi direcionada à escolha de temas políticos, caso dos dois filmes citados acima, supostamente maquinados para ajudar a derrubar ou colocar em dúvida certas teorias da esquerda da época, no combate às sociedades capitalistas.
A década de 1960 foi pontuada, diga-se de passagem, pela escalada da guerra fria, e pela agitação e protestos em um número significativo de países, alguns com uma justificativa importante, como os que estavam no jugo das ditaduras, e outros por conta de uma modificação de comportamento social contra o conservadorismo, como o do pós-guerra da década de 1950.
Hitchcock parece também não ter sobrevivido à ausência de uma estrutura de estúdio de padrões mais rígidos. O cinema tradicional havia perdido prestígio, em favor do cinema de vanguarda europeu, que não obedecia regras de produção pré-estabelecidas até então.
O cineasta encerrou sua carreira em 1976 com Family Plot (Trama Macabra), uma obra muito mais voltada para a comédia de humor negro do que para o drama de suspense.
No final, a despeito de qualquer crítica que se possa arquitetar contra a obra deste mestre do cinema, o que importa é o legado que ele deixou, e nós, que somos fãs, temos obrigação de usar a nossa sensibilidade para separar o joio do trigo, reconhecer a enorme contribuição do cineasta e celebrar qualquer esforço feito, para preservar até mesmo o menos significante de seus filmes.
Post Scriptum:
A última grande apresentação da obra de Alfred Hitchcock nos cinemas foi em um festival promovido pela Universal Pictures, no meio da década de 1980. Na época, o ator James Stewart viajou ao Brasil, acompanhando a exibição, que contou com os seus principais filmes.
A Universal, estúdio onde Hitchcock terminou sua carreira, comprou os direitos do restante de seus filmes da Paramount. A apresentação dos filme em Blu-Ray não omite o logo da Paramount. Os filmes são reunidos em caixa com 14 discos, na edição brasileira e na de outros países, e 15 discos na norte-americana, com o acréscimo de Intriga Internacional (North by Northwest), da MGM, cedido pela Warner. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Oi, Celso,
Sem dúvida alguma, você tem toda a razão em todos os pontos que tocou. E falando em Kim Novak, a forma como ela é fotografada em Vertigo mostra ainda mais a sensibilidade do diretor.
Obrigado pelo comentário e pelo elogio. Recomendo a caixa, apesar do alto preço. Existem transcrições excelentes em praticamente todos os filmes da coleção.
Paulo,
Palmas, palmas! “Um Corpo que Cai”. Meu preferido de todos os tempos. Aliás, primeiro lugar na votação dos críticos em julho de 2012. É realmente uma obra prima.
Tenho aqui uma cópia em DVD já remasterizado que é uma beleza. Sem falar nos extras. Fico imaginando o blu-ray. Ainda não tenho o player, mas pretendo adquirir o box para deliciar-me futuramente.
Quando se fala em “Vertigo, não se pode esquecer da estonteante Kim Novak, uma deusa na constelação de atrizes do mundo cinematográfico.