Quando E.T. – O Extraterrestre foi lançado nos cinemas brasileiros em 1982 aconteceu uma verdadeira comoção popular e corrida de crianças aos cinemas. E com justa razão: o filme fala da saga de um menino alienígena, deixado por esquecimento pelos seus pais, em uma mata onde a nave havia pousado para estudar o ecossistema, particularmente as plantas do local.
O apelo emocional mais imediato é que o extraterrestre, carinhosamente apelidado de “E. T.”, ganha socorro e amparo em uma criança da sua idade.
O filme foi (muito bem) escrito por Melissa Mathison, que tomou o cuidado de não torná-lo uma obra de ficção científica, mas sim em um conto de fadas misturado a dramas familiares. O drama de Elliot é a separação dos pais e de E. T. é a ausência física dos mesmos.
O filme trata com notável brilhantismo temas como o efeito da influência ou ausência dos pais na vida das crianças e adolescentes, ou então sobre o espírito de curiosidade infantil, na busca do conhecimento e do aprendizado. E neste último aspecto, E.T. é notoriamente “humano”: tal como uma criança da terra ele pega objetos com as mãos (o tato funcionando como instrumento de aprendizado), experimenta comidas e bebidas e explora o meio ambiente sem temer as consequências.
Outra mensagem forte e recorrente em “E.T.” é a casa que consideramos “lar”, para onde todas as angústias e depressões irão correr. A “volta para casa” ganha significado especial no filme, e tem amparo no fato de que mesmo os adultos sentem a ausência dos pais e do ambiente doméstico, principalmente nas horas de aperto. Claro que não é possível generalizar, porque em infâncias e adolescências mal vividas, a realidade é diametralmente oposta.
Em “E.T.” as palavras “home” (lar) ou “mom” (mãe) são repetidas diversas vezes. O filme trabalha com trocadilhos propositais da língua inglesa, com o objetivo de dar sentido ao que está se passando. Por exemplo, “B” (a letra) é também “Be” (ser, estar), de maneira que “B Good” admite a tradução de aprovação pelo esforço conseguido ou pela orientação educacional propriamente dita. “B Good” é uma expressão que, no filme também, admite uma interpretação livre e pessoal por parte da plateia.
A restauração e as controvérsias
O filme foi rodado em película 35 mm Eastmancolor, com 1.85:1 de enquadramento, e ampliado para a tela curva do Cinerama em 70 mm. Aqui no Rio, foi exibido com apresentação de gala na tela de Dimensão 150 do falecido Metro Boavista.
O lançamento de “E.T.” em Blu-Ray culmina um trabalho de recuperação dos negativos. Antes dele, o cineasta resolvera alterar cenas, lançadas em uma edição especial em DVD, por volta de 2002, se não me falha a memória. O resultado não foi bom. Fãs do filme ficaram particularmente revoltados com a substituição das armas dos policiais federais (FBI, presumivelmente) por “walkie-talkies” (rádios de comunicação portáteis), o que cancelou o efeito dramático da sequência e, pior ainda, adulterou a mensagem do terceiro ato do filme, que exibe agentes do governo como entidades malignas. Haja vista as cenas de verdadeiro terror, mostrada na invasão dos homens em trajes de astronautas na casa da família de Elliot.
Trocar armas por rádios não só contradiz a retórica do roteiro, como também traz evidências do temor do cineasta em acusar o sistema de falsos protetores da segurança da sociedade.
Mas, o tempo passou e aparentemente as lições foram aprendidas. Na edição em Blu-Ray recentemente lançada, Spielberg recorreu novamente ao filme original, para alívio dos fãs de cinema.
A Universal Pictures vem fazendo um trabalho de recuperação de filmes e determinou acertadamente a transferência dos negativos de “E. T”. para um telecine com varredura de alta resolução. O resultado na tela é simplesmente espetacular!
O que impressiona no vídeo em Blu-Ray é o balanço perfeito entre zonas claras e escuras, crucial em um projeto fotografado com pouca luz em algumas cenas. Além disto, a saturação de cores e os níveis de resolução de baixo relevo e o contraste dos fotogramas são de cair o queixo. Lembram muito, para quem teve a sorte de ver, a apresentação em 70 mm da década de 1980. Não acredito ter existido versão melhor. E como eu já tive as versões em Laserdisc (ótima para a época) e depois em DVD duplo (contendo a versão de cinema e do diretor), me atrevo a dizer que a versão em Blu-Ray dificilmente será superada.
Os contornos religiosos
O personagem E.T. tem contornos religiosos bastante visíveis: ele morre por amor ao amigo e protetor Elliot, dando a sua vida para salvar a dele. Depois ressuscita e é levado ao pai, ascendendo aos céus em uma espaçonave. Em outras palavras, é a transcrição quase literal das narrativas contidas nos Evangelhos cristãos, sobre os últimos momentos de Jesus na terra.
Da mesma forma como Cristo, que foi torturado antes de morrer, E.T. sofreu nas mãos dos médicos. A aplicação de choque no coração é brutal. As pontas do aparelho de cardioversão elétrica, aquelas que são encostadas no peito do paciente, dependendo da intensidade da corrente costumam deixar marcas de queimadura, sem falar na sensação que a pessoa tem de levar uma pancada forte no tórax.
Os aspectos religiosos, embutidos no desenrolar do terceiro ato, em absoluto detratam ou diminuem o valor dramático ou conceitual do filme, pelo contrário. Creio que não existe maior prova de amor de uma pessoa pela outra do que doar a sua própria vida para salvar a de outra. É o supremo sacrifício, que implica estar ali uma pessoa completamente despojada de qualquer tipo de interesse, a não ser demonstrar o seu imenso potencial afetivo.
Os defeitos e as virtudes de “E.T.”
“E.T.” não é um filme perfeito, mas impressiona pelos aspectos técnicos e pela direção segura dos atores infantis, em particular de Henry Thomas, no papel de Elliot. O ator transpira sinceridade. As suas expressões faciais são perfeitas, principalmente no desenrolar da cena final do filme, brilhantemente executada pelo diretor, e reforçada em batimento (conjugação temporal da imagem com a orquestração) pela excelente trilha orquestral do compositor John Williams.
É um desses finais de filme que se tornam antológicos e ficam para sempre na memória de quem vê. John Williams parecia estar atravessando um dos seus momentos mais inspirados. A música é bem mais original, relativamente, do que, por exemplo, “Star Wars”, cuja trilha lembra muito trechos de “Os Planetas”, do compositor Gustav Holst.
Um ponto a meu ver negativo e desnecessário, em que o cineasta se deixou ser traído pelo seu próprio ego, foi colocar as suas palavras na boca do personagem “Keys” (protagonizado pelo ator Peter Coyote), quando ele diz que tinha esperado dez anos pela vinda de um extraterrestre.
A presença ou não de extraterrestres na terra é um assunto controverso e seria, em princípio, leviano demais levantar o assunto sem qualquer discussão ou qualquer prova, coisa que os ufólogos vêm tentando desmistificar por décadas. Em se tratando de uma obra de ficção, a intromissão pode até ser aceitável, mas ela reflete apenas a opinião do cineasta, que pode perfeitamente não ter ressonância na plateia. Tirando esta bobagem fora, “E. T.” é um filme sem retoques, e a maior prova disto é que o diretor tentou mudar a narrativa, colocando cenas anteriormente cortadas, e no final quebrou a cara, literalmente.
A edição de aniversário, lançada agora em alta definição, desafia qualquer crítica. A trilha sonora, anteriormente mixada em Dolby 5.1 EX, agora experimenta uma nova dinâmica, com 7.1 canais codificados pelo codec DTS HD MA. Arrisco-me a dizer que lembra muito da apresentação em tela curva da projeção em 70 mm, cuja trilha ainda era de 6 canais em banda magnética.
É óbvio que a busca dos elementos de som e imagem originais formam a base deste tipo de resultado, ainda mais que existem hoje ferramentas em computador capazes de recuperar ou até retocar estes elementos, ao ponto de resgatar o máximo de qualidade possível das fontes usadas.
Eu venho defendendo a tese de que transferir filme para vídeo deve ser feito, neste e em outros casos semelhantes, a partir do negativo de câmera. Em muitos filmes, o negativo se perdeu ou está irremediavelmente danificado, e mesmo assim os restauradores e arquivistas têm conseguido fazer milagres.
E é isto, em última análise, o que o fã de cinema e o hobbyista ou entusiastas esperam de uma edição destas para home video. [Webinsider]
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Leia também:
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- A verdade nua e crua sobre o Blu-Ray 3D
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
4 respostas
Olá, George,
A propósito do seu comentário:
George Lucas parece que não está nem aí para a base de fãs que Star Wars alcançou.
Na minha opinião, a realização dos três primeiros episódios acabou revelando todas as fragilidades dos roteiros atuais e a péssima construção de vários novos personagens e seus respectivos diálogos.
Pessoalmente, eu ainda tento preservar a imagem dele como interessado em usar novas tecnologias e novas maneiras de fazer cinema, mas o resto é meio difícil de aturar. Ouvindo as suas entrevistas, percebe-se uma pessoa inteligente e perspicaz. No entanto, dos três episódios, só o terceiro consegue passar raspando pelo borderline da mediocridade.
A impressão que a gente tem ao ver os novos Star Wars é a de total desinteresse do cineasta pelo cinema como forma de comunicação de massa. A prática vem demonstrando que não basta ter forma, o conteúdo sem trama ou coerência acaba com qualquer filme, independente do mesmo ser bem feito ou inovador tecnicamente.
O pior agora, eu acho, é que o Disney comprou a Lucasfilm, e vai fazer outro Star Wars com o também medíocre diretor J.J. Abrams. Quer dizer, parece que ninguém aprende mesmo.
Olá, Paulo
Antes de mais nada quero parabenizá-lo pelos seus ótimos artigos na área de cinema e áudio e vídeo. Aprendi muito com eles e espero que continue escrevendo sempre!
Assisti ao E.T. na época de sua estréia quando criança no extinto cine Paramount aqui de SP.
Foi uma experiência fantástica, que somente o cinema pode proporcionar, com toda a platéia reagindo junto com o filme. Como naquela época não se tinha acesso a trailers ou imagens como hoje em dia, não sabia sequer a aparência do E.T., o que ajudou em muito na experiência de assisti-lo.
Detestei a versão “politicamente correta” que foi lançada anteriormente em DVD, com aquele E.T. em CGI que parecia mais um personagem de desenho animado. Nem vou comentar a questão dos ridículos walkie-talkies. Ainda bem que o Spielberg, ao contrário de seu amigo George Lucas, percebeu a besteira que fez e lançou o filme em BD como deveria ser, em sua versão original de cinema.
Um grande abraço!
Oi, Leeosvald,
É o resultado da polarização cerebral alfa, quando se lê ou escreve sobre um assunto do qual a gente gosta…
Espero que você goste do que for ver depois também!
Olá Paulo.
Por incrível que pareça,quando estava lendo seu artigo,me deparo com o entregador na minha porta,entregando uma cópia do E.T em Blu-ray,com uma luva metalizada muito bonita por sinal,o disco nacional está muito bom.
E como é bom rever esse clássico imortalizado agora totalmente restaurado, e viva ao home vídeo.