Alguma alma caridosa do condomínio em que moro costuma pôr pequenas crônicas motivacionais no quadro de avisos do elevador — geralmente trocando o texto uma vez por semana. São breves exortações bem-intencionadas, produzidas por um desses gurus engravatados da vida corporativa que, hoje, são mais fáceis de se achar por aí do que fungo em madeira podre, sempre falando como é importante dar duro, ser honesto, tratar bem o cliente, liderar para a vitória, blá-blá-blá, e amar o que se faz. Um texto recente lembrava que “você passa as melhores horas dos melhores anos da sua vida no trabalho” e tentava fazer isso parecer uma coisa boa, como se não fosse, na verdade, uma das constatações mais deprimentes já escritas desde que Jean-Paul Sartre pôs o ponto final em A Náusea.
O que me deixou pensando na relação das pessoas com o trabalho, e em como fomos todos fraudados pelas promessas de transformação profissional que ouvimos lá nos longínquos anos 1980. Ou talvez fossem mais antigas? Eu me lembro delas nos anos 1980, mas até aí, eu não pensava muito em trabalho antes disso.
Mas, enfim: até algum momento do passado, havia uma distinção entre “trabalho” e “vida”. Trabalho era uma coisa que você fazia — varrer o chão, lavar pratos, apertar parafusos, contar dinheiro — e vida era o que você era: pai amoroso, marido carinhoso, zagueiro do time de várzea.
Algumas carreiras, principalmente nas artes e na política, fundiam trabalho e vida, enquanto outras, como medicina e jornalismo, tendiam a tornar mais finas as paredes entre as duas esferas, mas esses eram os casos excepcionais. No geral, a coisa seguia uma demarcação clara: da catraca para dentro, trabalho; da catraca para fora, vida.
Não que fosse uma situação confortável. Bibliotecas inteiras já foram escritas sobre os efeitos deletérios da alienação do trabalho, sem falar no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. H.L. Mencken produziu um artigo cáustico, chamado “A Mente do Escravo”, sobre a cabeça do homem que trabalha apenas para ganhar o sustento, sem nenhum outro objetivo em vista. O sonho de Marx de uma vivência realmente integrada — onde fosse possível pescar pela manhã, caçar à tarde, criticar à noite — era uma aspiração mesmo entre os não-marxistas. Profissões, como a de ator ou compositor, onde vida e trabalho pareciam existir numa espécie de fluxo contínuo eram — como ainda são — glamurizadas.
A promessa que minha geração ouviu, nos anos 1980, era a de que, no futuro, todo trabalho seria assim: existiria em fluxo, e seria possível levar a vida para o trabalho. Parecia uma perspectiva excitante, refrescante, inacreditavelmente humana. Porém, como o talismã maligno do conto A Pata do Macaco, que amaldiçoa seu possuidor ao mesmo tempo em que realiza seus desejos, a mudança teve um preço imprevisto: o de termos de levar o trabalho para a vida.
Isso não é um problema se o que você faz coincide naturalmente com o que você é — no caso, digamos, de um cineasta ou de um poeta — mas a coisa fica um pouco mais complicada quando o que se faz é apertar parafusos ou vender ternos. Nem mesmo o patrão sádico do filme de Chaplin esperava que seus funcionários amassem suas porcas e parafusos como um poeta ama sua poesia; ou se mantivessem em prontidão 24 horas para atender o cliente, como o cineasta pode virar a noite acordado esperando o momento exato para sua cena.
Essa é a promessa quebrada: esperávamos que poderíamos todos fazer arte, e em vez disso o que ganhamos foram as mesmas funções maçantes e sem sentido de sempre, mas agora somadas à obrigação de desempenhá-las com todo o zelo e o desprendimento de verdadeiros artistas. Tínhamos acreditado que poderíamos fazer o que amássemos; em vez disso, demos de cara com o dever de amar o que — o que quer que seja — que fazemos.
Nesse contexto, o discurso motivacional é uma espécie de Fanta Uva da alma, um doce refresco que tenta convencer as pessoas de que vender um apartamento ou um carro merece a mesma recompensa emocional que pisar na Lua ou compor um poema épico em decassílabos: que o importante não é buscar as aspirações mais nobres, mas considerar nobres as aspirações que estão à mão.
O fato da indústria da motivação não dar mostras de exaustão reflete, talvez, o fato de que o efeito de seu alucinógeno edulcorado é passageiro, de que as pessoas precisam de doses cada vez maiores, e a intervalos cada vez menores, para sustentar o delírio de que o trabalho que fazem é o verdadeiro propósito de suas vidas. De que ser vendedor é mais importante, num sentido profundo, ontológico, do que ser zagueiro no time de várzea.
Enfim, se a solução para a alienação do trabalho é a alienação da vida, será que podíamos ter a primeira de volta, por favor? [Webinsider]
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Carlos Orsi
Carlos Orsi é jornalista, escritor, autor dos livros Pura Picaretagem e Guerra Justa. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
Uma resposta
É… sei bem o que é isso, atualmente estou nessa situação em que o trabalho vai invadindo a minha vida e não estou gostando muito. Apesar de gostar da minha área de atuação (apesar de sua banalização), sou destes que gosta de ter bem definido o momento / lugar de trabalho e momento / lugar de vida pessoal, assim como o exemplo catraca para dentro / catraca para fora