Na alvorada do lançamento do Compact Disc, Miller & Kreisel se adiantaram no lançamento do que sua empresa anuncia hoje como o primeiro CD lançado no mercado norte-americano, uma gravação na realidade feita na Alemanha e o disco prensado no Japão.
O selo RealTime havia se dedicado, e com competência, à gravação analógica em corte direto no acetato. Seus pares expressaram indignação com a mudança, devido a polarizações radicais de opinião digital versus analógico na época, mas a decisão dos donos prevaleceu, devido ao avanço tecnológico conseguido, e necessário aos testes de componentes, como por exemplo, subwoofers, em desenvolvimento pela empresa.
Lá pelo meio da década de 1980, várias pessoas se reuniam cotidianamente na filial da loja Gramophone, no centro da cidade do Rio de Janeiro, na esperança de conseguir algum título novo em CD. Quase 100% das outras lojas da época sequer ouviram falar do formato. Alguns vendedores confundiam videodisco com CD, e outros falavam que tinham ouvido falar de um tal “disco laser”. Lá na tradicional Discoteca Trotta, da Rua São José, um dos veteranos vendedores, que cuidava da parte de discos clássicos e jazz, me afirma um dia coisa do tipo “eu já vi este CD, mas não vai dar em nada, ninguém vai comprar isso”…
O horror com o qual lojistas se defrontaram com o aparecimento do CD e ameaça de obsolescência do Lp contrastou enormemente com a dificuldade de aquisição e com o preço com os quais consumidores interessados no formato tiveram que enfrentar. Como os CDs na Gramophone vinham lacrados em embalagem blister, não era incomum alguém correr para comprar um título, mas depois tentar vender porque não havia gostado do disco. E como o valor de revenda era alto, passar logo adiante para alguém interessado.
Discos de referência apareciam na loja e sumiam quase que instantaneamente. Isto obrigou muito consumidor a um passeio diário por lá, antes que outro aventureiro lançasse mão de algum lançamento de interesse.
Miller & Kreisel
Ken Kreisel relatou a sua história anos atrás para o periódico Stereophile. Kreisel largou a escola médica para se juntar a Jonas Miller, que tinha uma loja de aparelhos high end. Obcecado por áudio, Kreisel começou a gravar e estudar acústica. Depois que se tornaram sócios, o trabalho de Kreisel foi principalmente com o desenvolvimento de subwoofers. Kreisel levou ainda crédito por ter sugerido a primeira montagem com o uso de subwoofer e caixas satélite, que passou a fazer parte da comunidade de fãs de áudio no mundo inteiro.
A linha do tempo de Ken Kreisel mostra a sua trajetória dividida entre os processos de captura de som e o design de novos tipos de caixas acústicas e alto-falantes. Eu tive a chance recentemente de ouvir parte da sua linha profissional para estúdios THX lá na Doublesound, na sua sala principal de mixagem. A presença de caixas THX na sala da Doublesound não é mera coincidência. O estúdio recebeu credenciamento THX para fazer mixagens. Miller & Kreisel estão envolvidos com a fabricação de componentes acústicos para home theater desde o advento das primeiras edições em home vídeo com Dolby Stereo. Foram, portanto, pioneiros na área.
Uma coisa puxa a outra: tentar gravar com o máximo de fidelidade possível, e depois procurar a melhor forma de reproduzir o conteúdo. Na era pré-digital, o melhor som possível mostrou-se em alguns casos, ser obtido com o uso de métodos de corte direto do som em acetato. Então, Kreisel abandonou a gravação em fita magnética e eventualmente comprou um torno Neumann (o mais moderno na época) para gravar discos de alta qualidade.
Com o estúdio ao lado da loja, as gravações em corte direto foram de 1976 até meados de 1979, quando a empresa investiu na compra do Sony PCM-1610, para começar a gravar digitalmente.
O PCM-1610 é um conversor analógico-digital de dois canais, e que era acoplado a um gravador de vídeo cassete U-Matic. Um sinal de vídeo NTSC sem imagem é gerado no momento da gravação em PCM linear (LPCM), com frequência de amostragem de 44.1 kHz e 16 bits. Esta feliz coincidência permitiu o uso das fitas matrizes para transferência direta ao CD, sem qualquer necessidade de reconversão ou outro tipo de manipulação do sinal.
Se nós hoje precisarmos de um argumento convincente de que o CD foi criado com características técnicas suficientes para a reprodução do som em alta fidelidade, basta fazer uso de um desses discos. Um deles, cuja capa eu mostro abaixo, é um dos meus favoritos, técnica e artisticamente:
As gravações M&K, no selo criado por eles “RealTime Records”, têm características típicas das gravações de audiófilo da época: estúdio seco (sem reverberação alguma) e colocação de microfones estudada da melhor forma possível, de modo a balancear a mixagem direto no processo de gravação em dois canais. Para tal, M&K usa microfones AKG modelo C-414, com cápsulas calibradas na fábrica, segundo especificações.
Talvez por serem gravações destinadas mais para testes do que para o público, a discografia do selo é pequena. Vários desses títulos foram lançados tanto em Lps quanto CDs. Se o leitor tiver interesse e sorte, poderá achá-los em revendas de discos raros ou em reedições recentes.
Eu mesmo tenho poucos discos da RealTime, o último deles, difícil de achar, consegui comprar direto na companhia. Trata-se de uma reedição dos álbums de corte-direto “For Duke” (Ellington) e “Fatha” (apelido do pianista Earl Hines), prensada em CD banhado a ouro. As gravações foram originalmente monitoradas e registradas por segurança em deck Telefunken, o qual foi usado para transferir o conteúdo para uma master digital com o conversor Wadia de 20 bits de resolução. O resultado sonoro é de babar na gravata, para quem ainda usa uma!
A falência e o ressurgimento
A Miller & Kreisel Sound fechou as portas no início de 2007, levada à bancarrota por concorrência desleal da fabricação de produtos piratas na Europa e na China. Os detalhes sórdidos do fechamento foram relatados à Stereophile pelo próprio Kreisel.
A descoberta da falsificação ocorreu acidentalmente: um cliente europeu deu queixa à empresa do defeito de uma caixa modelo MP150 recém adquirida. O acabamento externo da caixa, entretanto, nunca foi feito na fábrica, e bastou isto para evidenciar que o produto era falso.
A empresa foi resgatada por um grupo dinamarquês cerca de dois anos depois. Os projetos continuaram a ser feitos por engenheiros e técnicos da M&K e a fabricação de caixas prosseguiu na Dinamarca.
Apreciação
Os discos RealTime da minha coleção têm, com exceção do último, mais de vinte e cinco anos de vida. No entanto, com o aperfeiçoamento dos decoders e leitores de mesa com saída HDMI, levando o sinal digitalmente com coerência de clock até o fim da linha, esses discos apresentam hoje uma reprodução de alta qualidade e com som renovado, sem nada a dever a qualquer disco modeno.
Para quem gosta de uma gravação sem muita ambiência, os discos da RealTime são exemplares. Pena que, em alguns álbuns há uma exagerada diminuição da amplitude geral, obrigando o usuário a aumentar consideravelmente o volume de reprodução. Não é possível a mim determinar a causa desta diminuição. É possível, entretanto, que em se tratando de equipamento digital da época, ainda muito aquém dos recursos atuais, Ken Kreisel tenha decidido apostar na diminuição da amplitude para evitar passar de zero dB, e com isso evitar distorção da captura.
Por outro lado, todos os instrumentos são gravados com grande clareza. Não são informados os métodos de posicionamento dos microfones, mas eu acredito que Kreisel tenha usado métodos bastante conservadores, provavelmente minimalistas.
Em se tratando de gravação com mixagem diretamente a dois canais, o balanço no equilíbrio na cortina de som dos vários instrumentos é feito em tempo real. Percebe-se que os níveis não são reajustados durante toda a gravação, e assim é provável que qualquer mudança de nível de amplitude de um dado instrumento se deve à posição do músico frente aos microfones ou, no caso dos instrumentos de sopro, quando o músico toca um pouco mais alto.
A sensação de uma “gravação ao vivo” está presente em todos os discos, parecendo “herança” das gravações em corte direto. Muitas dessas gravações são experimentais, e destinadas principalmente ao teste de equipamentos fabricados pela M&K.
No geral, os discos da RealTime apresentam um valor artístico bastante elevado, apesar de não terem sido feitos com esta intenção. Não há muita variação de formação dos grupos de músicos na maioria das gravações. Há em pelo menos dois discos da minha coleção um enfoque em cima do chamado “hard bop”, gênero muito apreciado pelos fãs de jazz moderno.
É uma pena que a disponibilidade dos discos da RealTime seja hoje em dia escassa. Parece até que estamos de novo atravessando o mesmo problema de quando o CD foi lançado, período no qual não havia prensagem suficiente para atender os consumidores e o preço de mercado era alto.
A esperança, para aqueles que ainda têm interesse neste material, é a da reedição em selos independentes. Resta saber se serão mantidas as qualidades que fizeram dos discos RealTime o grande apelo de audiofilia quando o CD apareceu no mercado. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Tresse,
Eu só poderia lhe ser grato pelo contínuo incentivo, que você sistematicamente escreve nos comentários desta coluna.
Ser colecionador de discos neste país nunca foi fácil. Eu lutei no passado pela isenção de impostos aduaneiros da faixa de cinquenta dólares, na aquisição de bens culturais no exterior, que no caso são discos e filmes, já que livro sempre foi isento.
Esta isenção é válida até hoje, mas então o que atrapalha as pessoas ao importar? O trânsito dos bens adquiridos na aduana e nos correios é uma verdadeira via crucis, até mesmo para objetos registrados. Eu tenho encomendas que demoraram mais de um mês ou nunca chegaram, simplesmente.
Outra coisa absurda é a taxação de 60% sobre o valor em dólar, incluindo frete!
E porque importar? Historicamente, os melhores discos sempre foram difíceis de conseguir aqui, muitas vezes por total desinteresse das gravadoras. Além disso, o disco importado nas loja do ramo sempre foi exageradamente caro.
Então, era para ser tudo diferente, mas tudo isso criar empecilhos, em plena era pós-Internet, quando então usuários puderam vasculhar os catálogos das gravadoras e lojas, situação ideal que foi por água baixo, diante desta quantidade imensa de dificuldades.
Paulo, a única mensagem que consigo escrever nesse texto é “Não pare descrever”. Eu tinha alguns discos de vinil, mas seria impossível mante-los, amadoristicamente. Então os doei para um primo de segundo grau que com 10 anos, iniciou uma coleção deles. Estive com o pai dele em novembro deste e sei que a coleção continua. Ele mora no interior de Minas.