O mundo de discos de boa qualidade musical ou técnica do passado distante parece que nunca verá a luz do dia, na forma de um codec digital decente.
O que é mais lamentável ainda é se tomar conhecimento de notícias de perdas de acervos, até mesmo dentro de empresas que supostamente deveriam estar cuidando disso. E um dos motivos apontados para o extravio e às vezes perda completa de material de áudio é a maneira como as fitas matrizes são arquivadas.
Com a indústria fonográfica ainda incerta do seu futuro mais próximo, as perspectivas não são nada animadoras. Mas, o idealismo e força de vontade de selos independentes estão começando a tomar força, o que para nós colecionadores não deixa de ser um alívio ou no mínimo um bálsamo para refrescar a ferida.
Ainda por estes dias, tomei conhecimento de que o selo britânico Sepia Records havia lançado uma série de discos Command Records, e entre eles o virtuoso “Tempestuous Trumpet”, do trompetista Doc Severinsen, um tesouro que em tempos de Lps eu havia guardado desde o início da minha adolescência.
Foi graças a um amigo meu de infância, que eu consegui o empréstimo de uma cópia da última prensagem em Lp deste disco, e com ela fanaticamente restaurei e remasterizei o resultado, mas isto cerca de mais de dez anos atrás.
Até saber da Sepia Records, eu já havia perdido as esperanças de ver este e outros discos da Command que nunca foram editados em CD chegarem ao mercado, mesmo sendo em uma mídia que muitos condenam ao desaparecimento.
Entrei imediatamente em contato com o suporte da empresa, e pedi informações do compromisso deles na recuperação correta destas matrizes. E fui logo informado por um de seus representantes que eles usaram software CEDAR, de ilibada reputação entre os profissionais que se propõem a recuperar matrizes antigas da melhor forma possível.
Como as gravações da época são relativamente curtas, a Sepia Records incluiu em cada lançamento dois discos próximos ou assemelhados, no caso acrescentando “The Big Band’s Back In Town”, com a mesma orquestra.
Isto, na minha modesta opinião, foi um erro. Quando o disco chegou às minhas mãos, eu notei imediatamente que duas faixas de “Tempestuous Trumpet” estavam adulteradas. “Baubles, Bangles, and Beads”, originalmente a primeira faixa do lado B do Lp, começa com um jogo de ping-pong estereofônico, modificado para pior na versão da Sepia. Depois, a faixa continua com a omissão completa de um solo de flauta. Em “Sleepy Lagoon”, o arranjo original é cortado em quase um minuto.
Em contato com o dono da Sepia, ele me esclareceu que mandou fazer os cortes, para que ambos os discos coubessem em um único CD. Acredito que isto vai acabar em encrenca com os colecionadores. O som da remasterização é exemplar, mas no final um desperdício de tecnologia e um desserviço para quem ficou este tempo todo esperando o relançamento deste disco.
São raros os arranjos de jazz em gravadoras como a Command. Ela foi formada no início da estereofonia norte-americana e um dos seus proprietários, Enoch Light, era músico, mas mais preocupado com a qualidade de suas gravações.
Fanático e entusiasmado com os efeitos de captura e os avanços da estereofonia doméstica, restrita a dois canais, Light se deixou levar pelo impulso de “incrementar” as tomadas dos músicos com efeitos “ping-pong” (mesmo som alternando repetidamente entre os canais esquerdo e direito), câmara de eco e outros tipos de mixagem assemelhadas. Mas, nada que ofenda o fã de música, pois afinal, era o começo da estereofonia em casa, cercada de demonstrações sobre a qualidade a ser obtida pelo usuário final.
Em alguns de seus discos, a Command enxertava no encarte interno da dobradura da capa as informações sobre como ouvir e avaliar a fidelidade do equipamento do usuário. No disco “Persuasive Percussion” (vol. 1) os desafios são relativos principalmente à capacidade de trilhagem e correta reprodução pelas cápsulas e agulhas da época.
Na faixa “I Surrender Dear”, do lado A do Lp, instrumentos com tons em faixas de frequência radicalmente opostas, e totalmente isolados (fora de fase) em cada um dos canais, são registrados de forma a expulsar a agulha do sulco. Hoje em dia, usando as reedições em CD e sem agulhas para serem expulsas, o usuário pode usar a mesma faixa para ter noção da velocidade de reprodução do seu amplificador de potência e a acuidade de reprodução de transientes do sistema como um todo.
Existem reedições deste Lp em CD, uma feito pela Varèse (que está fora de catálogo) e outra pelo selo Goldies (comunidade europeia), em caixa com outras gravações. As duas soam bem, mas eu prefiro a edição desta última, que por sinal ainda está à venda.
O início dos discos elepês estereofônicos foi confuso
Logo que a Westrex lançou o torno de corte de acetato com sulco estéreo 45/45, os estúdios americanos pensaram em despejar as suas gravações anteriormente usadas para a comercialização de fitas magnéticas para a fabricação de elepês. O problema é que ainda não estavam disponíveis as cápsulas estéreo para montagem nos toca-discos da época.
No início da década de 1950, Emory Cook já havia tentado com aparente sucesso a gravação em disco de sons binaurais, uma espécie de 3D do áudio, para apreciação com fones de ouvido. Para tal, era preciso cortar as duas informações em sulcos monaurais separados e montar duas cápsulas em síncrono. Mas estes não eram discos estereofônicos.
Na realidade, experiências semelhantes com mais de um canal foram feitas ainda na década de 1930 pela Western Electric e pela EMI. Alan Blumlein, engenheiro projetista inglês, desenvolveu e patenteou o sulco estéreo 45/45, usado para cortar um disco estereofônico em 1933 pela EMI, nunca lançado comercialmente. Igualmente, as experimentações feitas pela Bell/Western Electric não resultaram em nenhum disco editado comercialmente.
No final desta década, e em parceria com Walt Disney, a primeira gravação estereofônica do cinema foi realizada com banda ótica em filmes 35 mm, e não em disco.
Com isso, o torno para discos estereofônicos nos Estados Unidos passou a ser uma realidade comercial, quando a Western Electric (Westrex) disponibilizou o modelo para cortes em sulco 45/45. O torno foi usado tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, cabendo aos selos Audio Fideliy (USA) e Pye (Inglaterra) o lançamento dos primeiros discos em 1957.
Sidney Frey, presidente da Audio Fidelity, foi mais esperto (alguns acham “antiético”) do que seus concorrentes. Ao se deparar com o torno Westrex, ele convenceu, por empenho e oferecimento, os técnicos da Western Electric em fazer um disco de teste, contendo, de um lado música e no outro efeitos sonoros. Este disco foi usado apenas para demonstrações, mas Frey ainda iria insistir no uso comercial do torno e a Western acabou por concordar em dar a ele a prioridade de corte para cerca de quatro álbuns estereofônicos, em 1957. Para resolver o problema de instalação de braço e cápsulas apropriadas, a Fairchild disponibilizou o conjunto braço-cápsula modelo 603.
Robert Fine
O lendário engenheiro de gravação Robert “Bob” Fine tem seu nome vinculado a diversas atividades no campo do áudio. Foi dele, por exemplo, o sistema Perspecta, usado pela M-G-M e pela Paramount, para adaptar a banda ótica mono de filmes 35 mm para som direcional, dando uma ideia da mixagem estereofônica, sem na realidade nunca ter sido som estéreo verdadeiro.
Bob Fine participou do início da estereofonia em Lps através de suas gravações para o selo Mercury Records, na série chamada de Living Presence. Além da Mercury, a sua passagem por selos menores, como o da Command Records, acima citado, é igualmente exemplar, e ele está presente nas gravações de Doc Severinsen acima citadas.
Segundo testemunhas, Bob Fine levava no carro (furgão) uma versão “portátil” do deck Ampex de 3 canais com o uso de fita magnética embebida em filme 35 mm, em um transporte construído com rodas dentadas (debitadores). A maior resistência e o maior espaço de área magnetizável fizeram do método “em 35 mm” um dos eleitos para a obtenção de alta fidelidade naquela época.
Restauradores dizem hoje que várias destas matrizes 35 mm se deterioraram, com uma recuperação quase impossível. Mas, como as edições deste tipo em CD continuam acontecendo, e a própria Sepia Records é prova disso, é bastante provável serem cópias em fita magnética convencional e não da fonte de três canais em 35 mm.
Adepto do arranjo de microfones chamado de Decca Tree (1955-1967, dois microfones laterais e um no centro para balancear os outros dinamicamente) com algumas adaptações, a maioria de suas capturas foi feita diretamente em três canais. Arranjo semelhante foi adotado pela RCA, na série Living Stereo, disponível em SACD de 3 canais, e que dá uma excelente noção da qualidade deste processo de captura.
O histórico de Bob Fine e sua mulher (que ajudou a resgatar o acervo) se confunde não só com a série Living Presence, mas com a gravação de áudio em geral, particularmente na área de música clássica.
O disco estereofônico ainda perdeu em vendas para os Lps mono, até aproximadamente o meio da década de 1960. Por este motivo, não era incomum remixar o conteúdo gravado de estéreo para mono, e com isso ocorreu uma perda sensível dos originais, que perdura até os dias de hoje, por incrível que pareça.
Os métodos minimalistas de captura são também historicamente favorecidos pelos selos dedicados a audiófilos, e deixaram um legado que começou na década de 1930 e dura até hoje. Por esta e muitas outras razões, a preservação deste material gravado é imperativa para que novas gerações de ouvintes possam apreciar o esforço de músicos e técnicos através das décadas, apesar e a despeito da decadência da indústria fonográfica. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Oi, Tresse,
Vinil na América é nicho.
O 5.1 da TV no Brasil está anos-luz atrasado, na minha modesta avaliação. Primeiro, é preciso aprender mixagem direito, coisa, que aparentemente, ninguém ainda fez.
Paulo, entrei no mercado de TV, onde o Áudio, é de segundo plano, já em idade avançada. Conhecia um pouco de vídeo. Como a TV era a “novidade” o pessoal de Áudio migrou para o vídeo e até hoje isso permanece. Talvez o surround 5.1 traga novidades. Pelo que sei, o vinil não morreu na América, mas o mercado é impositivo. Espero que você não pare de escrever, principalmente sobre Áudio