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Eu aprendi, ainda muito jovem, que o roteiro de cinema é a peça fundamental da construção de um filme. Muitos cineastas no passado tentaram contornar este princípio, isto é, filmar sem roteiro, às vezes com sucesso, mas eu ainda acredito que um bom filme começa com um bom roteiro. Eu só evitaria ser por demais taxativo nesta afirmação, porque existem roteiros com pilhas de falhas e incongruências, indicando que o filme seria um desastre, mas no final, quando o filme está pronto, a gente nota que não é bem assim.

Na década de 1950 existiram os chamados “roteiros de ferro”. Os estúdios norte-americanos, ainda debaixo de grande controle por parte dos seus executivos, não permitiram que uma só virgula fosse mudada pelo diretor. Simples assim. Mas, este sistema faliu, em grande parte porque o cinema como um todo atravessou crises graves de bilheteria. E quando estes mesmos executivos notaram filmes como Easy Rider, que pouco ou nada tinham em comum com a estrutura formal do cinema de estúdio e, no entanto, faturou bem por onde foi exibido. É como se o público mais jovem estivesse lhes dizendo que estavam cansados da rotina!

Mas, o sucesso relativo de um ou mais filmes, sem um roteiro definido, não é indicativo de que o roteiro formal é supérfluo ou desnecessário. O bom roteiro geralmente parte do Tratamento, que é um resumo técnico do filme, e detalha situações e planos que serão realizados pela tutela do diretor. E, finalmente, ainda é preciso lançar mão de um bom editor, aquele que recebe as tomadas de câmera, faz a minutagem (duração de um plano), e as cola na sequência estabelecida no roteiro. A montagem é tão importante quanto a direção. Muitas vezes ela salva um filme, a despeito do roteiro não ter sido bem escrito.

Quando o roteiro é perfeito

A maioria dos filmes que hoje consideramos bons, ou até “clássicos”, tiveram seus roteiros modificados várias vezes, antes e no decorrer das filmagens. Reescrever roteiros ou trocar de roteirista sempre foi prática comum, até no cinema de antigamente.

São raros, mas existem momentos onde nenhum retoque precisa ser dado. E mesmo anos depois do filme feito, ainda é possível constatar a perfeição dos diálogos e da construção das cenas.

Um exemplo onde tal fenômeno é flagrante aconteceu no roteiro de “Some Like It Hot” (no Brasil, “Quanto Mais Quente Melhor”). Ele foi escrito pelo cineasta Billy Wilder e pelo roteirista I. A. L. Diamond. Por coincidência, nenhum dos dois era americano. Para quem está “de fora” é relativamente mais fácil observar as idiossincrasias sociais ou políticas.

A diferença entre os dois é que Diamond era romeno, mas chegou aos Estados Unidos ainda muito jovem e por isso a sua formação como escritor aconteceu em solo americano. Já Wilder era cineasta austríaco formado e havia fugido dos nazistas, bem antes da segunda guerra eclodir.

A reunião de Diamond com Wilder gerou roteiros antológicos, em situações de comédia dramática, pouco ortodoxas para o padrão hollywoodiano. Vários de seus filmes posteriores reforçam para os fãs de hoje esta certeza. Em “The Apartment” (no Brasil, “Se Meu Apartamento Falasse”), lançado em 1960, o roteiro fala sobre um funcionário de uma grande corporação, que agrada os seus superiores disponibilizando o seu apartamento para as escapadas íntimas com as secretárias e demais funcionárias. O filme mostra o tempo todo como as pessoas tentam subir no sistema, na base da trapaça e do puxa-saquismo. É uma visão cínica do ambiente corporativo, mas com um final inesperado. Final este literalmente copiado em “When Harry Met Saly” (no Brasil, “Feitos Um Para O Outro”), escrito em 1989.

Um roteiro pode ser considerado perfeito quando nem mesmo os atores são capazes de modificar uma só linha de diálogo. Normalmente, os grandes atores têm a autonomia de improvisar e se auto dirigir durante algumas cenas. Assim, os diálogos são modificados em tempo real, e anotados pelo continuísta, sob pena de, em não o fazendo, confundir depois o diretor ou o montador do filme. Em Quanto Mais Quente Melhor, Tony Curtis diz ter testemunhado o fato inusitado de que nenhuma linha do diálogo havia sido mudada. O motivo: as falas eram impecáveis, como estrutura e como comédia. Todas as gags funcionam admiravelmente. O filme termina com a declaração do impaciente Jerry, ainda em trajes femininos, mas já falando com voz grossa, na tentativa de desestimular o seu casamento com o milionário: “Ah, eu sou homem”. E a resposta que fez o cinema explodir em uma gargalhada, todas as vezes que eu vi este filme: “Ninguém é perfeito”!

Roteiros são falhos, mas apesar disso os filmes agradam

Roteiro falho, tradicionalmente, é o que mais se acha por aí. A maioria não resiste a uma observação crítica. No entanto, quando o filme funciona, o faz por outros motivos.

Recentemente, eu assisti “Silver Linings Playbook” (no Brasil, “O Lado Bom Da Vida”). Uma visita breve às páginas do IMDb e se nota imediatamente que as pessoas que viram o filme e deixam por lá as suas críticas, percebem que o personagem central, com uma alegada doença mental, conhecida como distúrbio bipolar, não poderia se comportar daquela maneira, muito menos dispensar o uso de medicamentos para se tornar uma pessoa mais estabilizada.

Mas, o filme funciona como uma comédia de situações, enfocando muito mais a relação esdrúxula de Pat (Bradley Cooper) e Tiffany (Jennifer Lawrence), dois desequilibrados mentais, cada um com seu motivo: ele, que disparou as suas baterias contra o amante de sua mulher e acabou internado em um hospício, e ela que, depois de experimentar a viuvez, se torna cínica com outras relações afetivas, compensando a carência afetiva com sexo ocasional promíscuo.

Para mim, as cenas que funcionam no filme mostram Tiffany interpelando Pat se exercitando no meio da rua, gritando “Ei…”, e correndo atrás dele, discutindo sobre a situação dos dois.

E o que dizer daquele olhar de Tiffany? Ou Jennifer Lawrence fez laboratório ou ela usou de uma intuição incomum, na construção da personagem. O olhar de Tiffany é uma incógnita, a plateia não consegue imaginar o que ela está pensando. Infelizmente, eu não tenho o conhecimento de psicanálise que gostaria para analisar aquele olhar, mas eu já o vi no semblante de mulheres mentalmente perturbadas.

Entretanto, o que mais nos toca no filme não é a doença dos dois e sim o esforço que ambos fazem, se apoiando um no outro, para fazer a vida retornar ao controle. A cada cena que a gente ouve Tiffany gritar “Ei…”, ela na realidade não está querendo perder a chance de fazer a sua vida voltar a ter sentido.

Eventualmente, os dois personagens se sentem dependentes um do outro. Mas, não é exatamente esta a base afetiva pela qual duas pessoas que se apoiam podem de fato se amar e serem felizes? Pouco importa, a meu ver, se a identificação dos dois é baseada na loucura de cada um, o que importa mesmo é que eles se entendem mutuamente e se identificam naquele mar de tormentos mentais.

Silver Linings” é uma expressão que eu não conhecia. Ela se refere ao que nós chamamos de um fio de esperança, ou uma luz no fim do túnel, se quiserem. O filme em si bem que poderia ficar retido em um melodrama, mas ele contorna esta possibilidade, trazendo bom humor ao roteiro.

A plateia pode se divertir com as discussões entre Pat e Tiffany, mas ela também sente que os personagens estão de fato brigando pela sobrevivência.

A briga entre personagens que depois se sentem emocionalmente envolvidos não é novidade no cinema. Quem se lembra de “A Noviça Rebelde”, de Robert Wise? Maria e o Capitão Von Trapp discutem o tempo todo, até se declararem apaixonados. Em paralelo com o filme atual, há sempre um bem comum em torno da disputa de opiniões: no caso do filme de Wise, o zelo pelo bem das crianças e no caso de Pat e Tiffany pela saúde mental de ambos.

O roteiro de Silver Linings é otimista. Ela prediz que pessoas desajustadas podem encontrar os seus alter egos e seguir adiante. E, embutido nesta premissa, nos traz a mensagem de que a carência afetiva estressa e mata, mas o retorno afetivo cura melhor do que qualquer remédio! [Webinsider]

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Avatar de Paulo Roberto Elias

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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