A Queda, filme de Oliver Hirschbiegel, continua referência em obras sobre eventos de guerra e serve de base para discussões sobre obediência cega e autoritarismo opressivo.
Não faz tanto tempo assim que o filme “A Queda”, do diretor Oliver Hirschbiegel, abriu em sessões especiais do ressuscitado Cinema Odeon, no centro do Rio de Janeiro, com sucesso.
Na época, o cinema havia reformado o sistema de projeção com Dolby Digital, e a primeira coisa que me impressionou foi a qualidade do áudio. O filme em si me remeteu ao suspense de tomar conhecimento de um dos episódios mais obscuros da história recente do século passado: os momentos finais da segunda guerra mundial!
E este suspense não é para menos: a segunda guerra aconteceu em um momento em que cinegrafistas e o próprio cinema já tinham condições de documentar um enorme número de eventos, tanto do lado aliado como no dos integrantes do terceiro reich. Entretanto, e apesar de toda a documentação conseguida, são vários os personagens que nunca foram completamente analisados e o seu comportamento elucidado, até mesmo por scholars deste ramo de pesquisa.
Poderia estar aí um dos principais méritos do filme de Hirschbiegel. Porque o roteiro não se propõe a ser exclusivamente um filme narrativo dos eventos em tela. Fica claro, logo cedo, que existe um interesse maior em dissecar a estrutura de poder, que levou o Führer e seus associados a conduzir a maior parte do povo alemão cegamente ao estado de beligerância com seus antagonistas.
A análise do filme e as intenções dos cineastas são bem mais subjetivas do que aparentam. E é muito interessante notar que, pela leitura de dezenas de críticas postadas no IMDb, a maioria dos analistas acha que “A Queda” se propõe a interpretar a personalidade patológica ou humana dos participantes dos últimos episódios, coincidentemente a maioria do alto estafe alemão.
Aí eu me lembro de que, quando adolescente, um dos meus professores de crítica de cinema costumava dizer que era preciso descobrir as mensagens principais e subjacentes, e aprender a ler nas entrelinhas.
Esta tarefa, no entanto, não seria fácil para um jovem na fase de adolescência. É preciso sofrer muito, ter experiência de vida e principalmente analisar para amadurecer, e tudo isso leva muito tempo. Aprender a ler nas entrelinhas até hoje, para mim, é algo muito difícil, fica sempre a sensação de que algo está faltando.
Mas, nada que me impeça de perceber que as análises contidas no IMDb, focadas na interpretação da personalidade dos personagens, passa muito longe do aspecto mais importante mostrado neste filme, que é a demonstração de como o poder de Adolf Hitler era exercido sobre os seus subalternos.
“A Queda” bem que poderia servir de base documental ou material de sala de aula, para a discussão de como uma estrutura de poder é montada. Não só isso, mas também e principalmente, para a discussão sobre a postura dos homens de liderança carismática, em oposição à liderança conquistada na base do processo exclusivamente opressivo, que é como, por exemplo, as ditaduras militares se impõem ao povo.
Acho que isso eu posso falar por experiência própria. Embora eu tenha tido bons professores de história no secundo grau, infelizmente nenhum deles conseguiu jamais abordar temas como este de forma objetiva. As aulas de história meramente descritivas são úteis, mas não preenchem o vazio da interpretação dos modos de governo, nem como os líderes carismáticos aparecem.
Assim, não há outro jeito, a não ser a gente se virar sozinho, e para tal o cinema documental bem que poderia ter sido uma das melhores fontes de consulta. Mas, documentários também podem ser meramente descritivos, ficando, portanto, limitados na sua utilidade. Além disso, no histórico da produção cinematográfica, a grossa maioria dos filmes norte americanos é uma enxurrada de cânticos de heroísmo dos soldados aliados, e inúteis na interpretação histórica dos fatos.
O ódio nazista ao povo judeu é bem explorado em “O Ovo Da Serpente”, de 1977, dirigido por Ingmar Bergman. O problema maior, entretanto, é o hermetismo do filme. E, na realidade, ele só ataca uma parte do problema. As raízes da eclosão da segunda guerra mundial são multifacetadas.
Tudo faz crer que a Alemanha nazista recorreu à guerra para se redimir da humilhação imposta ao Kaiser, ao fim da guerra de 1914, e unir os povos de língua alemã, com o intuito de erradicar a miséria e promover o livre comércio entre si. E este objetivo esbarrou no discurso nazista, que alegava a necessidade de usurpação do controle monetário europeu por partes da comunidade judaica.
Em “A Queda”, Hitler faz discurso aberto contra estas comunidades sem, no entanto, se referir abertamente ao que ficou conhecido depois como “a solução final”. Para tanto, o excelente filme de TV “A Conspiração”, produção HBO/BBC de 2001, se concentra nos detalhes do planejamento do extermínio quase que exclusivamente.
Para mim, o que mais impressiona até hoje em “A Queda” é a forma de exposição didática de como os maiores líderes militares alemães engoliam seco, toda vez que Hitler desabava em um rompante de autoritarismo e paranoia.
Bruno Ganz faz questão de mostrar as duas faces do ditador. Na primeira, ele é afável, respeitoso e até sedutor e flertivo com mulheres e crianças. Na segunda, ele é um sociopata implacável, defensor da purificação racial, que seria necessária à predominância da Europa como continente civilizado, e na qual os indesejados precisam ser expulsos ou simplesmente eliminados.
O Hitler de Bruno Ganz mostra na tela um homem debilitado, acometido do mal de Parkinson, doença cerebral que se caracteriza por distúrbios degenerativos do sistema nervoso central. Um dos sinais clínicos é a incapacidade do paciente em manter imóvel partes do corpo, o que se pode notar pela tremulação da mão esquerda do personagem.
Questionamentos
A pergunta que ainda fica no ar é se o povo alemão tinha noção da profundidade das intenções de Hitler ou não. No depoimento de sua secretária, bem ao final do filme, ela alega que só ficou sabendo da resistência interna algum tempo depois, referindo-se, em particular, a Sophie Scholl, executada por ordem de um tribunal nazista.
Nós aqui no Brasil vivemos a ditadura de 1964, vendo o regime militar encampar a censura e a repressão, com os sucessivos fechamentos do congresso e com a edição do Ato Institucional número 5. Nesta época, as prisões políticas eram efetuadas sem o necessário mandato, os presos torturados, e as famílias desesperadas tentando saber alguma informação.
A classe média brasileira, mais bem informada, percebia e fingia que não estava vendo, o que implica em concordância com os objetivos dos militares, quer era dar prioridade e acabar com a subversão de esquerda no país.
É possível estabelecer um confronto de objetivos, de esquerda ou direita, entre todo regime de governo autoritário, na solução de um tipo político e/ou social de problema. Assim, se seguirmos esta trajetória, poderíamos presumir que o povo alemão tinha, no mínimo, noção da alegada ameaça financeira judia, e ficou calado por concordar com ela. Para corroborar com esta tese, é preciso recorrer à análise do alto grau de inflação na economia da Alemanha, na situação pré-guerra, demonstrado no filme de Bergman.
Se o povo alemão sabia ou não dos massacres nos campos de concentração, aí já é outro assunto. O que se poderia afirmar é que em vários documentários e filmes realizados à época é possível se notar o fanatismo popular que seguia o regime nazista, mas somente se estes filmes refletiam de fato a aceitação popular como um todo, o que é pouco provável. O problema é que o cinema é manipulável, e pode ser usado como um dos mais eficientes veículos de propaganda.
Goebbels, por coincidência, pregava a não politização do filme de propaganda nazista, o que significa dizer que todas as mensagens deste teor teriam que ser subjacentes. Não é à toa que Goebbels é considerado por muitos como o pai da propaganda moderna, onde se influencia e mente, para vender algum tipo de produto. O que esta “propaganda moderna” na prática faz é massificar algum tipo de mensagem, até o ponto onde ele se torna verdadeira aos olhos do público.
Em “A Queda”, nossos olhos são desviados para mostrar o lado sinistro de Goebbels, talvez pior do que, ou igual, ao seu chefe de estado. Ele confronta os militares do alto escalão com teorias conspiratórias. Se ele de fato fez isso, só pode ter sido por puro oportunismo. A história mostra que Hitler não era consenso entre estes militares, muitos achavam que ele estava levando o país ao suicídio compulsório. Em “A Queda” o diretor segue firme na linha de exibição dos delírios estratégicos de Hitler, com o apoio incondicional de Goebbels, e na indecisão de seus subornados militares de fazer ou não uma aberta contestação às ordens impostas pelo ditador.
Se alguma reflexão importante os cineastas de “A Queda” fazem o tempo todo é a de que o perigo da obediência cega, diante do autoritarismo opressivo, tem como final a destruição do poder constituído.
A história da segunda guerra mundial é pródiga de lições e de eventos que exigirão ainda muita reflexão, se nós ainda não quisermos incorrer nos mesmo erros.
A mudança de atitude neste sentido, entretanto, passa pela melhoria dos paradigmas de educação oferecida ao povo. Em lugares onde a educação de base é ruim, a resistência aos ditadores declarados ou escondidos, poderá ser sempre nenhuma.
Mesmo a Alemanha já tendo superado os seus problemas, e incluído entre os países de maior poder econômico no mundo, a reflexão sobre as ditaduras continua de pé, como se mostra em “A Queda”.
Nós aqui bem que poderíamos aprender esta lição. Não confiar em propaganda, ou discursos moralistas de pessoas públicas, ou então nas mesmas promessas dos mesmos políticos, em vésperas de eleições. Ouvir tudo isso sem antes fazer um escrutínio se isso tudo é ou não espelho das reais intenções de cada um, será sempre imprudente! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Olá, Miguel,
É possível que você tenha razão. Eu não sou especialista nem estudioso no assunto. A minha opinião foi baseada em um belíssimo documentário da BBC chamado “We have ways to make you think”, que eu assisti na década de 1990.
Seja como for, obrigado pelo comentário e pelo esclarecimento.
Paulo,
Gostei bastante do seu post sobre Der Untergang. Realmente, é um filme extremamente interessante, pois abrange inúmeras questões inéditas aos filmes/documentários sobre o nazismo e a segunda guerra em geral(e olha que são muitos filmes e documentários!). Quanto ao seu comentário sobre Goebbels ser um dos precursores da propaganda moderna, eu tendo a discordar. As suas contribuições foram extremamente importantes, principalmente nas questões que você supracitou acima. Porém, para a maioria dos estudiosos da propaganda moderna, Edward Bernays(nephew do Freud) é considerado o pai da propaganda moderna, relacionando as questões de impulsos psicológicos do trabalho de seu tio com a relação de compra-necessidade.
Abraço