Como colecionador antigo de discos, eu posso hoje afirmar com bastante segurança o seguinte: é preciso estar no lugar certo e na hora certa, se você quiser ser oferecido algum item importante da sua coleção.
E foi exatamente assim quando, anos atrás, eu estava olhando as prateleiras da falecida Gramophone, ali do centro da cidade, e me deparei com o relançamento do disco, hoje antológico, gravado por Edison Machado para a gravadora CBS em 1964, com o título “É Samba Novo”.
A palavra “Samba” no título do disco poderia facilmente enganar os desavisados. Quem acompanhou a trajetória do baterista e do seu grupo, em particular a do saxofonista/flautista J. T. Meirelles, teria eventualmente se dado conta da influência marcante de estilo sofrida pelos artistas, fazendo uma fusão competente com a música jazzística moderna, vinda das hordas de Art Blakey e dos Jazz Messengers, ou ainda de Horace Silver, que, por sua vez, influenciou fortemente estes últimos. Esta influência é facilmente notada em gravações de Meirelles, como o igualmente antológico “O Som”, para a Philips, em 1964.
O que se mostrou preocupante, à época do projeto de relançamento do disco original de Edison Machado, foi o selo na embalagem, avisando ao público tratar-se de uma edição limitada:
Se o disco é tão importante assim (e, de fato, é mesmo), porque então fazer uma tiragem limitada?
Insistência histórica no baixo nível técnico
Se tem uma coisa que o colecionador antigo de discos sabe bem é que durante a década de 1960, quando obras deste tipo, com música instrumental moderna, eram corajosamente lançadas à sorte no mercado fonográfico, raramente (sem trocadilho) o eram com a qualidade compatível com a fonte do estúdio. Basta ver hoje a contracapa do Lp lançado na época:
O texto da contracapa mostra “CBS Monaural – 37337” logo em cima à direita. Em baixo, o atestado de garantia, que hoje só pode nos fazer rir às bandeiras despregadas, dizendo: “Se V.S. possui um aparelho de som estereofônico, também este disco apresentará um som de alta fidelidade perfeita”.
Mas, o relançamento em CD nos mostra coisa completamente diferente, já que vários dos principais estúdios da época já tinham se convertido para gravar com som estereofônico. Mesmo que com o uso de equipamentos questionáveis, como limitadores e compressores, todas as reedições de discos de bossa nova deste período acabaram sendo relançados em estéreo. Existem exceções, como por exemplo, na gravação da RCA “O LP – Os Cobras”, que consiste mais ou menos nos mesmos músicos. E, neste caso, é possível que as fitas originais tenham sido perdidas.
A insistência da indústria fonográfica nesta época de lançar Lps mono, ao invés de mixar as fitas gravadas para dois canais, é constrangedora. E se não bastasse isso, era frequente a prensagem de discos ser feita com sobras de vinil (conhecido na indústria como “scrap”), o que torna a superfície barulhenta logo na primeira tocada.
E se hoje se tem acesso ao que existe de mais moderno em recursos para a restauração documental deste período, continua sendo difícil de compreender porque os restauradores ainda recorrem a compressores ou limitadores.
Fitas magnéticas da época, rodando a 15 polegadas por segundo, podiam facilmente atingir 60 dB de relação sinal ruído. A base de sustento das fitas melhorou consideravelmente da década de 1950 para a de 1960, aumentando a durabilidade e principalmente diminuindo o atrito com as cabeças.
Eu pessoalmente seria partidário de se manter o sibilar das fitas (conhecido como “hiss”) se isto implicasse em qualquer tipo de adulteração do original. Mas, jamais e em tempo algum, aplicar um limitador, que consegue cortar os picos de transientes de amplitude mais elevada, ou, pior ainda, aplicar um compressor, que achata a dinâmica irremediavelmente.
Se considerarmos que vários estúdios da década de 1950 e 1960 conseguiam gravar discos com uma distorção bastante audível, não irá ser com limitadores ou compressores que este material irá melhorar.
A choradeira dos herdeiros
Uma matéria recente do jornal O Globo relata que um selo inglês está reeditando discos brasileiros raros, com a alegação de que a idade dessas gravações (cerca de 50 anos) acabou com o argumento de que as mesmas são protegidas por direitos autorais.
A matéria é confusa, porque se alega, em contrapartida, que no Brasil são necessários não 50, mas 70 anos, até que esses direitos caduquem. E como a maioria dos artistas não está viva, são os herdeiros quem reclamam da iniciativa da gravadora inglesa.
Ironicamente, a própria matéria do jornal cita que, entre os reclamantes, alguns já encomendaram os seus exemplares, pois afinal trata-se de discos raros!
Os reclamantes se esquecem de que os direitos fonográficos pertencem aos acervos das gravadoras e não dos artistas, a não ser que tivesse havido um contrato estabelecido entre as partes, na época em que as gravações foram feitas. Foi o caso, por exemplo, de Ray Charles, que saiu da Atlantic Records para a ABC-Paramount, com o direito de se manter proprietário as fitas matrizes.
Note o leitor que, no fim das contas, se trata de um problema muito mais de ordem financeira do que a necessidade de se preservar fonogramas. Na prática, isto significa que reedições supostamente “ilegais” acabam se revertendo em benefício para o colecionador. Parece até o “Napster” da indústria fonográfica.
Eu mesmo já toquei neste assunto, anos atrás, sobre a Preservação de Fonogramas, de discos de bossa nova. De lá para cá, nada de fato mudou, exceto que nem no Japão se vai mais achar discos importantes do período.
A disponibilidade de material fonográfico em formato de arquivos continua sendo um verdadeiro tabu para selos daqui e de fora. O que significa dizer que quando uma determinada prensagem de um disco acaba ele automaticamente se torna uma raridade, que somente estará disponível por conta de estoques antigos, ou ainda a preço de ouro, vendido em leilões de algum site.
Eu bem que gostaria de ver este cenário mudar. Acho improducente as brigas de herança, enquanto que a ausência constante de reedições acaba por punir os ouvintes recentes, que são privados de educação formal e/ou informações sobre a herança não financeira, mas cultural e histórica. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.