Assisti a apenas um dos episódios do documentário sobre Ingmar Bergman sob o título “Tresspassing Bergman”, onde o cineasta Alejandro Iñárritu invade (literalmente) a antiga residência do cineasta sueco, dando razão ao título em inglês. O trailer oficial do documentário pode ser visto abaixo:
Um dos trechos curiosos do episódio, que trata da morbidez de Bergman sobre o tema “Morte”, nos mostra a cinemateca particular do cineasta, com 1711 filmes em VHS contabilizados e mostrados dispostos em várias estantes.
Iñárritu aparenta se surpreender com a presença de filmes como “Cocoon” ou “Wall Street”, o primeiro dos quais bem longe do que se poderia classificar como “cinema de arte”.
Surpresa só se for para ele. Nos meus 16 anos de idade, eu assisti as aulas de um professor de crítica de cinema, que nos disse logo de cara que “é preciso assistir tudo”, e nos colocou exercícios de filmes que estavam em exibição, para que nós lhe apresentássemos a respectiva crítica.
Ele tinha razão. Nunca me esqueço de ter sido mandado assistir “A Vigésima Quinta Hora”, que fez sucesso e que agradou a todo mundo lá da sala. Mas, ao encarar a crítica, o nosso professor observou que ninguém havia notado que o livro sobre o qual o filme se baseara era um drama de guerra, travestido no filme como uma comédia para agradar comercialmente ao público.
Em outras palavras, é preciso ver primeiro para então chegar a uma conclusão sobre se o filme é bom ou ruim, e independente do rótulo que recebe pelos exibidores ou críticos. Eu já vi muito filme “de arte” ruim, tedioso ou pretensioso além da conta. Portanto…
Já eu fiquei surpreso com o fato de o grande cineasta ter o hábito de assistir três filmes todo dia, nem tanto pelo hábito em si, mas pelo fato de ser um usuário de videocassetes surrados. Logo ele? E para não deixar margem de dúvida, o documentário exibe a sala onde ele fazia isso, com uma TV de tubo pequena e um VCR do tempo da vovozinha!
Enigmático como sempre, será?
O documentário expõe um ângulo da vida de Ingmar Bergman que muito provavelmente pouca gente conhecia: de consumir diariamente filmes classificados como oriundos do cinema comercial. No episódio, Woody Allen relata que Bergman às vezes assistia algum filme de James Bond quando perdia o sono. O próprio Bergman diz em entrevista que gostava de ver filmes dos outros diretores, não os feitos por ele.
E quem poderia condená-lo? A magia do cinema está em todo o lugar. O cinema é oriundo da Lanterna Mágica, brinquedo que permitia projetar pinturas em vidro, para uma plateia que ouvia o relato de uma estória. O grande mérito do cinema é contar uma estória através de uma imagem em movimento, transportando o espectador para onde o cineasta quer!
Não existe, portanto, nada de enigmático nisso: Ingmar Bergman gostava de cinema! E tinha a cabeça aberta para assistir qualquer filme, independente de ser bom ou não, de ser “de arte” ou “comercial”.
E é importante assinalar aqui que muito do cinema comercial foi realizado com méritos e qualidade inegáveis no passado! Na lista de qualquer cinéfilo eu aposto existir um número significativo de filmes comerciais que lhe causaram impacto na época em que foram assistidos pela primeira vez. O Studio System deixou passar diretores como John Ford, Frank Capra, Alfred Hitchcock e tantos outros, que fizeram filmes portentosos.
O discurso obscuro e às vezes inexpugnável
Quando se assiste um filme de Ingmar Bergman pode se estar diante de uma narrativa quase impossível de deslindar. O documentário feito sobre ele ressalta temas em torno dos quais Bergman se debruçou, e por conta disso muito provavelmente despejou na tela uma boa parte das suas preocupações e neuroses. E aí talvez se possa inferir que para o público em geral este tipo de cinema os leva a não conseguir assimilar cenas onde o cineasta praticamente discursa sobre o que se passa na sua cabeça no momento da filmagem.
Eu assisti Bergman várias vezes no passado distante. Posso testemunhar que em grande parte eu era imaturo demais para conseguir entender o que eu estava vendo. Olhando estes filmes hoje possivelmente a minha visão seria diferente da daquela época, ou não.
Eu só sei que filmes como “Noites de Circo”, “O Silêncio” e outros me agradaram muito, em uma idade adolescente. E outros, como “Morangos Silvestres”, “O Sétimo Selo” ou “Persona”, considerados obras primas de Bergman, nem tanto. Achei na época “Persona” pessoal demais, vítima de uma monotonia insuportável. Talvez se o visse hoje, não achasse o mesmo.
Bergman escandalizou as plateias com cenas de nudez já na década de 1950. E quando “O Silêncio” foi exibido no Brasil uma parte do filme foi cortada pela censura, exatamente por causa da nudez em cena. Eu tive a sorte de assistir o filme sem cortes, e mesmo naquela época achei os cortes da censura ridículos. Coisas da época. Hoje em dia se vê pornografia e nudez frontal em seriados de TV e ninguém fala nada. Agora, cortar ou censurar cineastas como Bergman beira o ato criminoso!
O cinema de arte no Brasil
E falando em surpresas, eu às vezes me espanto quando tomo conhecimento de alguém jovem me falando que gosta de cinema de arte, e sai citando filmes de cineastas que fizeram época no passado distante.
Na década de 1960 cristalizou-se no Rio de Janeiro um circuito exibidor de filmes de arte. Começou, se a memória não me trai, no Cinema Paissandu, que foi recentemente fechado. O recinto virou uma espécie de Meca, para onde estudantes, intelectuais e o público em geral convergiam. Na época, seus frequentadores mais assíduos foram rotulados como “a geração Paissandu”.
Em paralelo, o Museu de Arte Moderna e o Museu da Imagem e do Som também eram alvo da pesquisa de quem queria assistir um cinema alternativo. O Paissandu havia sido construído pela Cinematográfica Franco-Brasileira, que logo a seguir construiu o Tijuca Palace, no qual durante anos rolou uma sessão do MAM o dia todo de quinta-feira. Foi nestas sessões que eu tive chance de abranger o meu conhecimento sobre o cinema de arte (ou não comercial, se quiserem) de outros países.
Quem não tinha visto algum filme no Paissandu ou o queria ver de novo, o Tijuca Palace nos dava a todos esta chance. E no início da década de 1970 foi construído o badalado Cinema 1, que ficava na Rua Prado Junior, em Copacabana, e que virou “point” onde estacionavam estudantes universitários, entre os quais este que lhes escreve.
O Cinema 1 foi montado de forma similar ao original norte-americano. Era possível tomar um drinque e assistir o filme de uma poltrona em um bar que ficava fora da sala de exibição propriamente dita. Entre eu e demais colegas de campus, o Cinema 1 se tornou um programa quase que compulsório. Naquela época, o ingresso era barato, o estacionamento fácil e as noites tranquilas, até mesmo na Prado Junior, tradicional reduto das meninas de programa do bairro!
É uma pena ver tudo isso destruído, mas parece que nada resiste ao tempo. O Paissandu fechou com a promessa dos donos de não virar igreja. O Tijuca Palace, que havia se dividido em dois, a última noticia que eu tive era de que estava totalmente podre. Houve uma tentativa de reabertura, porém fracassou diante do alto custo. O Cinema 1 perdeu o espaço para um hortifrúti. Ir ao MAM à noite é algo que eu não me arrisco, por conta da violência urbana. Então, só nos resta tentar um DVD ou Blu-Ray, caso este último esteja disponível com este tipo de filme. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.