Maria Elizete Kunkel é uma dessas nordestinas “arretadas”: nascida em Fortaleza, filha de pais que não tiveram acesso à educação formal, sua garra e determinação a levaram a ser uma das quatro mulheres a concluir a graduação em Física pela Universidade Federal do Ceará, em uma turma de 40 pessoas. Isso pelos idos de 2000.
Apenas 16 anos depois, Maria Elizete acumula um doutorado em Biomecânica pela Universidade de Ulm, na Alemanha, um mestrado em Bioengenharia pela USP e dezenas de artigos publicados em congressos nacionais e internacionais.
Atualmente à frente do Grupo de Biomecânica e Forense da Unifest (Universidade Federal de São Paulo), onde desenvolve pesquisas na área de Tecnologias Assistivas, Antropometria e Criminalística, a Professora Dra. também coordena o Programa Mao3D, de reabilitação de amputados na Região do Vale do Paraíba, em São Paulo, usando a impressão 3D para a criação de próteses de mão.
Na entrevista abaixo, que contou também com a colaboração das alunas de Engenharia Biomédica da Unifesp Ana Paula Cano e Thabata Ganga, Maria conta detalhes do Mao3D e o que a motiva a buscar incentivos junto à sociedade para fomentar a iniciativa no Brasil.
1. Em sua apresentação do TED Talks você conta um pouco de sua trajetória profissional e da criação do Programa Mao3D. Você poderia mencionar números e próximos passos e objetivos do Programa?
– O Mao3D é um projeto de extensão universitária desenvolvido no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (ICT-Unifesp) em São José dos Campos. Temos como objetivo protetizar e reabilitar 100 pessoas, esperando que sejam a maioria crianças, que normalmente iriam ficar sem prótese até chegar na fase adulta, por não existirem modelos funcionais infantis no Brasil.
A prioridade será dada à Região do Vale do Paraíba, pois precisamos acompanhar de perto a reabilitação, processo onde podem surgir os problemas para o ajuste da prótese. Com essa assistência, podemos resolvê-los rapidamente com uma nova impressão 3D. Trabalhamos com modelos Open Design fornecidos pela ONG E-Nable e em parceria com um Instituto de Saúde que atende pelo SUS, pois sabemos que não basta entregar a prótese para a criança, é preciso reabilitá-la também.
Os índices de rejeição para este tipo de prótese são altos: há dados de 80%, reafirmando a necessidade de um protocolo de reabilitação adequado. Recentemente, criamos um blog do Mao3D para popularizar o conhecimento sobre próteses, impressão 3D e a cultura Maker no Brasil. Estamos escrevendo também artigos científicos pois a literatura é muito pobre nessa área. Além disso, estamos oferecendo treinamento e capacitação para a produção de prótese e para a reabilitação (vídeo abaixo).
2. Existem dados sobre como o Programa tem impactado no processo de manufatura aditiva na Região do Vale do Paraíba? Como empresas e pessoas físicas podem contribuir na confecção de próteses sob a supervisão do Programa?
– O ano de 2015 foi de aprendizagem para todos no grupo. Foi nesse ano que nos aprofundamos nas ferramentas para desenvolver os projetos e nos empenhamos na divulgação do programa e realização de parcerias importantes, como com o Centro de Reabilitação Lucy Montoro.
Participamos do evento TOM-SP, que tem como slogan “um final de semana para um mundo melhor”; nosso trabalho foi muito reconhecido e elogiado.
Recebemos o 6º lugar no Campus Future 2016 com o projeto de uma prótese mioelétrica infantil de baixo custo, e nos foi conferida a maior nota de impacto social.
Ainda na Campus apresentamos uma palestra sobre modelos open design que pode ser vista na íntegra:
O Mao3D começou a entregar próteses em janeiro de 2016. Logo, ainda é muito cedo para se falar sobre o impacto do uso das próteses. Quanto às doações, temos um formulário para cadastrar os interessados em colaborar com o Mao3D, sendo possível manifestar interesse em ajudar de três formas:
- Doação da impressão de uma prótese
- Doação de filamento PLA
- Doação de impressora 3D
Até o momento temos 10 empresas cadastradas, 70% delas querem ajudar com impressão 3D e o restante com material ou doação de uma impressora. Criamos uma campanha de crowdfunding porque, devido à crise, o Ministério da Educação teve um grande corte de recursos no Edital anual que iria apoiar este tipo de projeto.
Tiramos a nota 94 de um total de 100 e mesmo assim não entramos na nota de corte. Nem isso fez o grupo desistir do Programa Mao3D e passamos a buscar recursos alternativos.
3. Na apresentação do TED Talks você fala sobre uma abordagem interdisciplinar em sua carreira. Traçando um paralelo com a impressão 3D, como você acha que a bioimpressão – ou “Bioprinting” – pode revolucionar a Medicina daqui para a frente?
– A bioimpressão com certeza vai mudar o modo como a medicina cirúrgica tem sido feita no Brasil. A mudança tem sido lenta, mas não tem volta. Ela requer mais estudos, mas os benefícios virão com o tempo, seja no tratamento de doenças ou na reabilitação de funções do corpo. Essa união da Engenharia com a Biologia ainda requer muito estudo para tal revolução.
Com o tempo veremos a diminuição da espera por órgãos, uma diminuição dos gastos do SUS e um aumento na possibilidade de uma pessoa portadora de doença ou acidentada ser reintegrada à sociedade.
4. Qual balanço você faz do grupo de Biomecânica e Forense da Unifesp desde a criação, um ano atrás? Quais são as perspectivas para 2016?
– O ano de 2015 foi de formação e definição dos projetos que queremos desenvolver. Praticamente atuamos em duas linhas de pesquisa diferentes: Biomecânica e Forense. Mantemos uma página no Facebook atualizada todos os dias por meio da ferramenta do Google Alerts, onde temos a oportunidade de informar e aprender sobre novas tecnologias. De certo modo, a impressão 3D uniu essas duas áreas e acabamos criando um grupo só.
Agora estamos começando a ser reconhecidos, pois estamos presentes tanto em eventos pequenos locais como nos maiores eventos na área, apresentando projetos de pesquisa ou de extensão. Nossos primeiros artigos científicos estão sendo publicados em periódicos internacionais.
As pessoas querem saber o que fazemos e começaram a chamar nossos projetos de “projetos do bem”, porque a motivação é sempre resolver um problema social na área da saúde por meio de tecnologia de baixo custo.
Temos um canal no YouTube e mostramos com frequência o andamento dos nossos projetos ainda no laboratório.
5. Qual é o engajamento dos alunos da Unifesp no grupo? Trata-se de um grupo interdisciplinar na teoria e na prática, como você sempre buscou também na sua carreira?
– Sim, o grupo é muito interdisciplinar, temos estudantes de Engenharia, Ciência e Tecnologia, Engenharia Biomédica, fisioterapeutas, engenheiros de computação, psicólogos… enfim, o grupo tem se tornado cada vez mais interdisciplinar. Já tivemos por exemplo uma advogada querendo pesquisar sobre legislação para o uso da impressão 3D na Medicina. No grupo todos conversam no mesmo idioma e se ajudam muito.
6. Que tipo de impressora é usada no Laboratório da Unifesp para a confecção de próteses biomecânicas? Tudo é produzido in loco ou há intenção de fazer parcerias com empresas e instituições?
– Temos somente impressoras de baixo custo. Em nenhum momento tivemos o interesse em depender de uma impressora 3D cara que usa material caro, investimos muito tempo em tirar o melhor de impressoras de baixo custo porque elas ainda dão muitos problemas, mas essa foi uma das nossas prioridades: o baixo custo com qualidade.
Recebemos a doação de uma 3D Cloner, uma das alunas tem uma Graber3D, e recentemente ganhamos uma Sethi3D, que tem sido a mais adequada para a produção de próteses.
Nosso modo de produção é bem caótico, mas funciona. Como a impressão 3D requer horas para ficar pronta, a maior parte das peças das próteses são produzidas nas casas dos bolsistas que possuem impressora 3D, em seus quartos imprimindo a noite toda. Resolvemos a maior parte da comunicação entre o grupo através do Facebook, WhatsApp e reunião por Hangout.
7. O laboratório da Unifesp é aberto à visitação a quem quiser conhecer mais os projetos do grupo de Biomecânica e Forense?
– Sim. Depende somente se estamos em reforma ou não. Eu entrei na Unifesp em um período em que ela ainda estava em construção e os espaços para laboratório sendo redistribuídos. Inicialmente recebemos um laboratório provisório dividido com outros grupos, agora estamos em um menor, mas ficamos separados e em setembro devemos receber o definitivo em um prédio que está sendo reformado com recursos do Finep.
8. Você poderia antecipar um pouco do que pretende apresentar em sua palestra no Inside 3D Printing São Paulo?
– Na Inside vou falar sobre o impacto do uso da manufatura aditiva no desenvolvimento de produtos de tecnologia assistiva e de como isso pode refletir no futuro no mercado.
Eu vejo que a legislação atual vai ter que se adequar às novas tecnologias pois nossa legislação ainda é de um tempo em que o Brasil comprava tudo importado e era totalmente dependente do exterior.
A modelagem 3D e a impressão 3D abrem portas em todas as direções dentro da tecnologia assistiva, mas os cursos universitários precisam se renovar também.
Por exemplo, terapeutas ocupacionais ainda não sabem como fazer a reabilitação de uma criança usando uma prótese feita por impressão 3D, eles não entendem que o modelo pode ser remodelado quantas vezes for preciso. É um erro pensar qual função a criança pode realizar com o uso da prótese, quando o correto seria pensar como a prótese deve ser feita para permitir a realização de uma determinada tarefa.
9. Por se tratar de um projeto open source, você acha possível que outras iniciativas de inclusão social — como a da Mao3D — poderão surgir daqui para a frente, com a impressão 3D tornando-se mais popular e acessível para todos?
– Muitos grupos têm nos procurado dizendo que querem desenvolver um projeto como o Mao3D onde moram (Acre, Bahia, Rio de Janeiro, Tunísia). Esperamos logo ter um modelo de programa mais bem definido que possa ser replicado de modo responsável, pois às vezes aparecem também pessoas querendo fazer de qualquer forma e nesse caso eu costumo não ajudar pois se trata de atender a pessoas, dar uma esperança de que ela vai ter novamente uma mão e isso não pode ser feito de qualquer forma.
10. Quais são as burocracias relacionadas a próteses e outros equipamentos biomédicos – certificações, aprovação de conselho de ética, atestado de biocompatibilidade, acompanhamento de fisioterapeuta etc – que vocês enfrentam desde a criação até a entrega da peça ao paciente?
– Infelizmente ainda existe muita burocracia para todos os lados. No Brasil, uma prótese é um dispositivo médico que precisa ser prescrito e ter seu uso acompanhado, mas não é só isso. Como estamos dentro de uma universidade, precisamos submeter praticamente todos os nossos projetos que envolvem humanos à um comitê de ética explicando em detalhes como vai ser feito todo o processo.
Até aí eu concordo, pois o objetivo é garantir o bem estar do paciente. Mas já houve caso em que o comitê me pediu um termo onde a criança deveria assinar declarando que não está sendo obrigada a receber a prótese pelos pais. Se alguém pede uma assinatura de uma criança que não tem uma mão é porque não entendeu nada, porque a criança que vamos atender pode ser inclusive bi-amputada.
11. Você tem conhecimento de outras iniciativas como a sua no Brasil?
Gostaria de ter e sempre nos admiramos por que não existem mais grupos organizados como o nosso. Os modelos estão aí para quem quiser, em uma entrevista recente eu esclareço sobre os tipos de prótese criados pela e-Nable e sobre como a partir desses modelos é possível desenvolver outros.
Acho que uma parte dos que iniciam querem resultados rápidos e por fim desanimam com a burocracia brasileira. Passamos muito tempo investindo recursos próprios para compra de material, porque pegamos um país em crise, sem quase nenhum recurso na universidade.
Graças ao empenho dos alunos seguimos em frente, porque a motivação é maior do que os problemas que aparecem. Quase todos dias eu recebo e-mail ou inbox de uma mãe que me escreve cheia de esperança de conseguir ajudar um filho que nasceu com malformação ou que perdeu a mão devido a um acidente ou cirurgia.
Por isso fizemos crowdfunding, porque só precisamos de mais recursos para fazer muito mais do que foi feito até agora.
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