A morte recente do renomado ator John Hurt me fez lembrar uma de suas muitas contribuições ao cinema, principalmente daquela quando ele foi parte do admirável elenco da obra do diretor Fred Zinemann “O Homem Que Não Vendeu Sua Alma” (“A Man For All Seasons”).
O filme de Zinemann teve impacto no público adolescente de uma geração que frequentava cinemas de arte neste Rio de Janeiro, um grupo que preteriu Hollywood em favor do cinema de vanguarda feito na Europa.
O filme é totalmente ancorado no dramaturgo Robert Bolt, que escreveu a peça e o roteiro. Entretanto, a realização do filme propriamente dito não se viu cercada de pompa ou luxo, mas sim de um grupo de atores de extraordinário talento, e dos quais o diretor tirou a força do roteiro. Não se admira que A Man For All Seasons tenha conquistado seis Oscar e vários outros prêmios, entre os quais o de melhor ator, melhor diretor, melhor roteiro e melhor filme em 1967.
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Trata-se de um drama político, que se passa na época do ultra prepotente Rei Henrique VIII, que se casou diversas vezes, 6 no total, sem que seus divórcios tivessem a aprovação da Igreja Católica.
A peça de Robert Bolt, por seu turno, se passa no período em que Henrique oitavo queria se casar com Ana Bolena, mas o divórcio da sua antecessora, não aprovado pela Igreja, havia se tornado um empecilho. O rei procura em Thomas More o apoio político do qual precisara, para desafiar a autoridade do Papa.
Mas, Thomas More, profundo conhecedor de leis, filósofo, e principalmente um católico ortodoxo, resolve não apoia-lo, e renuncia à chancelaria, com receio de represália.
Thomas More acreditava na autoridade suprema do Papa, baseada no relato do Evangelho que diz que Cristo deu a Pedro o encargo de fundar a Sua Igreja. “Tu Es Petrus”, diz o texto, no qual Cristo afirma que Pedro era a rocha na qual ele edificaria a sua Igreja.
Conta a história que, apesar de Thomas More ter tentado se afastar, a obsessão de Henrique VIII pela sua aquiescência fez com que ele lançasse os seus prepostos em uma guerra silenciosa contra More. Cromwell, o tirano, foi quem se encarregou da tarefa de ou dobrar ou destruir Thomas More.
A situação política se agrava quando, ao desafiar o Papa, Henrique VIII se autonomeia Chefe da Igreja, e como o título em si não é reconhecido pelo Bispo de Roma, ele então funda a Igreja Anglicana, que existe até hoje.
Thomas More, por seu turno, combateu as dissidências protestantes, e não poderia agora abonar este tipo de desafio.
O filme, como a peça, gira em torno do jogo desta disputa. Henrique VIII de um lado, querendo a total obediência de seus súditos e o apoio político de Thomas More, e este, vendo que as acusações de alta traição contra ele são infundadas na lei, fazendo todas as manobras possíveis para não cair em armadilhas feitas pelo déspota Cromwell.
O comportamento do elenco
Se a gente precisar de um exemplo nítido de como o cinema se serviu de atores extraordinários, em torno de um projeto de grande qualidade, O Homem Que Não Vendeu Sua Alma está aí mesmo para provar como isto é possível. Até mesmo Orson Welles, já exilado de Hollywood há vários anos, participou do evento.
Paul Scofield, no papel de Thomas More, e todos os coadjuvantes emprestam brilhantismo aos diálogos e na execução do roteiro. Chega a ser difícil saber quem é melhor. A fleugma dos personagens, particularmente a de Thomas More, aliado ao minimalismo tradicional da escola inglesa de atores, dá ao filme uma atmosfera perfeita para o desenrolar da trama.
O filme é rodado com simplicidade e, no entanto, alcança níveis muito altos de credibilidade, essencial para a guerra entre personagens encerrada nos diálogos, e que no final leva Thomas More ao cadafalso.
A Igreja Católica posteriormente confere a Thomas More o título de santo, que de fato o foi, mas o filme se encerra com a sua execução. More se tornaria um santo mártir, na defesa de uma causa justa contra um rei tirano. São suas palavras, ao final do julgamento, que evocam o sentimento de justiça e da defesa da lei, escamoteadas contra ele, escolhido como bode expiatório das alucinações paranoides de um rei que nunca viu limites na sua autoridade.
E não é por saudosismo que se recorda tudo isso. O cinema de hoje excede em tecnologia de imagem, mas esbanja mediocridade. A excelência tecnológica acaba redundante e banal. A força do grande ator não morre nunca! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.