Desbravadores da gravação de áudio digital

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desbravadores da gravação de áudio digital

Tom JungO áudio nunca foi consenso, desde que eu me entendo por gente, e até hoje eu leio pessoas debatendo o mesmo ponto de vista como se nunca o tivessem feito antes. Mas, quando se chega a um ponto de inevitável velhice na vida, é inevitável também que discussões como essas tenham perdido completamente o sentido!

Não que a velhice seja motivo para desistir da vida, mas sim porque é possível notar que as pessoas envolvidas neste tipo de discussão parecem estar completamente afastadas da realidade.

Eu afirmo isso com total convicção: os últimos avanços na eletrônica de decodificadores demonstram inequivocamente que a gravação digital apresentada nos CDs, que foi alvo de tamanhas detratações durante boa parte da década de 1980 a ainda o é por fãs obstinados do áudio analógico, é de qualidade e fidelidade inquestionáveis.

Tom Jung

E aproveito para citar Tom Jung, que foi um daqueles brilhantes engenheiros de gravação, que deu um salto quântico do analógico para o digital, da noite para o dia, e sem ter convicção da qualidade do áudio PCM.

Jung já comentou em entrevista que detectou problemas no PCM desde o início, mas que resolveu aceitar o desafio de gravar digitalmente, por causa de problemas incontornáveis da mídia analógica, por exemplo, as oscilações de cadência tipo wow e flutter, tornando o som de certos instrumentos, como o piano, totalmente distorcido.

Justiça seja feita, gravadores analógicos mais modernos, como aquelas máquinas de 16 canais Studer, usadas lá pelo início dos anos de 1970, tornaram esses tipos de problema praticamente irreconhecíveis.

Mas, o ambiente analógico nunca deixou de limitar uma série de outros aspectos técnicos, que deixaram os engenheiros de gravação sem esperança. Tentou-se de tudo, inclusive discos com corte direto, onde o som capturado era alimentado em um pré-amplificador ligado ao torno de corte do acetato. O som melhorava de fato, mas os problemas perduravam.

E foram momentos deste tipo que impulsionaram pessoas como Tom Jung a se lançarem na gravação digital sem absoluta convicção de que era a coisa certa a se fazer. Tom Jung fundou um selo chamado DMP (Digital Music Products), bem antes de o Compact Disc aparecer em cena. Tentou mais de um formato digital, mas acabou no CD mesmo.

Perfeccionista, Jung se encantou com o gravador Mitsubishi X-80, que trabalha com fita magnética convencional, em uma velocidade nominal de 15 i.p.s. (polegadas por segundo), taxa de amostragem de 50.4 kHz, 16 bits, 20 a 20 kHz de resposta linear de frequência, em dois canais. Usou métodos da chamada “gravação ao vivo” (sem edição do conteúdo), mixou em tempo real e gravou direto nesses dois canais oferecidos pelo Mitsubishi.

Quando o CD saiu, Tom Jung se deparou com um problema: converter 50.4 para 44.1 kHz, e o fez com o máximo de cuidado, porém depois declarando estar longe do ideal. O que é curioso, diga-se de passagem, porque até hoje eu noto nos CDs DMP uma qualidade difícil de ser superada, frente a outras gravações da mesma época.

Jung se deixou fascinar pelo DSD mais recentemente, e jurou ter visto todos os problemas do PCM resolvidos de uma só tacada, e para isso se esforçou para lançar o primeiro disco SACD multicanal no mundo.

Pelo selo DMP lançou em SACD um dos seus discos de melhor reputação “Salamander Pie”, com o baixista Jay Leonhart e o pianista Mike Renzi, com o intuito de provar que o som do DSD era melhor do que aquele ouvido no CD.

Eu peço licença para discordar do ilustre engenheiro: por uma dessas coincidências, eu passei anos usando este CD como forma de calibrar a reprodução de graves dos meus equipamentos sem recorrer a nenhum medidor.

Fiz depois um esforço hercúleo para conseguir uma cópia da versão em SACD, mas honestamente não percebi qualquer diferença significativa entre as duas versões. Talvez, naquela altura da minha vida, eu já estivesse ficando surdo ou desaprendido de ouvir.

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Raciocínio semelhante foi a base das conversões das gravações Soundstream, com amostragem similar, feitas pela gravadora Telarc, e depois passadas para SACD.

A experiência de hoje mostra que muitas daquelas alegadas limitações não tinham absolutamente nada a ver com o CD, mas sim com a maneira como a maioria deste material era convertido no momento de montar a matriz que serviria de base para a prensagem.

A evolução drástica dos atuais decodificadores, inclusive com a possibilidade de passar sinal digital direto até a ponta da transmissão, tornou essas comparações, na minha opinião, inúteis.

As premissas do CD

Quando a Philips apresentou o Compact Disc ao público inúmeros testes já haviam sido feitos na Europa, partindo da premissa de que a gravação digital de música clássica se beneficia imensamente da ausência de ruído na mídia gravada.

Nos melhores anos do som analógico, a fita magnética foi alvo de inúmeras tentativas de contornar este problema, e eu citaria sistemas como dbx, Dolby A e CX, por exemplo, nenhum deles isento de problemas.

A gravação digital PCM eliminou tudo isso de uma tacada só: wow e flutter impossíveis de medir (o som do piano agora não se movia mais), relação sinal/ruído acima de 90 dB, resposta de frequência de DC (0 Hz ou corrente contínua) até mais de 20 kHz absolutamente lineares, e se não bastasse zero de ruído de fundo.

Se o PCM tivesse defeito como Tom Jung afirmara é de se estranhar que seus colegas de profissão (Mark Waldrep, por exemplo) tenham verbalizado tanto contra o DSD.

Nós aqui que estamos de fora e só queremos ouvir música bem gravada é que não nos envolvemos no mérito desta controvérsia. Se PCM ou DSD ambos têm problemas, naquilo que se ouve em casa os “defeitos” estão muito mais no material gravado e na forma como eles são gravados no que nos formatos propriamente ditos!

Música clássica sem ruído

A história do CD nos mostra que tanto Philips quanto Sony, cada uma em seu tempo, rapidamente passaram para a nova mídia gravações de música clássica, atendendo assim um público que queria ouvir música com dinâmica alta e desprovida de ruído de fundo.

Amantes do elepê, até onde os conheço, nunca se abalaram com o nível de ruído da massa, distorção pelo decréscimo de velocidade linear da agulha, desvio de geometria do conjunto braço-cápsula, etc.

O CD foi propositalmente desenhado como um produto feito para aquelas outras pessoas que queriam ouvir música sem a presença de estalidos (ruído de impulso) ou da massa usada na prensagem.

Quando o CD foi oficialmente lançado na América em 1983 pela Sony, um ano depois do lançamento pela Philips na Europa, gravadoras como Telarc, DMP, CBS, Chesky e várias outras deslancharam o seu estoque gravado no novo formato.

Na Europa, onde o avanço digital foi muito mais bem estabelecido e amparado, o número de selos com idêntico lançamento foi muito superior, e eu me refiro aos selos fora do grupo Polygram, como, por exemplo, Bis, Hungaroton, Erato, Harmonia Mundi e tantos outros cujos nomes já se perderam na minha memória.

Quanto ao “limitado, mid-fi e de som impreciso” CD, na década de 1990 a Meridian entregou a vários estúdios o conversor analógico-digital modelo 607, que faz parte de um sistema com gravação direta em CD-R. Na época, foi lançado um disco com amostras vindas de vários estúdios, cedido pela revista inglesa Hi-Fi News And Record Review, que mostra resultados irreprocháveis:

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Evidente que nada disso sobreviveu ao tempo. A partir dos anos 90 os métodos de gravação mudaram drasticamente. Durante boa parte da metade final desta década, computadores tipo estação de trabalho passaram a ser usados, não só para gravação (ProTools) como para processamento de redução de ruído, como NoNoise, Cedar, etc.

Eu mesmo tive a chance, nesta época, de usar um aplicativo chamado Cool Edit Pro, por cortesia de um amigo de estúdio, e deu para perceber como programas deste tipo se beneficiam do que o computador faz de melhor: cálculo de dados.

Uma vez no ambiente digital, arquivos de música trabalham com números derivados dos processos de quantização, entre outros parâmetros. Cada onda pode ser analisada, revista ou consertada digitalmente, sem introdução de erros de fasamento.

A aplicação de um filtro não destrutivo é conseguida pela amostragem do sinal que contém o ruído. Nos computadores de hoje o processo é muito rápido, nos daquela época durava alguns minutos, mas o resultado restaurava a música de forma exemplar.

Uma vez restabelecido os valores corretos da relação sinal-ruído, a música emerge naturalmente e com grande pureza. Em ambiente analógico, este mesmo tipo de operação é virtualmente impossível.

Desbravadores

Todo formato desconhecido exige desbravadores e enfrentará obstáculos na sua evolução. Na ciência, passam-se às vezes dezenas de anos até que uma nova proposta seja aceita pela comunidade acadêmica.

No áudio, nem dezenas de anos mostraram unanimidade na aceitação de paradigmas de gravação e reprodução, e a conclusão que se chega é que aqueles engenheiros que gostam do DSD não aceitarão PCM e vice versa. Cada um deles achará defeitos no formato do concorrente.

Mas, no ambiente digital a história mostra que, através dos anos, muito do que apareceu mostrou mais virtudes do que defeitos. Formatos digitais de compressão elevada ganharam aceitação no mercado de massa, e só isso já basta para afirmar que o som digital foi e ainda é um avanço.

Mais do que isso, ofereceu opções de qualidade que possibilitaram atender a todos que gostam mais de música do que de áudio, e sem deixar os audiófilos na esperança de algo melhor.

DSD ou PCM, todos dois soam muito bem. Seus desbravadores precisaram passar pelas naturais dificuldades que afligem qualquer coisa nova, para chegar ao ponto de um som mais próximo da perfeição. Som perfeito ou “som absoluto” é uma fantasia criada pela imprensa especializada, na expectativa de convencer leitores a nunca desistir da esperança de ter uma sala de concerto em casa! [Webinsider]

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Avatar de Paulo Roberto Elias

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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