Eu sou um daqueles privilegiados que ganharam a amizade do advogado Ivo Raposo Jr, com quem me encontro ocasionalmente para conversar sobre assuntos que nos dizem respeito, entre eles os aspectos técnicos do cinema, onde se incluem cabines e projetores.
A trajetória de vida do Ivo na área de cinema se confunde com aquela exibida no filme Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore, e lançado em 1990 nestas paragens.
No filme, o menino Salvatore di Vita, o “Totò”, fascinado pela cabine do cinema local, se instrui como operador improvisado, depois de um acidente que inabilita o operador do cinema propriamente dito. O filme mostra também a censura católica exercida pelo pároco local, mandando cortar cenas inapropriadas para exibição.
Tudo isso o Ivo viveu dentro do Cinema Santo Afonso, de propriedade dos padres da Igreja do mesmo nome, no Rio de Janeiro. Um resumo desses acontecimentos foi postado no projeto “Planetary Projection”, feito pela editora canadense Caboose, com a participação de pessoas que tiveram contato temporário ou permanente com o trabalho de projecionista.
No caso específico do Ivo, que trabalhou no Santo Afonso e depois no então recém-inaugurado Bruni Saens Peña, em 1964 ele terminou seu trabalho como operador para estudar advocacia e tocar a vida adiante.
Mas, apesar de afastado da profissão que esposara na infância e adolescência, o amor pelo cinema e o antigo fascínio pela película e principalmente pelos projetores nunca morreram. Eles se integram de tal forma que se tornam indissociáveis da própria pessoa. E tanto isso é verdade, que quando eu lembro de falar com o Ivo a primeira coisa que eu associo a ele é este contínuo e frutífero amor pelos projetores, com os quais eu me identifico.
Anos atrás, eu ambicionava ter a chance de montar um mínimo que fosse da memória do cinema na nossa cidade. Para quem não sabe, na cidade do Rio de Janeiro aconteceram as principais iniciativas nos campos da produção, distribuição e exibição de filmes, e na Tijuca em particular a concentração de salas de cinema era uma das maiores distribuições de cinemas de rua por bairro. Tanto assim que ela ficou conhecida como “Cinelândia Tijucana”.
Por coincidência o Ivo e eu crescemos na Tijuca, onde a ida em direção à Praça Saens Peña para ir ao cinema era obrigatória. De todos os cinemas da Praça somente a cabine do Cinema Olinda, demolido em 1972, nunca foi por ele visitada, todas as outras ele conhecia os aparelhos e os operadores.
Resgatando projetores
Foi graças a este conhecimento que o Ivo conseguiu resgatar projetores de diversas fontes, inclusive os dos antigos Metros, que de outra maneira, iriam ser jogados fora.
Foram anos seguidos de persistência e muita luta para remontar a réplica que é rotineiramente visitada por turistas que se dirigem à Conservatória nos fins de semana, para os quais o Ivo faz uma preleção sobre o Metro-Tijuca e exibe alguns clipes dos sucessos da época.
Durante a minha peregrinação nas bibliotecas à cata de fotos e memória sobre os cinemas da Praça, eu jamais consegui arrumar material suficiente para sensibilizar alguma entidade ligada à cultura deste assunto, de maneira a ser construído um pequeno museu que fosse, ou uma pequena ala de projetores, com explicações em posters a respeito de cada um dos formatos de película.
Anos atrás, conversei pelo telefone com uma moça que estava encarregada da área de cinema da nova sede do Museu da Imagem e do Som, mas sem conseguir absolutamente nada. E foi neste ponto que eu decidi jogar a toalha.
A réplica do Café Palheta
Ao lado do Cinema Carioca, que ainda está de pé, ocupado por uma igreja evangélica impedida de mexer na sua estrutura interna e externa, por conta do tombamento, existia o Café Palheta, ponto de encontro de muita gente e programa obrigatório de quem ia ao cinema ou passava pela Praça. O Palheta, construído ao estilo dos bares norte-americanos, estava em perfeita consonância com o ambiente da Praça.
No Palheta faziam-se os melhores Sundaes que eu já provei até hoje, com um creme de Chantilly preparado na casa, de inigualável sabor. A casa servia o café da marca bem na entrada, em um balcão na esquerda, que quase não se vê na foto acima. Lá para dentro, a comida era servida em um balcão extenso, que ia ao fundo e voltava. O Palheta ficava aberto até tarde, com um baita movimento. Hoje o local se tornou uma drogaria, mas o café continua sendo servido na entrada.
A réplica foi construída em prol da memória da Praça e fica bem ao lado da réplica do Metro-Tijuca:
Indo por lá neste fim de semana, eu aproveitei para capturar algumas imagens, que mostro a seguir, a primeira delas com o criador da réplica:
E qual não foi a minha surpresa em ver que o Ivo aproveitou o espaço para montar também um pequeno museu de projetores, bastante semelhante ao que eu havia idealizado para o Museu da Imagem e do Som:
Nesta primeira imagem é possível ver os dois projetores Prevost italianos, para 70 e 35 mm, (pela lanterna azul fica fácil identifica-los), instalados originalmente no Cine Tijuca-Palace. Em um deles, um rolo com película 70 mm foi colocado em cima, para que o visitante tenha noção do carretel carregado com filme. No outro projetor, o carretel com película está em baixo.
Na ala seguinte, outros projetores de outras marcas completam a amostra:
No lado oposto aos projetores, um pequeno balcão, em memória simbólica ao do Palheta, permite servir café aos turistas visitantes:
A mostra é fantástica, porque foram colocados em exibição nas prateleiras de cima projetores de outras bitolas, entre eles um par de RCA 400, que eu operei por vários anos ainda menino, propriedade de uma família que gostava de cinema em casa, mas que não tinha com quem contar para projetar os filmes alugados. Desnecessário dizer que ia lá com todo o prazer.
Esses RCA 400 tinham um som muito limpo, quase um milagre para a época. Mecânica similar foi usada nos telecines das emissoras equipadas com material RCA no Rio de Janeiro e em outras praças.
Na exposição todas as bitolas foram contempladas, de 8 até 70 mm, e isso dá a quem visita uma visão ampla do uso de película para a exibição de filmes. Cabe lembrar que a película de 16 mm foi usada extensamente em cinemas comerciais. Aqui na Tijuca existia o Cine Santa Rita, com projetores de 16 mm, localizado no Largo da Segunda-Feira, ponto central do bairro.
Todo este esforço para exibir os projetores tem o mérito da preservação que é necessária para o resgate da memória, resgate este que dá a chance a qualquer pessoa de conhecer a história de algum assunto, e se educar complementarmente, que é, aliás, o objetivo da criação de museus no mundo todo.
Quisera eu que a memória do cinema nesta cidade fosse um dia contemplado por alguém da administração pública, que se preocupe menos com a política e mais com a cultura propriamente dita. Infelizmente, eu sou um que não vou nem esperar sentado. À medida que o tempo passa, parece cada vez mais distante alimentar em espírito este tipo de expectativa.
Sorte nossa termos o Ivo fazendo sozinho o trabalho que os demais não fazem, e pelo menos ao alcance de quem visita Conservatória. Quem for por lá verá, acreditem! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
7 respostas
Tenho uma lente de um projeto antigo dos anos 40 ou 50 não tenho certeza
Olá Paulo boa noite.
Fiquei deslumbrado com a mostra dos projetores, em especial sobre o Italiano Prevost, que acredito ser um dos mais modernos (se estiver errado me corrija), da geração das bitolas analógicas de 70 e 35 mm. Mais fica o destaque sobre a belíssima matéria, em relação a iniciativa da recriação do Café Palheta. Já a referência ao Cinema Carioca, lamentavelmente a maioria das dezenas de salas ainda em condições de uso, tiveram em sua maioria a mesma destinação. Afinal os templos evangélicos encontraram nos velhas salas de cinema, uma estrutura perfeita e já pronta para suas atividades ecuménicas. Mas nesse país o empresariado visa o lucro fácil, e com o boom de expansão dessa igrejas, os donos das salas, preferiram deixar a atividade de Cinema (que tinham baixo retorno financeiro, e alto custo com impostos, funcionários e todas as despesas de manutenção com poltronas e equipamentos), preferindo vender o imóvel ou alugá-lo. Fazer o que… Nosso triste pais de origem tupiniquim, nunca deu importância para a cultura em geral, mas pelo menos nos resta aplaudir a iniciativa do empresário Ivo, na reabertura do Café Palheta e a criação do espaço destinado ao mini museu dos mais importantes projetores. Um forte abraço Paulo.
Oi, Rogerio,
Eu cheguei a ver aquelas máquinas Prevost em funcionamento, com película 35 mm. São projetores portentosos, feitos para salas de projeção dotadas de auditórios com grande espaço. O Ivo é um herói de carteirinha, ao impedir o descarte puro e simples desses equipamentos, com os quais ele não lucra financeiramente nada, fica tudo para exibição oferecida aos visitantes do Centímetro.
Se eu fosse muito rico, botava os evangélicos para fora do Carioca, resgatava o cinema a fundo perdido. Garanto que muito morador da área iria adorar!
Abraço,
Paulo Roberto
Para os interessados em detalhes sobre o Centímetro:
https://youtu.be/hm2ntDg-S3w
IVINHO
Parabéns pelo reconhecimento deste maravilhoso trabalho. Só nos sabemos de sua luta para conseguir todo este acervo.
Amigo Paulo Roberto
Só tenho a lhe agradecer pela publicação e seu conteúdo. Como sempre, cada vez mais voce valoriza o webinsinder que muito nos acrescenta (leitores assíduos) culturalmente. Particularmente, sinto me agraciado com mais um registro daquilo que ,com as dificuldades inerentes a todo sonhador, neste país, consegui realizar. A preservação dessa memória, com certeza, alcançará gerações vindouras que, certamente, virão sem o nosso privilégio. Forte abraço , reiterando meus agradecimentos.
Ivo, o teu esforço não pode passar em branco, e eu não faço mais do que a minha obrigação em te dar o crédito pela coragem de tê-lo feito.
Abraço do
Paulo Roberto.