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A voz atrás do rosto

Por volta dos meus 15 anos de idade eu fui assistir Amor Sublime Amor (West Side Story) em um cinema próximo da minha casa.

Localizado na Rua Haddock Lobo, o Cinema Madrid era um portentoso auditório, equipado com três projetores Simplex XL novinhos em folha, segundo me contou um dia o Ivo Raposo. De fato, a projeção e o som estereofônico do cinema eram de primeira linha.

O filme, proibido para menores de 16 anos de idade, se tornara o musical dramático do momento, apesar do declínio daquele formato. Eu paguei “inteira”, para não ter que mostrar a carteira de estudante, caso contrário o porteiro não me deixaria entrar.

Ao ouvir Natalie Wood cantando naquelas cenas, a surpresa de quem assistia era a qualidade da voz. Eu nunca teria imaginado que a atriz seria capaz de cantar tão bem e com aquele timbre todo.

Décadas depois, notem bem, fiquei sabendo que Natalie Wood nunca cantou naquele filme. O estúdio (United Artists) seguiu uma regra oculta antiga em Hollywood, de pré-julgar o resultado na tela, e tentar ajustar a voz ao rosto. Se não desse, achar alguém para fazer isso, e neste caso foi a soprano Marni Nixon quem dublou Natalie Wood.

Marni começara a vida como atriz, mas se tornou depois atraente aos produtores pela belíssima voz, que foi emprestada (dublada) a atores que precisavam dela para papéis que envolviam algum tipo de interpretação musical. Antes de West Side Story, Marni Nixon já havia colaborado com a Fox na produção O Rei e Eu (The King and I), de 1956, dublando Deborah Kerr. Ela iria repetir a façanha no ano seguinte em Tarde Demais Para Esquecer (An Affair To Remember) dublando a mesma atriz.

O interessante em Amor Sublime Amor foi que vários dos atores que participaram do filme receberam igual tratamento: Richard Beymer (Tony) foi dublado por Jimmy Bryant, Rita Moreno (Anita) ganhou a voz de Betty Wand, cantora esta que já havia dublado Leslie Caron em Gigi, de 1958.

O ator Tucker Smith, que fez o papel de Ice, dublou o companheiro de cena Russ Tamblyn (Riff) em The Jet Song, logo no início do filme. E ele próprio faz o vocal do personagem Ice na sequência de “Cool”, lá pelo final do filme.

West Side Story foi filmado em Super Panavision 70, mas distribuído fora da América em CinemaScope com 4 canais de som estereofônico, que foi como eu o vi naquela época. Mais tarde, os cenários propositalmente inundados de cores nas paredes e vidraças serviram de inspiração a Jacques Demy para fazer o mesmo em Os Guarda Chuvas do Amor (Les Parapluies de Cherbourg).

Bob Fosse também se “inspirou” na dança do telhado com os Sharks cantando America, e fez exatamente o mesmo com Shirley MacLaine e as duas amigas em Sweet Charity. O próprio Robert Wise iria repetir enquadramentos, iluminação e travellings de câmera em A Noviça Rebelde, que dirigiu sozinho. Neste filme, a propósito, também foram dublados a Madre Superiora (Peggy Wood, que havia cantado seus papéis no teatro quando jovem) por Margery McKay, e o Capitão Von Trapp (Christopher Plummer) por Bill Lee.

Ainda sobre o som de West Side Story, por acaso o Cinema Madrid tinha sido construído com aparelhagem que fazia justiça à trilha sonora original do filme, trilha esta, diga-se de passagem, cuja mixagem nunca foi repetida em qualquer das suas versões em home vídeo, inclusive na sua versão em Blu-Ray. Na versão original para o cinema, tanto na cópia em 70 mm quanto na de 35 mm, o surround é usado no assobio do início da trilha sonora e principalmente quando o coral ecoando o nome “Maria” começa a cantar na cena com a música do mesmo nome. Nas versões de vídeo o som é somente frontal o tempo todo.

Marni Nixon ainda iria ficar conhecida como a voz que dublou Eliza Doolittle em My Fair Lady, protagonizada por Audrey Hepburn, que os historiadores dizem ter ficado chateada com a decisão do estúdio, de ter a sua voz retirada de cena.

E aconteceu que tinha sido Julie Andrews quem fez o papel de Eliza, tanto em Londres quanto na Broadway, mas quando o filme foi feito o produtor Jack Warner, poderoso chefão da Warner Brothers, deu preferência a Audrey Hepburn. Quando Marni Nixon apareceu no set de A Noviça Rebelde, fazendo o papel de uma das freiras (na captura abaixo, a segunda da esquerda para a direita) a produção imaginou haver constrangimento entre ela e Julie Andrews, o que foi recentemente desmentido por esta última.

Marni Nixon no set de A Noviça Rebelde

Marni Nixon foi também alvo da atenção de audiófilos, na sua fase de gravação na Reference Recordings, etiqueta destinada a discos de referência. A sua discografia ainda se encontra disponível, para quem tiver interesse.

Marni Nixon

A prática de dublagens de atores com grande presença notória nas telas é antiga. Ela foi propositalmente mencionada no roteiro de Cantando Na Chuva, da M-G-M, quando o dono do estúdio (Millard Mitchell) resolve estrelar Lina Lamont (Jean Hagen), com aquela voz esganiçada, em um filme falado.

Curiosamente, a mesma prática foi usada no filme: Betty Noies dublou Debbie Reynolds (Kathy Seldon), nas cenas com música, e ironicamente a voz natural de Jean Hagen é ouvida quando Kathy Seldon faz a dublagem dos diálogos de Lina Lamont.

É de se entender que trilhas musicais “operísticas” tenham compelido os antigos produtores de cinema a preterir a voz dos atores, por causa da necessidade de extensão vocal mais demandante neste tipo de música.

A mudança não é exclusiva do solo americano. Jacques Demy, por exemplo, dublou os seus atores na ópera cantada “Os Guarda-Chuvas Do Amor” (“Les Parapluies De Cherbourg”), mencionada acima.

Tecnicamente o processo é facilitado pela gravação antecipada da trilha musical (tal como mostrado em Cantando Na Chuva) e o ator responsável pela cena faz a necessária mímica diante da câmera. O mesmo processo é usado quando é o próprio ator quem canta as suas partes musicais.

Na linguagem de estúdio a fita pré-gravada com a trilha sonora é tradicionalmente chamada, aqui e lá, pelo jargão de “playback”. A mímica, se bem feita, facilita a pós-produção, na hora de editar o filme. Algumas vezes se nota a ausência de sincronismo labial nas cenas cantadas, mas no geral, na tela grande do cinema o erro passa despercebido. Hoje em dia, este problema é corrigido digitalmente, na mesa de mixagem.

O interesse em manter ocultas as informações sobre as dublagens conseguiu perpetuar o mito de atores e atrizes que ficaram famosos em seus papéis, mas que nunca tiveram o talento musical para fazê-lo, e nem poderiam, uma vez que não tiveram a formação e o treinamento adequados.

A intromissão do home video, junto com a introdução dos chamados “extras”, cujo objetivo inicial era o de cativar o fã de cinema, acabou por revelar os segredos que a indústria guardou por anos a fio.

É possível, até hoje, saber de detalhes contados pelos atores e por membros das produções, que contem assuntos de interesse do fã e do estudioso. Se por um lado pode ter ares de pura fofoca, por outro ajuda a dar crédito a quem merece!

Não só Marni Nixon, como todos os outros cantores profissionais que se prestaram a dublar atores sem ter crédito por isso, todos eles puderam finalmente ter os seus nomes ligados ao trabalho que fizeram.

O cinema passou décadas se omitindo de dar crédito a muita gente. De tempos para cá a quantidade de créditos ao final de cada filme nos parece um exagero, mas pelo menos não se omite o nome de ninguém. Se é justo ou não exibir esta montoeira de créditos, cabe a quem lê julgar. Dentro das salas de cinemas, são raros aqueles que permanecem sentados quando os créditos do fim do filme rolam na tela, e se depender das emissoras de TV ninguém vai conseguir ler crédito nenhum! [Webinsider]

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Série Feud mostra disputa entre atrizes na antiga Hollywood

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Avatar de Paulo Roberto Elias

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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