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O documentário Wild Wild Country mostra a criação de uma comunidade em torno do líder espiritual Bhagwan Rajneesh que pretende ser livre até bater de frente com a resistência dos locais que se sentiram invadidos.

 

Eu assisti pacientemente os episódios do longo documentário “Wild Wild Country” (sem título em português), que abrange a criação de uma comunidade religiosa no interior do Oregon, Estados Unidos, e as implicações e problemas que cercaram a longa estadia de seus habitantes.

Uma cidade foi construída, a mando de um tal Rajneesh Chandra Mohan Jain, conhecido como Bhagwan pelos seguidores. O homem, autointitulado “Guru”, uma espécie de homem místico, vem da Índia e começa um movimento onde ele professa a sua crença de liberdade, nos moldes emprestados de uma série de religiões.

O problema central e mais sério desta criação foi o fato que ele e seus seguidores resolveram comprar uma área de terreno estéril, próxima de uma cidade no interior do Oregon, cidade esta com pequena, mas conservadora população de pessoas que se sentiram ameaçadas.

O documentário começa justamente mostrando o ponto de vista dos habitantes da cidade de Antelope, e dá sequência a eventos que tornaram a vida desta aparentemente pacata cidade em um verdadeiro inferno.

A seita

Bhagwan não pregava somente a liberdade, mas também e principalmente o chamado amor livre, e por causa disso acabou sendo rotulado pelos seus inimigos de “Guru do Sexo”. Cenas do documentário atestam o cenário de promiscuidade e loucura delirante dos participantes em crise histérica realizada com corpos nus, à procura de algum tipo de realização ou felicidade.

O conceito de “amor livre” vem de muito antes, foi parte integrante da contra cultura dos anos de 1960, e que dá a noção de que os participantes se desatrelaram de valores da sociedade convencional, como o casamento, controle da natalidade, etc. Segundo os ditames do amor livre o sexo é livre porque se parte do princípio (correto, aliás) de que ninguém é dono de ninguém.

Os conflitos

O problema é que não é concebível que uma comunidade que não respeita valores se instale próxima de outra que faz desses valores preceitos de vida, e tenha influência sobre esta última. A seita comprou terrenos próximos da cidade de Antelope, e a seguir criaram uma cidade completa, com o nome da comunidade chamada de Rajneeshpuram. Nela, existia toda uma infraestrutura de uma cidade convencional, incluindo uma força policial fortemente armada.

wild wild country documentárioOs habitantes de Antelope se sentiram ainda mais incomodados quando os responsáveis pela comunidade começaram a comprar propriedades dentro de sua cidade, conseguindo maioria no conselho local, mudando nomes de ruas, e tentando transforma-la em um novo tentáculo da seita. A invasão foi imediatamente ressentida, bem como a reação contra a seita.

O documentário mostra horas seguidas de entrevistas de ambos os lados. E mostra como a situação se agravou quando a comunidade começou a se expandir, tentando interferir nas deliberações do conselho do condado de Wasco, onde a cidade fictícia fora criada.

A partir daí uma série de crimes foram cometidos, mas só descobertos anos depois, o que dificultou a ação das autoridades do Oregon, que queriam acabar com a farra. O documentário mostra com provas o jogo sujo capitaneado pela secretária do Bhagwan, uma mulher sinistra chamada Ma Anand Sheela, que administrou o “ashram” de 1981 até 1985.

O ataque bioquímico instruído por ela, com o spray de salmonela em saladas dos restaurantes locais, visou intimidar eleitores de votarem contra a seita. Mais tarde, ela seria presa e condenada por outros crimes, como a tentativa de assassinato do procurador Charles Turner. E ainda comandou a tentativa de assassinato do médico que cuidava do Bhagwan, receosa que ele seria induzido à morte programada.

As prisões

Uma série de incidentes levaram as autoridades americanas a prender Bhagwan e Sheela, em diferentes circunstâncias. Sheela havia fugido da cidade por ela criada e acusada pelo Bhagwan de traidora. Com ela saíram seguidores que se refugiaram na Alemanha.

Bhagwan fugiu de Rajneeshpuram de avião com uma comitiva em outra aeronave, mas o FBI foi avisado por um informante, cercou os dois aviões em um pouso de reabastecimento, e levou todo mundo para a prisão.

Havia contra eles um monte de acusações, a mais grave de fraude premeditada contra o serviço de imigração americano. Bhagwan decidiu se declarar culpado, em um acordo com os procuradores para deixar o país, o que de fato fez. Com a sua saída a comunidade foi aos poucos se esvaziando, mas deixando seguidores espalhados pelos quatro cantos do planeta.

Sheela foi presa pela polícia alemã e processada. Passou anos na cadeia, mas vive hoje na Suíça, onde cuida de incapacitados.

O documentário

A ideia de uma sociedade livre e potencialmente utópica se desmontou no decorrer do filme, onde conspirações eram planejadas por Sheela, não se sabe se a mando do Bhagwan, com quem ela tinha contato exclusivo.

No entanto, uma série de contradições são claramente expostas, como a ideia de liberdade associada à aquisição de armamento pesado, para “proteger” a comunidade.

 

Bhagwan e Sheela

 

E as cenas que mostram seguidores freneticamente engajados em prática erótica certamente foram inseridas no roteiro para evidenciar o grau de loucura disseminado no que deveria ser um local de meditação, um “ashram”.

As entrevistas são bem arquitetadas e isentas de tendenciosidades, porém cansativas.

Para mim como espectador, a única decepção foi quando no último episódio (seis no total) fica no ar uma clara apologia das ideias do Bhagwan e porque não dizer da famigerada Sheela. Aí, no meu entendimento, os cineastas pisaram feio na bola. Mas, não significa que não vale a pena assistir.

A vida em comunidade, muito presente entre os hippies que também desejavam viver em uma atmosfera de “paz e amor”, é exposta com detalhes. Muito dos vídeos exibidos foram aqueles feitos pelos participantes da seita. Os cineastas tomaram a precaução de realizar o documentário em formato widescreen “scope”, contrastando com os vídeos da época, todos eles em 4:3. Com isso, se sabe o que foi real e o que foi gravado depois.

Em última análise, o mérito do documentário é tornar evidente que não é possível criar uma comunidade alternativa com a eliminação sumária de outra vivendo ao lado, que se opõe a ela. O título, por sinal, se refere exatamente a este tipo de selvageria, fazendo jus aos acontecimentos de 1984 a 1985 da linha de tempo dos eventos.

Na minha percepção, o documentário mostra como as pessoas se guiam cegamente por um credo místico, acreditando estar conquistando uma paz dentro de uma sociedade injusta. Esta cegueira abole o que o ser humano tem de mais nobre: a capacidade de pensar! E não deixa de ser um equívoco achar que se pode viver em sociedade, sem um respeito às leis e ao próximo, mesmo que tudo isso seja, ou possa parecer, injusto.

No final, Bhagwan rompe o silêncio e diz a todos que as religiões restringem a liberdade das pessoas, se esquecendo que ele próprio disseminou regras de conduta que transformaram aquela comunidade em um grupo de fanáticos seguidores!

Sheela, por seu turno, também falava em liberdade, mas não hesitou em tentar calar as vozes que se opunham aos seus planos com o uso de inacreditável violência, e é justamente aí que se flagram pessoas que discursam uma coisa e fazem o oposto, uma contradição que nos compele na prática a nos afastarmos delas.

 

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Avatar de Paulo Roberto Elias

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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