William Peter Blatty nos deixou no ano passado, aos 89 anos. O seu trabalho como escritor e roteirista ficou perenizado no filme O Exorcista, dividindo créditos com o diretor William Friedkin.
Parece incrível, mas é muito comum a gente não saber do desaparecimento de alguém cuja filmografia nos encantou no passado, e foi este infelizmente o caso do roteirista William Peter Blatty, que faleceu o ano passado.
Eu só fiquei sabendo desta triste notícia por culpa do cineasta William Friedkin, que no ano passado rodou o documentário “The Devil And Father Amorth”, apresentado agora, e no qual homenageou Blatty dedicando a ele este filme.
Aconteceu que William Blatty ficou conhecido como o autor literário do filme “O Exorcista”, rodado em 1972 e apresentado com grande estardalhaço em 1973/1974.
Este filme, aliás, ainda causa pavor em muita gente que eu conheço, pessoas que se recusariam a vê-lo se por acaso eu os convidasse para ver a cópia do diretor aqui em casa.
Na década de 1970, o impacto da apresentação nos cinemas foi de fato muito grande, bem como a polêmica em torno da existência de pessoas possuídas por demônios. O próprio filme, com roteiro brilhante neste aspecto, debate se a possessão é problema psiquiátrico ou não.
Pois William Friedkin volta ao assunto cerca de 45 anos depois, talvez na esperança de que gerações mais recentes possam se interessar em assistir o seu filme de 1972.
E sobre muitos aspectos ele está certo, porque O Exorcista foi seguramente um dos melhores, senão o melhor filme do gênero, e mantém até hoje o impacto nas telas, mesmo naquelas que não têm o mesmo porte das salas de exibição.
O documentário sobre o Padre Amorth foi quase todo feito com uma câmera Sony dessas que as pessoas levam por aí para fazer fotos.
Muitas câmeras desse tipo têm excelente imagem, boas o suficiente para construir um pequeno filme como este.
https://youtu.be/18f_1YbE0-E
E a julgar pelas opiniões escritas no IMDb, o assunto continua despertando as mesmas controvérsias daquela época, guardadas as devidas proporções. E nem poderia ser daquela magnitude, porque em O Exorcista nada foi imposto no sentido de você plateia ser obrigado a acreditar no que estava vendo.
No filme atual, há logo de cara uma declaração que se trata de um exorcismo real. A voz distorcida da possuída é a base na qual o documentário se sustenta para propor a invasão de Satanás ele próprio no corpo da mulher possuída.
William Peter Blatty aparece brevemente neste documentário dando seu depoimento. A sua obra está, no entanto, reduzida neste caso ao roteiro de O Exorcista, e de como ele descobriu a estória nos jornais, a partir da qual o roteiro fora escrito.
Todas as outras vezes em que ouvi William Peter Blatty discutir O Exorcista eu logo percebi tratar-se de um homem de profunda intelectualidade e introspecção, e muito provavelmente de fé católica ortodoxa.
Blatty recebeu formação e forte influência dos padres jesuítas. Para quem não conhece a fé católica, basta dizer que os jesuítas formam o braço intelectual da Santa Madre Igreja, se dedicam aos estudos e ao ensino, vide a Pontifícia Universidade Católica, por exemplo.
A sua introspecção no assunto possessão demoníaca em O Exorcista (no caso não de Satanás, mas de Pazuzu) vislumbrou todos os ângulos que provavelmente ele mesmo teria se indagado. Como, por exemplo, se a possessão é de fato autêntica ou fruto de um problema médico que a medicina não conseguiu resolver.
A bem da verdade, existem muitos casos até hoje onde as ciências médicas ainda ficam por dever uma explicação, deixando casos clínicos sem solução.
Por outro lado, é fato conhecido que doenças psicossomáticas, que são expressões físicas de um problema mental, podem e geralmente são curáveis pela simples aquisição de confiança entre paciente e terapeuta. Quando esta relação é conquistada, tudo o que o terapeuta afirmar será aceito pelo paciente sem qualquer questionamento.
A obra de William Peter Blatty
Seria uma injustiça reduzir William Peter Blatty ao roteiro de O Exorcista, não importa quão brilhante ele seja.
A sua colaboração com o diretor Blake Edwards, por exemplo, mostra pequenas joias como “A Shot In The Dark” (no Brasil, “Um Tiro No Escuro”), uma comédia exemplar, ou o inocente “Darling Lili” (no Brasil, “Lili, Minha Adorável Espiã”), este apresentado em 70 mm em alguns cinemas).
Mas foi em O Exorcista que o roteirista ficou mais exposto ao público, talvez por conta da polêmica em torno do filme.
Ele próprio faz uma ponta sem créditos em uma das cenas de O Exorcista, como mostra a captura acima. Tanto o livro quanto o roteiro foram fruto de pesquisa exaustiva e com questionamentos diversos que o autor fez a si próprio, além de consultar padres Jesuítas várias vezes sobre o assunto, já que uma parte da Igreja Católica não acredita em nenhum tipo de possessão.
Na época do lançamento, eu me lembro bem da interpelação do Padre Quevedo contra possessões demoníacas, ele um Jesuíta que acredita na explicação científica, em desfavor das teses de possessão.
E ironicamente, William Peter Blatty contou com a participação de William Friedkin na direção, que como descendente de família judaica, não acreditava na existência de Satanás ou de demônios. Vale lembrar que a referência a Satanás está explícita no Novo Testamento, portanto fundamentada na fé cristã. Mas, Friedkin quis documentar o caso de possessão no qual o filme se baseia, por se tratar de um dos raros casos autorizados pela Igreja Católica estadunidense.
É digno de nota que Jason Miller, que faz o papel do Padre Karras, é também um ator de teatro intelectual e escritor premiado, e a produção inclui o icônico Max von Sydow, que participou do igualmente icônico O Sétimo Selo, dirigido por Ingmar Bergman na década de 1950, que é uma referência sobre o assunto morte, na visão da cultura medieval.
William Peter Blatty ganhou vários prêmios por causa do seu trabalho em O Exorcista, incluindo o Globo de Ouro como melhor roteiro.
As últimas versões de O Exorcista
O filme foi relançado com o corte do diretor para os cinemas anos atrás, e está disponível em DVD e Blu-Ray. Esta versão tem, a meu ver, uma significativa melhoria no que tange à mixagem de áudio, feita no formato Dolby Digital Surround EX, DTS ES (6.1 canais) e SDDS (somente nos cinemas).
Na edição em Blu-Ray a trilha foi codificada com DTS HD 6.1, e é um desses discos que se beneficia e muito do upmixing com o uso de DTS Neural:X, para quem o tem disponível.
Na sua versão original em 35 mm, o áudio contém surround em algumas cenas e no relançamento o negativo foi ampliado para 70 mm, cuja cópia eu não assisti.
A versão do diretor contém cenas fortes demais, que foram omitidas na época do lançamento, algumas a meu ver totalmente desnecessárias dentro do contexto do filme. Há um notório reforço no conceito do filme de horror, mas que nada acrescentam ao que a plateia já sabe.
O Exorcista tem até hoje dezenas de interpretações e análises, o que depõe a favor da complexidade do trabalho de William Peter Blatty. Ele nos deixou com 89 anos, e parece ter tido uma vida rica de experiências, várias das quais perpetuadas na sua obra de novelista e roteirista.
Diante da atual multiplicidade de heróis dos quadrinhos nas telas de cinema, nos reconforta saber que o legado deixado por bons roteiros ainda está aí para qualquer um que queira ver cinema de verdade poder ver, rever e analisar. Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.