Documentário Quincy mostra a vida tumultuada do grande músico, compositor e arranjador Quincy Jones, na ótica de uma de suas filhas.
Hoje em dia eu estou começando a achar chato assistir um documentário ou ler sobre dados biográficos de alguém o qual eu o tive como ídolo, e depois ficar sabendo dos podres da vida desta pessoa, que absolutamente nada tem a ver com a arte que ela praticou.
Pois bem: no documentário “Quincy”, que faz uma exposição de 2 horas sobre o grande músico, compositor e arranjador Quincy Jones, uma parte significativa das entrevistas, eventos e depoimentos acaba por trazer à baila a sensação de desconstrução do meu antigo ídolo, em parte, sinceramente, culpa do próprio homenageado, que aproveitou aquela oportunidade para lavar a alma dos seus erros e se vangloriar de coisas que ele devia ter guardado para si próprio, na minha opinião.
Nas aulas de farmacologia da faculdade a gente aprendeu que determinados fármacos que estimulam o cérebro trazem euforia, e para os músicos eles ajudam a aumentar a acuidade auditiva. Sessões de gravação tarde da noite ou de madrugada ganharam fama no passado de terem sido vividas com a ajuda deste tipo de estimulante ou de bebida alcoólica e/ou tóxicos pesados.
No meio artístico tais hábitos são hoje comumente relatados, em confissões públicas de seus protagonistas, e curiosamente no meio jazzístico o uso de drogas foi recorrente e acabou por contribuir como a causa de morte de músicos famosos, como Chet Baker ou Bud Powell, por exemplo.
Quando muito, estes músicos sobreviveram com enorme dificuldade e é constrangedor para os fãs tomar conhecimento que eles levaram uma vida autodestrutiva e com constante sofrimento.
É óbvio que se tal acontece algo de muito errado pairou sobre a vida dessas pessoas, e na situação específica norte-americana o preconceito racial é uma das principais causas deste sofrimento. Louis Armstrong uma vez disse que, quando em excursão em determinados estados do sul americano, ele muitas vezes tinha mil dólares no bolso e nenhum lugar para comer.
De uma maneira geral, é a própria sensibilidade do compositor ou intérprete que o leva para o caminho das drogas. Não é incomum neste tipo de pessoa o indivíduo se dar conta de que alguns estados emocionais, como a paixão, por exemplo, são cercados de utopias, ou então se perceber que dentro de certos ambientes o entorno é preenchido por gente vazia, ignorante ou insensível.
Entre os vários fatores ambientais negativos, a cultura dos povos pode ter papel determinante para se entrar em estado depressivo, quando então o uso de drogas passa a ser uma via escapatória perigosa.
O documentário sobre Quincy foi co-realizado por uma de suas filhas, Rashida Jones, fruto de uma de suas várias uniões, todas com mulheres brancas. É talvez por isso uma espécie de tentativa de redenção dos erros cometidos pelo pai, na sua ótica como filha e também como natural admiradora de sua obra.
O casamento ou união com mulheres de outra cor denuncia, segundo a jornalista Glória Maria, racismo, coisa de que ela própria foi vítima. A repórter estava certa, e muitos exegetas sociólogos já acusaram homens negros de “tentar purificar a raça”, na união com mulheres brancas.
Outro caso estrambótico foi o de Michael Jackson, que de menino negro passou por uma série interminável de cirurgias estéticas e tratamentos diversos, até ficar com uma aparência de um homem branco.
Sendo o racismo algo deplorável, em qualquer circunstância e sob qualquer hipótese, não seria aceitável que houvesse reciprocidade de uma raça contra a outra, como forma de retaliação. E, justiça seja feita, entre os músicos americanos propriamente ditos, o racismo foi exceção, e quando veio, foi de fora para dentro, e não de um colega de profissão para o outro. Foram os empresários contratantes que não aceitavam orquestras de jazz com músicos misturados. Tanto assim que o músico Benny Goodman, discriminado por ser judeu, cortou um dobrado para incluir o vibrafonista Lionel Hampton e o pianista Ted Wilson em sua orquestra, nas apresentações ao vivo.
Documentário Quincy perde tempo nas mazelas
É lamentável que uma parte enorme de “Quincy” se detenha nas mazelas pessoais do grande músico, mostrando aquele seu lado obsessivamente mulherengo, ou da sua vida de alcoólatra. Se fosse por mim, eu teria preferido que o discurso fosse mais breve, porque todo e qualquer fã de Jazz sabe o que os músicos americanos sofreram, e que isto, dentro do contexto geral da obra criada, passa a ser um detalhe de menor importância.
Em outras palavras, o que o fã gostaria de saber é como a capacidade criativa se uniu com outras, para, no caso, criar música de alta qualidade.
Futucar ou fuxicar esta criatividade também não é correto. Nas várias entrevistas com o icônico compositor da bossa nova Tom Jobim eu já ouvi repórter perguntando a ele como ele compôs Garota de Ipanema, e ele, de rosto cercado de dúvidas, relutando em responder e mudando de assunto.
Sistematicamente o Tom fugia das respostas, se evadindo em comentários fora do assunto questionado. John Ford, o grande cineasta, também odiava perguntas sobre a sua vida pessoal: em entrevista filmada a um grupo de cineastas franceses, que lhe perguntaram como ele havia chegado a Hollywood, ele respondeu: “ de trem”…
A obra do músico
Quincy Jones começou no Jazz como músico, depois arranjador, e se tornou compositor de trilhas sonoras, com enorme discografia, parte da qual ainda disponível para o colecionador.
É difícil, neste particular, para o fã que coleciona discos, saber em que gravadora a obra do arranjador foi mais expressiva. E como Quincy Jones mesclou Jazz com música popular, a variedade discográfica é imensa!
Entre as trilhas para filmes composta por ele, para mim uma que se destaca é a do filme “The Deadly Affair” (no Brasil, “Chamada Para Um Morto”), toda ela com base na participação da cantora Astrud Gilberto, cantando no filme, em português, o tema belíssimo “Who Needs Forever”.
Na sua fase Mercury Records, Quincy Jones já havia abordado a Bossa Nova, ainda do jeito desengonçado americano, com o excelente disco “Big Band Bossa Nova”.
Logo na primeira faixa do disco “Soul Bossa Nova” ele nos mostra a sua capacidade como compositor e arranjador inventivo, embora a música, de “Bossa Nova” não tenha nada. Soul Bossa Nova foi aproveitada no primeiro longa dirigido por Woody Allen “Take The Money And Run” (no Brasil, com o título idiota de “Um Assaltante Bem Trapalhão”).
Na sua fase jazzística, Quincy fez magníficos arranjos para gente como Count Basie, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Miles Davis e um monte de outros grandes músicos.
Para mim, uma das suas melhores gravações em orquestra foi feita para a Impulse Records, com o título “The Quintessence”, cercado de uma orquestra fantástica e arranjos de altíssimo nível.
Posteriormente, e eu digo isso com profundo pesar, Quincy começou a migrar para a música comercial, e através de uma empresa de produção por ele criada, se voltou incondicionalmente para artistas populares de grande apelo, entre eles o notório Michael Jackson, com quem gravou álbuns como “Off The Wall” e “Thriller”, ambos de grande vendagem. E não por coincidência, é Michael Jackson quem aparece em “Quincy”, com aquela vozinha de criança efeminada, dando graças ao apoio do seu patrocinador.
Ainda hoje em plena atividade e com site próprio, o grande Quincy Jones continua produzindo. Mostrou que venceu na vida, transpôs barreiras de violência quando menino e adolescente, e de uma infância pobre acabou abastado e cercado de amigos e fãs.
Na minha ótica, entretanto, eu teria preferido ver em “Quincy”, o documentário, muito mais do seu lado como compositor e colaborador de outros músicos, do que exatamente da sua vida desregrada, visão esta que nada contribui para ilustrar a sua carreira.
Se visto desta maneira, “Quincy” mais se assemelha a uma obra póstuma do que biográfica. E, infelizmente, tem momentos do filme que o cabotinismo parece não ter fim. Rashida Jones e Alan Hicks fizeram assim, eu vou fazer o quê? _Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.