Sobre o documentário “1964”, do grupo Brasil Paralelo: alguns comentários pessoais e intransferíveis vindos de alguém que viveu aquela época.
Existem certos temas de discussão que estarão sempre no limite da discórdia e da controvérsia, portanto quando se trata com eles todo cuidado é pouco!
Um amigo meu me manda uma mensagem dizendo que ele e a família estavam assistindo o documentário “1964: O Brasil Entre Armas E Livros”, dirigido por Lucas Ferrugem, membro de uma entidade de nome Brasil Paralelo. Não sabendo do que se tratava, eu resolvi que iria assistir, já que o tema atinge a todo mundo da minha faixa etária, mas sem ter noção das acusações que precederam o lançamento que havia ocorrido no Cinemark.
O documentário se tornou disponível no YouTube e não apenas para associados, qualquer um pode assistir sem pagar nada. Basicamente, são três os responsáveis pelo filme:
E que depois da controvérsia saíram em campo pela imprensa, para desmentir todas as acusações feitas anteriormente.
Depois de gastar duas horas diante de um assunto polêmico, no final achei, no mínimo, corajoso estes jovens terem se envolvido em uma empreitada deste porte, provavelmente sabendo que a história mais recente deste país passou a ser escrita pela mesma esquerda que nos levou a altos níveis de decepção no trato com a coisa pública. A necessidade de pesquisar a verdade de episódios que eles, por serem jovens, não viveram, é mais do que justificável.
É de se admirar que tenha sido um grupo de jovens cuja idade não os deixou viver “1964” a realização de um documentário que faz de tudo para colocar na tela pontos de vista que raramente são vistos ou divulgados pela mídia.
Eu aprendi, na minha fase adolescente de filmes de arte, que documentários mostram a visão de quem os realizou, e neste caso parece mais ser um trabalho de equipe do que propriamente do diretor.
“1964” começa com a exposição da guerra fria, e a seguir a explicação de como a esquerda do bloco soviético se infiltrou e aparelhou as instituições do governo e posteriormente a formação da guerrilha, que ameaçou a tomar o poder nos mesmos moldes da revolução cubana.
Com base nisso tudo, os autores rememoram a Marcha Com Deus Pela Liberdade e logo depois os acontecimentos que precederam a revolução de 1964, sem no entanto deixar claro quem exatamente havia iniciado o movimento militar que botou João Goulart para correr, de maneira a evitar ser preso. Todos esses momentos são abordados por entrevistados.
As entrevistas são interessantes, mas houve um momento em que um dos participantes declara taxativamente ter sido exagerada a acusação de tortura durante o regime militar. Pois sim! Este foi um dos principais motivos pelo qual se condenou todas as ditaduras militares latino-americanas, que deixaram um rastro de sangue pelo seu caminho. Querer apequenar este lado é, no mínimo, imprudente e porque não dizer, irresponsável!
Eu vivi 1964 na minha adolescência
Eu entendo que é muito, mas muito difícil mesmo, entender o que se passou naquele período turbulento que o país viveu, por quem não passou por ele!
No dia da revolução de abril de 64 os militares colocaram os tanques nas ruas. O meu pai me diz que eu não poderia ir para o colégio, por falta de segurança. Os meus vizinhos se reuniram na frente do rádio, ouvindo todo tipo de informação, inclusive aqueles discursos incendiários de Brizola e companhia.
O que aconteceu depois que o Jango tomou posse é o que, em última análise, justificou a revolução. A alta patente militar ouvir os clamores das ruas, que não queriam que o país se tornasse uma nação comunista, nos moldes de Cuba. A Igreja Católica apoiou a população que marchava. Nos mercados, a comida era escassa, o país estava na beira do precipício. Os grupos de esquerda queriam tomar o poder à força. Foi aí que os militares intervieram.
Ninguém poderia supor, naquele momento, que eleições diretas não iriam acontecer nos próximos 22 anos. A esquerda clandestina se tornou abertamente terrorista nos anos seguintes e então os militares reagiram. Até hoje, eu acho que a esquerda subestimou a determinação das forças militares de enfrentá-los.
Eu cheguei à faculdade justamente no pico da repressão. As prisões eram ilegais, isto é, sem autorização da justiça. Dentro das salas de aula havia suspeitas da presença de policiais infiltrados. Já na minha época de universitário não ocorriam mais as conhecidas invasões da polícia no nosso campus. Os muros do Canecão se tornaram, segundo me contaram, as rotas de fuga de quem estudava no campus apelidado de Pentágono, próximo da antiga Reitoria da UFRJ. O pessoal pulava o muro para fugir da polícia, e isso durou muito tempo.
No meu primeiro ano da faculdade eu conheci estudantes ligados ao PCB (conhecido como “Partidão”) e que militavam diariamente de forma às vezes pouco discretas. Também observei algumas peculiaridades um tanto ou quando estranhas, como por exemplo, a esquerda estudantil era dividida e um grupo se opunha ao outro. Depois eu notei que ninguém confiava em ninguém que não fosse do partido.
A polícia ia atrás dos estudantes, até hoje não entendo por que, já que estudante algum tinha ambiente para propor qualquer tipo de movimento contra a ditadura militar. Mas, depois de cessadas as invasões, as prisões eram feitas em casa ou nos locais de estágio. Quem era preso era levado para os quartéis, e convidado para o conhecido “chá com porrada”, cortesia dos torturadores autorizados pelo aparato militar. Uma covardia indesculpável, até hoje acobertada pelos covardes que depois se esconderam, e nunca corretamente exposta por aqueles que diziam recentemente revelar a verdade para todo mundo o que houve nos porões da ditadura daquela época.
Foi neste ponto que o documentário dos bravos rapazes pisou fundo na bola, ao tratar com desdém o que de mais criminoso se fez durante a ditadura. Tivesse o entrevistado vivido o terror daquela época, tenho certeza de que não ousaria afirmar que foi fato de importância menor. E ainda mais em cima de estudantes sem defesa, diante de prisões sem autorização da justiça.
O vexame do Cinemark
Quando o Cinemark exibiu “Lula, o Filho do Brasil”, ninguém foi lá para protestar. Aparentemente, “1964” não foi o primeiro documentário exibido pela rede Cinemark, mas diante dos protestos de que este filme seria uma apologia da ditadura, seus dirigentes pediram desculpas ao público. Mas, ironicamente a rede acabou por receber protestos de quem queria ver o filme e não aceitou a censura, tornando evidente a polarização política ainda vigente.
É triste perceber que o brasileiro não evoluiu para aceitar a diferença de opiniões, preferindo acusar em vez de discutir, e neste ponto é profundamente lamentável que a esquerda brasileira continue a insistir com um discurso fascista, daqueles que só engana quem é desavisado. A polarização política não ajuda o país a se democratizar de fato, e não existe nada mais enganoso do que dizer que nós estamos em uma democracia, quando na prática se nota o contrário.
Sobre o ponto de vista dos debates, cada um sabe de si. Eu assisti a obra do Brasil Paralelo, vi nela um discurso claro contra a esquerda, e acho que os realizadores se descuidaram em não apresentar o ponto de vista oposto.
De qualquer forma, o documentário contem pontos que merecem ser vistos e considerados, independente da cor política de cada um.
Quanto à mim, não tenho saudades dessa época. No ambiente universitário fiz amizades, mas todas se desfizeram, particularmente entre os que frequentaram a minha casa, seja para estudar seja para ouvir música regada a batida de limão. Um desses colegas eu o vi em jornal da televisão, falando em nome da fabricação de vacinas pelo Instituto Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos), lugar que frequentei durante anos, mas nunca o vi por lá. Um outro, igualmente filiado ou simpatizante do PCB, eu soube que ocupava um cargo de destaque no INCQS, braço da Fiocruz para o controle de qualidade em assuntos de saúde.
Em um encontro da minha antiga turma, eu fui com uma ex-colega, que, por coincidência, foi uma das estudantes presas pela repressão, diga-se de passagem, equivocadamente. Quando chegamos por lá, e notem que ambos não víamos ninguém por cerca de mais de 30 anos, eu avistei um ex-colega que me apontou como “subversivo” ao DOPS, a polícia política daquela época. Ele estava com mulher e filho, e ficou notoriamente constrangido de me ver ali. A minha ex-colega havia apagado da memória muita coisa daquela época e me perguntou o que este cara tinha feito.
Só este incidente basta para se ver o tamanho do estrago que a repressão deixou. As vítimas estudantis da ditadura que eu conheci ficaram marcadas para o resto de suas vidas, e tudo isso por causa de uma simpatia política.
A tal Comissão Nacional da Verdade bem que poderia ter contribuído para dar nome aos bois, mas o seu viés político se mostrou rapidamente e eu li acusações sobre a Igreja, totalmente distorcidas da realidade.
Achei válida a iniciativa de se fazer um documentário sobre 1964, mas muita coisa teria que ser examinada com absoluta neutralidade. A pesquisa sobre o assunto mostra claramente a insatisfação dos mais jovens com a ausência de respostas e justificativas que mereciam ser revisitadas. Outrolado_
. . .
Leia também:
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Eu não vivi o período da ditadura militar, quando nasci, já tinha acabado. Mas tenho uma opinião sobre o documentário. Como todo filme, que diz mais sobre o período que foi produzido do que o período do recorte temático, o documentário 1964, não busca por uma verdade em si, mas uma busca por uma “verdade” que justifique seu lado político. A meu ver, foi um desperdício de oportunidade. Poderiam realmente tentar esclarecer um período que infelizmente ainda tem muita coisa que ainda permanece obscura, mas preferiram fazer uma propaganda velada, que procura bater na “esquerda” e amenizar atos injustificáveis de uma ditadura (ao ponto que, até alguns fãs mais histéricos do documentário, questionar se realmente houve ditadura no Brasil, e que tudo na verdade foi uma invenção dos grupos de esquerda). O que me admira, é a quantidade de pessoas que tomaram esse documentário como se fosse à nova “bíblia sagrada” do período, sem perceber o viés politico que o filme passa. No fundo, o filme passa a mensagem errada para mim, de que “olha o regime militar não foi tão ruim assim, e tudo que fizeram foi necessário para que não houvesse uma ditadura pior da esquerda”, isso não acho válido, não se pode justificar os erros de um regime sobre o pretexto do “o que não aconteceu, mas poderia acontecer” ser pior.
Douglas, eu vou dar resposta a este comentário na coluna sobre Democracia em Vertigem, ok?
Oi, Douglas, por favor procure a minha resposta no texto sobre A Democracia em Vertigem.
Eu não vivi o período da ditadura militar, quando nasci, já tinha acabado. Mas tenho uma opinião sobre o documentário. Como todo filme, que diz mais sobre o período que foi produzido do que o período do recorte temático, o documentário 1964, não busca por uma verdade em si, mas uma busca por uma “verdade” que justifique seu lado político. A meu ver, foi um desperdício de oportunidade. Poderiam realmente tentar esclarecer um período que infelizmente ainda tem muita coisa que ainda permanece obscura, mas preferiram fazer uma propaganda velada, que procura bater na “esquerda” e amenizar atos injustificáveis de uma ditadura (ao ponto que, até alguns fãs mais histéricos do documentário, questionar se realmente houve ditadura no Brasil, e que tudo na verdade foi uma invenção dos grupos de esquerda). O que me admira, é a quantidade de pessoas que tomaram esse documentário como se fosse à nova “bíblia sagrada” do período, sem perceber o viés politico que o filme passa. No fundo, o filme passa a mensagem errada para mim, de que “olha o regime militar não foi tão ruim assim, e tudo que fizeram foi necessário para que não houvesse uma ditadura pior da esquerda”, isso não acho válido, não se pode justificar os erros de um regime sobre o pretexto do “o que não aconteceu, mas poderia acontecer” ser pior.
Douglas, eu vou dar resposta a este comentário na coluna sobre Democracia em Vertigem, ok?
Oi, Douglas, por favor procure a minha resposta no texto sobre A Democracia em Vertigem.
É Paulo essa matéria é um assunto muito espinhoso e delicado para se comentar (principalmente pela temática desse documentário), diante dos fatos atuais em evidente erupção no cenário politico, envolvendo os 3 poderes. Dessa vez vou me abster de me pronunciar, pois os seguidores “fanáticos” do atual regime estão caçando a todos das mais diversas formas. Então a cautela e o bom senso mandam que a melhor coisa a fazer no momento em que vivemos é só observar, pois como se pronunciou recentemente um Ex-Presidente, O Brasil está mudando de rumo, mas não se sabe para onde, e nem como isso vai terminar. Esse acredito ser um comentário perfeito.
Meu caro Rogério,
Você tem toda a razão de se auto preservar. Eu, por outro lado, estou no fim da vida e nada mais me resta a não ser continuar observando as tolices que o dito ser humano pratica, com a desculpa de um ideal qualquer.
Eu e a minha família chegamos em Cardiif em 1990, menos de um ano após a derrubada do muro de Berlim, e era fácil presumir grandes mudanças, não só para os atingidos, como para a Europa como um todo. Note que a parte oriental da Alemanha sobreviveu a dois regimes políticos radicais, no primeiro havia a Gestapo e no segundo a Stasi. Aliás, você vê isso muito bem no filme “A Vida dos Outros”, que lhe recomendo assistir, caso haja interesse no assunto. Então, os alemães orientais saíram perdendo em tudo, e foram obrigados a se ajustar segundo as imposições do lado ocidental, que obviamente não queria assumir dívidas sem ter uma contrapartida de comprometimento dos que estavam saindo de um regime autoritário.
Não há a mínima chance de democracia e liberdade de expressão em regimes totalitários, seja de direita ou esquerda. O Brasil passou por dois estados de exceção, com prisão e tortura, o do Estado Novo e o da Revolução de 1964. No entanto, pouco ou quase nada se aprendeu dessas duas experiências, e se não forem tiradas conclusões em algum momento, muitos outros erros serão cometidos.
Neste texto que foi agora publicado eu deixei propositalmente de fora um monte de coisas que eu vivi. Só posso lhe dizer que alguns dos meus antigos colegas professores, que foram militantes no movimento estudantil, passaram os seus dias ausentes de qualquer militância. Um deles, filiado ao PT, chegou a me dizer que com o Lula tudo seria mais democrático. Tempos depois, eu o vi chorando por constatar que era tudo ilusão.
Tudo isso ocorre porque as pessoas já haviam vivido suas experiências depois amadureceram. Se o Brasil não amadurecer também, nós continuaremos vítimas do radicalismo político, que destrói em vez de construir. Nós estamos sim, em um momento novamente delicado, e eu só espero que os políticos reflitam antes de agir, e abram espaço ao diálogo, porque, convenhamos, ninguém é dono da verdade, e ninguém administra uma nação deste tamanho sem afetar a vida de alguém ou de um grupo de pessoas.
É Paulo essa matéria é um assunto muito espinhoso e delicado para se comentar (principalmente pela temática desse documentário), diante dos fatos atuais em evidente erupção no cenário politico, envolvendo os 3 poderes. Dessa vez vou me abster de me pronunciar, pois os seguidores “fanáticos” do atual regime estão caçando a todos das mais diversas formas. Então a cautela e o bom senso mandam que a melhor coisa a fazer no momento em que vivemos é só observar, pois como se pronunciou recentemente um Ex-Presidente, O Brasil está mudando de rumo, mas não se sabe para onde, e nem como isso vai terminar. Esse acredito ser um comentário perfeito.
Meu caro Rogério,
Você tem toda a razão de se auto preservar. Eu, por outro lado, estou no fim da vida e nada mais me resta a não ser continuar observando as tolices que o dito ser humano pratica, com a desculpa de um ideal qualquer.
Eu e a minha família chegamos em Cardiif em 1990, menos de um ano após a derrubada do muro de Berlim, e era fácil presumir grandes mudanças, não só para os atingidos, como para a Europa como um todo. Note que a parte oriental da Alemanha sobreviveu a dois regimes políticos radicais, no primeiro havia a Gestapo e no segundo a Stasi. Aliás, você vê isso muito bem no filme “A Vida dos Outros”, que lhe recomendo assistir, caso haja interesse no assunto. Então, os alemães orientais saíram perdendo em tudo, e foram obrigados a se ajustar segundo as imposições do lado ocidental, que obviamente não queria assumir dívidas sem ter uma contrapartida de comprometimento dos que estavam saindo de um regime autoritário.
Não há a mínima chance de democracia e liberdade de expressão em regimes totalitários, seja de direita ou esquerda. O Brasil passou por dois estados de exceção, com prisão e tortura, o do Estado Novo e o da Revolução de 1964. No entanto, pouco ou quase nada se aprendeu dessas duas experiências, e se não forem tiradas conclusões em algum momento, muitos outros erros serão cometidos.
Neste texto que foi agora publicado eu deixei propositalmente de fora um monte de coisas que eu vivi. Só posso lhe dizer que alguns dos meus antigos colegas professores, que foram militantes no movimento estudantil, passaram os seus dias ausentes de qualquer militância. Um deles, filiado ao PT, chegou a me dizer que com o Lula tudo seria mais democrático. Tempos depois, eu o vi chorando por constatar que era tudo ilusão.
Tudo isso ocorre porque as pessoas já haviam vivido suas experiências depois amadureceram. Se o Brasil não amadurecer também, nós continuaremos vítimas do radicalismo político, que destrói em vez de construir. Nós estamos sim, em um momento novamente delicado, e eu só espero que os políticos reflitam antes de agir, e abram espaço ao diálogo, porque, convenhamos, ninguém é dono da verdade, e ninguém administra uma nação deste tamanho sem afetar a vida de alguém ou de um grupo de pessoas.