A aclamada jovem cineasta Petra Costa produz um documentário de projeção internacional no qual vitimiza políticos de esquerda que perderam o poder recentemente. E afirma que, depois disso, a democracia está em perigo. Será?
Faz pouco tempo que eu assisti e comentei brevemente o documentário “1964: O Brasil Entre Armas e Livros”, obra do grupo Brasil Paralelo. Não mais que de repente o serviço Netflix lança outro documentário, com o título “Democracia em Vertigem”, dirigido por Petra Costa, super elogiada pelos seus pares.
Eu assisti o documentário com o mesmo interesse, e no dia seguinte fui ler no IMDb que se tratava de uma diretora jovem, mas com projeção internacional. O seu filme foi a vários festivais, o que, por princípio, é bastante meritório.
https://youtu.be/TKaYmUk3gyA
Foi por ter visto tantos elogios em direção da diretora que eu fiquei surpreso com a quantidade de equívocos, ou quem sabe, erros propositais, contidos no filme, inimaginável diante da estatura da cineasta.
Mas, antes de ir adiante, eu quero deixar bem claro com o leitor dos meus textos que eu não tomo partido (sem trocadilho) de qualquer cor política, portanto o que vem a seguir são observações de cunho pessoal sobre a estrutura deste documentário. Da mesma forma como vi em “1964” uma visão distorcida sobre a repressão dos anos 70, eu me sinto à vontade para analisar outro tema de radical polarização oposta.
Para começar, o assunto “democracia” fica em segundo plano, quando a cineasta ela própria começa a falar da família, sem mencionar, diga-se de passagem, ser herdeira de uma empresa de grande porte, o que ela vai revelar depois, sem citar o nome. O objetivo claro desta estratégia foi posicionar a família, pai e mãe, no rol da clandestinidade política e consequente prisão durante a ditadura. Ela entrevista a mãe várias vezes, mas não me lembro de ter visto o mesmo com o pai, teria que assistir tudo de novo para verificar isso.
Na minha concepção, esta abordagem deveria ter sido evitada, porque a partir dela percebe-se claramente que a diretora não está ali para revelar as suas reais intenções sobre o assunto.
O segundo e inacreditável erro de narrativa se refere a colocar como comprovados fatos fora do contexto a que se propõe terem sido inseridos. Ao retirar esses fatos do contexto, a cineasta os distorce do jeito que quiser. Se a sua plateia não tem ideia da sequência correta desses fatos, ela poderá interpretá-los do jeito que a cineasta quer, caso contrário os menos desavisados poderão perceber a manipulação distorcida que foi feita nesta montagem, e condenar o documentário como um todo!
A maior evidência de manipulação de fatos pode ser vista na insinuação de que o juiz Sergio Moro apresentava compromissos políticos quando condenou Lula, compromissos esses que lhe garantiram o convite, posteriormente aceito, para ser ministro da justiça!
Acontecimentos recentes, como aqueles divulgados pela Internet, de suposto conluio entre Moro e membros da operação lava-jato, mostram a todos nós que existe um movimento sistemático de desqualificação desses personagens, cujo objetivo óbvio é forçar a saída de Lula da cadeia.
O problema é que, a despeito de qualquer suspeita política a favor de Lula, estranhamente o ex-presidente foi condenado por dois tribunais federais, o segundo chegando a aumentar a pena, de apenas um dos cinco processos que ainda vão correr em futuro próximo. Então, se existe conluio, ele compromete todo o sistema judiciário! Lula, servido por um exército de advogados, está a todo o momento nas cortes superiores, tentando, até agora em vão, se livrar da cadeia.
Petra Costa ela própria nos mostra que estas tentativas de escape incluem ações de nível internacional, particularmente nos Estados Unidos e na ONU. E nada disso, até agora, deu resultado.
Com relação ao poderio petista de anos recentes, na deposição de Dilma Rouseff, o discurso de “golpe” continua vigente. A tese é completamente furada, mas a cineasta não se detém em escrutiniza-la, ao contrário, ela expõe Dilma como vítima das circunstâncias, de um grupo que fez de tudo para removê-la do poder.
Ora, na época da ditadura, a situação econômica do país levou o povo às ruas para pedir eleições diretas para presidente. Em 2013, algo parecido, desta vez contra a administração petista, fez com que os manifestantes gritassem o moto “sem partido”, na tentativa inclusive de expulsar aquelas infiltrações de entidades sindicais. Presume-se que aquele povo todo de 2013 já mostrava sinais de que estava farto com o regime de governo.
Na minha ótica, Dilma não caiu somente pelas assim chamadas “pedaladas fiscais”. Testemunhas deixaram vazar na mídia que ela não tinha hábito de negociar nada com ninguém, e neste processo, deixou o Congresso a ver navios.
E é aquela história que todos nós conhecemos: quando sem condições de conseguir eleições convincentes, os petistas apelaram para o PMDB para uma chapa, o que ocasionalmente empossou uma figura por eles notoriamente indesejável, que assumiu o governo depois do impeachment de Dilma. Ipso facto, a posse de Temer é perfeitamente legítima, mas gerou rancor com ares de uma suposta traição.
Petra Costa sabe, e mostra em seu documentário, que o país estava rachado já durante a reeleição de Dilma, mas não se importou em discutir por que. Mas, este não é um fato corriqueiro, e a prova disso é que, ao longo da linha do tempo, essa rachadura aumentou e tirou os petistas do poder, após 17 anos de governo.
Olhando esses acontecimentos em retrospectiva, e neste ponto não é nem preciso ser cientista político, se o país estivesse com a consciência em alerta quando a compra de votos durante o governo Lula foi denunciada, o ex-presidente jamais teria concluído o mandato!
Tentar agora vitimizar Lula e Dilma pelas injustiças contra eles cometidas é, no mínimo, imprudente, mas a cineasta que denuncia o apocalipse futuro da democracia vai nesse discurso até o fim do filme.
Se “1964” é uma tentativa pouco disfarçada de justificar o regime militar, o documentário de Petra Costa vai mais longe, mandando cópia para o exterior, em festivais e através do Netflix.
Não me custa repetir que polarizações políticas não fazem o país avançar. Por acaso, não foi Ghandi quem cunhou a expressão “an eye for an eye makes the world go blind”?
Ghandi proferiu esta frase diante da política acirrada de conquista do poder na Índia. A sua afirmação se opõe contra a necessidade de vingança dos derrotados. E se a democracia existe, ela pressupõe, no mínimo, duas coisas: primeiro, eleições limpas, e segundo, respeito às instituições!
Na minha opinião, Petra Costa jamais poderia afirmar que a democracia brasileira está decadente, ou à beira do precipício, só porque a esquerda saiu do poder e um grupo de direita tomou posse. Foram 21 anos consecutivos de esquerda no país, depois da extinção da ditadura. É razoável presumir que a rachadura eleitoral no país tenha sido fruto do inconformismo com o status quo imposto por esta mesma esquerda. Isso não qualifica a população que se posicionou contra a esquerda como criminosa, muito menos ditatorial, já que a mudança de regime foi fruto de um processo eleitoral livre.
No passado distante, documentários com apologia política mostraram somente um lado do mesmo tema, e os filmes de propaganda pior ainda. Basta lembrar que “Triunfo da Vontade”, filmado por Leni Riefenstahl durante o período nazista, foi premiado no Festival de Cinema de Veneza em 1935, e considerado por muitos como obra de grande estatura como narrativa de cinema.
O filme de Riefenstahl mostra que existem temas que podem ser explorados ou distorcidos. Cabe a quem assiste tentar separar o joio do trigo, e jamais deixar de exercitar a sua capacidade de pensar diante do que está vendo. É fato que o cinema per se é manipulativo, mas quando se trata de um assunto que atinge a todos, todo cuidado ao assistir é pouco! Outrolado!
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Esse documentário em particular, não tive vontade de assistir ainda. E o principal motivo foi o fato de perceber nos trailers, o mesmo problema que acontece em “1964” do Brasil paralelo e que comentei no seu artigo. Não estão em busca de uma verdade (claro que a “verdade real”, pode-se dizer, nunca será alcançada em um documentário, mas se por um lado chegar nela é impossível, ao menos a busca para se aproximar desse objetivo deve ocorrer), mas estão apenas em busca de uma verdade que justifique seu lado político. Como se as conclusões norteassem o caminho da pesquisa, e não a pesquisa norteassem as conclusões.
Oi, Douglas,
Eu li com atenção os seus comentários, e passo a respondê los aqui:
Toda vez que um cineasta expõe a sua opinião em filme ele ou ela estarão sujeitos às críticas de quem assiste!
Tendo dito isso, eu acho que você deve assistir a obra da Petra e tirar você mesmo as suas conclusões a respeito do que foi mostrado.
Os anos da ditadura foram duros, mas existem aspectos deles que eu nunca vi divulgados. Eu comecei oficialmente a minha carreira de professor universitário na UFRJ no início de 1975, depois de ter passado por todas as etapas acadêmicas anteriores.
Pois bem: na década de 1970, o regime militar gastou uma fábula de dinheiro modernizando a UFRJ. Foram comprados equipamentos de última geração, só o NPPN (Núcleo de Pesquisa em Produtos Naturais) montou uma central analítica sofisticadíssima. Um colega nosso, que pesquisava lá fez uma lista de máquinas para o nosso departamento. Para você ter uma ideia, eu desenvolvi todo o meu trabalho experimental em um espectrofotômetro Cary 118-C, de altíssima precisão. Nem o Centro de Pesquisa da Petrobrás tinha um igual e vários dos colegas pesquisadores de lá nos visitaram para ver o equipamento.
Durante aquele período o movimento estudantil já estava obscurecido (se a memória não me trai), mas a sensação de insegurança continuou. A insatisfação com os rumos da carreira acadêmica levou os professores da UFRJ a criar a Associação de Docentes (ADUFRJ), da qual eu fui membro. Assim, por volta de 1980 estourou uma greve de massa que eu nunca vi igual. E o que fez o governo militar? Reestruturou a carreira completamente! Ou seja, concedeu a maior parte das nossas reivindicações.
E a partir daí, perdeu-se o medo do confronto, mas infelizmente se estabeleceu em paralelo uma cultura de greves, a maioria das quais não conquistou quase nada.
E quando Lula tomou posse estourou uma dessas greves, com reivindicações salariais. O que fez ele? Deu uma declaração pública, perguntando “quem esses professores pensavam que eram”, porque, para ele, “professor universitário era igual a uma mulher do campo” (e merecia ser tratado como tal).
Então, note: anos de ditadura, com os militares fortalecendo a universidade, e anos de liberdade, com os políticos fazendo exatamente o contrário!
A universidade pública é um patrimônio que deveria ser preservado, porque ali é um dos poucos locais de geração de pesquisa, e apesar da nossa ter virado um antro de gente que se envolveu com política, nem assim foi evitado um desmonte da instituição, do trabalho de pesquisa, coisa ruim que transcendeu o petismo.
Em vista disso, é de se lamentar a falta de visão de pessoas que, bem intencionadas ou não, produzem documentários partindo de um único ponto de vista.
Eu fui apologista de trabalho de pesquisa em grupo, dos quais participei algumas vezes, e dizia para todo mundo o seguinte: qualquer assunto, seja ele científico ou leigo, traz em si múltiplos ângulos de visão, justificando ocasionalmente um trabalho multidisciplinar. Quando o trabalho em grupo é bem sucedido, todo mundo aprende alguma coisa que antes não tinha percebido.
Por mim, qualquer cineasta pode fazer o que bem entender, mas ao mostrar somente um lado da questão, em tese a obra se torna incompleta e perigosamente inclinada a uma interpretação equivocada da história!
Esse documentário em particular, não tive vontade de assistir ainda. E o principal motivo foi o fato de perceber nos trailers, o mesmo problema que acontece em “1964” do Brasil paralelo e que comentei no seu artigo. Não estão em busca de uma verdade (claro que a “verdade real”, pode-se dizer, nunca será alcançada em um documentário, mas se por um lado chegar nela é impossível, ao menos a busca para se aproximar desse objetivo deve ocorrer), mas estão apenas em busca de uma verdade que justifique seu lado político. Como se as conclusões norteassem o caminho da pesquisa, e não a pesquisa norteassem as conclusões.
Oi, Douglas,
Eu li com atenção os seus comentários, e passo a respondê los aqui:
Toda vez que um cineasta expõe a sua opinião em filme ele ou ela estarão sujeitos às críticas de quem assiste!
Tendo dito isso, eu acho que você deve assistir a obra da Petra e tirar você mesmo as suas conclusões a respeito do que foi mostrado.
Os anos da ditadura foram duros, mas existem aspectos deles que eu nunca vi divulgados. Eu comecei oficialmente a minha carreira de professor universitário na UFRJ no início de 1975, depois de ter passado por todas as etapas acadêmicas anteriores.
Pois bem: na década de 1970, o regime militar gastou uma fábula de dinheiro modernizando a UFRJ. Foram comprados equipamentos de última geração, só o NPPN (Núcleo de Pesquisa em Produtos Naturais) montou uma central analítica sofisticadíssima. Um colega nosso, que pesquisava lá fez uma lista de máquinas para o nosso departamento. Para você ter uma ideia, eu desenvolvi todo o meu trabalho experimental em um espectrofotômetro Cary 118-C, de altíssima precisão. Nem o Centro de Pesquisa da Petrobrás tinha um igual e vários dos colegas pesquisadores de lá nos visitaram para ver o equipamento.
Durante aquele período o movimento estudantil já estava obscurecido (se a memória não me trai), mas a sensação de insegurança continuou. A insatisfação com os rumos da carreira acadêmica levou os professores da UFRJ a criar a Associação de Docentes (ADUFRJ), da qual eu fui membro. Assim, por volta de 1980 estourou uma greve de massa que eu nunca vi igual. E o que fez o governo militar? Reestruturou a carreira completamente! Ou seja, concedeu a maior parte das nossas reivindicações.
E a partir daí, perdeu-se o medo do confronto, mas infelizmente se estabeleceu em paralelo uma cultura de greves, a maioria das quais não conquistou quase nada.
E quando Lula tomou posse estourou uma dessas greves, com reivindicações salariais. O que fez ele? Deu uma declaração pública, perguntando “quem esses professores pensavam que eram”, porque, para ele, “professor universitário era igual a uma mulher do campo” (e merecia ser tratado como tal).
Então, note: anos de ditadura, com os militares fortalecendo a universidade, e anos de liberdade, com os políticos fazendo exatamente o contrário!
A universidade pública é um patrimônio que deveria ser preservado, porque ali é um dos poucos locais de geração de pesquisa, e apesar da nossa ter virado um antro de gente que se envolveu com política, nem assim foi evitado um desmonte da instituição, do trabalho de pesquisa, coisa ruim que transcendeu o petismo.
Em vista disso, é de se lamentar a falta de visão de pessoas que, bem intencionadas ou não, produzem documentários partindo de um único ponto de vista.
Eu fui apologista de trabalho de pesquisa em grupo, dos quais participei algumas vezes, e dizia para todo mundo o seguinte: qualquer assunto, seja ele científico ou leigo, traz em si múltiplos ângulos de visão, justificando ocasionalmente um trabalho multidisciplinar. Quando o trabalho em grupo é bem sucedido, todo mundo aprende alguma coisa que antes não tinha percebido.
Por mim, qualquer cineasta pode fazer o que bem entender, mas ao mostrar somente um lado da questão, em tese a obra se torna incompleta e perigosamente inclinada a uma interpretação equivocada da história!