Cidadão Kane é considerado um dos maiores filmes de todos os tempos e resolvi comentar meus sentimentos sobre a obra de Orson Welles — não uma crítica, mas um relato da admiração e o impacto que teve na minha vida de cinéfilo e frequentador de salas de arte.
Eu já não me lembro mais quando foi a primeira vez que eu assisti Cidadão Kane, de Orson Welles, mas certamente não tinha idade nem maturidade para entender tudo o que se passava na tela.
Anos depois, eu consegui ter o filme dentro de casa, primeiro em VHS, depois em DVD e Blu-Ray, esta última a sua melhor versão em disco, o que me deu a chance de assistir o filme repetidas vezes e tentar captar tudo o que de mais interessante ele tinha. Trata-se de uma obra em que sempre se descobre algo novo toda vez que se assiste, e nem sempre o suficiente para alcançar o que de novo ele trouxe neste tipo de mídia.
O tempo passa e nós visualizamos uma quantidade enorme de reviews e análises sobre Cidadão Kane; algumas delas que nos ajudam a penetrar um pouco mais no mundo de Orson Welles e da sua obra-prima!
Sem querer ser por demais pretensioso, eu poderia mencionar alguns aspectos deste filme que aprendi a apreciar. São eles:
1 – Profundidade de campo focal – todo o processo de filmagem ficou centrado no uso de filme rápido (“fast film”), na época recentemente desenvolvido pela Kodak, ainda em fase experimental. Gregg Toland fez uso deste filme, com lentes Cooke 24 mm e câmeras Mitchell BNC (com blimp, para isolamento acústico). A Cooke vende hoje algo similar à lente usada no filme.
Na forma como Cidadão Kane foi fotografado, as tomadas de câmera mostram nitidamente 3 planos distintos em foco. Por exemplo:
E assim segue a maior parte do filme. Quando não, um aparelho chamado de “optical printer” fora usado para compósitos diversos, alguns em miniatura.
Em ambos os casos a sensação de espaço, alguns inexistentes na tomada de câmera, aumenta a ambiência das cenas de uma forma inconfundível!
2 – Luzes expressionistas – o uso de iluminação expressionista foi criada e profusamente usada em filmes alemães anteriores. Welles havia feito uso deste tipo de iluminação no teatro, depois de assistir “O Triunfo da Vontade”, da cineasta Leni Riefenstahl, rodado em 1934 como propaganda nazista.
Welles inicialmente tomou as rédeas da iluminação, mas depois foi chamado a atenção para não fazê-lo. Mesmo assim, ele usa as luzes expressionistas para evitar que o público veja o rosto de alguns de seus personagens:
3 – Quebra de regras da narrativa convencional – normalmente, os filmes seguem uma sequência de narrativa seguindo o padrão “início – meio – fim”. Em Cidadão Kane, Welles subverte esta estrutura, começando pelo fim, ficando mais ou menos como “fim – flashbacks – meio – início do filme”.
O uso de flashbacks é engenhoso, porque faz parte de um processo investigativo, no qual o personagem misterioso Jerry Thompson (protagonizado por William Alland) aparece em cena, quando este quer saber a origem do nome Rosebud.
Em uma sequência inovadora, que mostra Charles Foster Kane e sua mulher Emily sentados à mesa do café da manhã, Welles e seu editor Robert Wise fazem uso de “dissolves” entremeados por imagens em movimento, de maneira a mostrar as mudanças temporais de diálogo entre o casal.
4 – Angulação, câmera alta e câmera baixa – com a ajuda de Gregg Toland, que tinha experiência neste tipo de técnica de filmagem, Welles fez uso de angulações que exibissem o contraste entre personagens, e em múltiplas cenas a mudança de posição entre câmera alta e câmera baixa, para realçar a dramaticidade daquelas sequências ou simplesmente para indicar o longo espaço entre personagens dentro da mesma cena.
Diz a lenda que quando Toland não conseguia achar a tomada em câmera baixa correta, Welles teria feito um buraco no chão do estúdio e colocado a câmera lá.
Cidadão Kane não foi o primeiro filme a mostrar o teto do cenário, mas o fez de forma a fazer parte da narrativa.
5 – Sobreposição de diálogos – Welles traz do rádio uma contribuição inovadora na narração da estória. Ele não se intimida em sobrepor diálogos, algumas vezes, como na cena do café da manhã acima citada, com a inserção dos dissolves.
Esta sobreposição também contribui para a sensação de espaço, em cenas onde o número de personagens mostra os mesmos próximos e/ou espalhados na tomada da câmera.
Este tipo de sobreposição aparentemente nunca havia sido tentado em um filme anteriormente, mas Welles tinha consigo editores de áudio que não tinham medo de tentar usar este tipo de técnica.
6 – Superposição de imagens – algumas das cenas, como por exemplo, quando Susan está cantando uma ópera, o que se vê é a combinação de tomadas separadas montadas em uma única tomada, uma combinação entre atores e miniaturas.
Em outras cenas, o uso de miniaturas combinado com a imagem dos atores faz com que a tomada final aparente ser de um único ambiente.
7 – Chiaro-escuro e fotografia de alto contraste – é um método usado para enfatizar a dramaticidade de muitas cenas. O efeito se traduz na produção de zonas claras e escuras, ocultando aquilo que o diretor do filme deseja.
O diretor de fotografia Gary Graver se queixou que na versão em DVD o contraste da imagem ficou muito além do que devia, expondo segmentos dos fotogramas que não deviam ser mostrados. Este problema foi corrigido na versão em Blu-Ray.
Efeitos especiais e cinematografia
Talvez seja melhor para o leitor assistir aos melhores vídeos do YouTube, que compilam e/ou discutem estes dois tópicos de maneira sucinta.
Efeitos especiais:
Cinematografia:
Orson Welles versus Studio System
Orson Welles pagou caro por ter feito Cidadão Kane, como aliás já comentado aqui neste espaço. Talvez dois dos principais ângulos deste problema tenham sido a sua idade quando ele fez o filme (25 anos), o que lhe rendeu o apelido sarcástico de “menino gênio”, e o fato notório de ele nunca ter feito um filme na vida até então.
Mas foi esta mesma ignorância que fez Welles, e ele mesmo o diz para a BBC, para tentar mostrar em filme os sonhos das imagens contidos no roteiro, extensamente modificado por ele por causa disso.
Como já enfatizado por vários historiadores e pesquisadores, os grandes magnatas dos principais estúdios de Hollywood não acreditavam na possibilidade de um intruso ser capaz de fazer um filme de tal estatura, e mais ainda, sem produção ou supervisão desses mesmos executivos.
É óbvio, como antes relatado por Welles, que a realização de Cidadão Kane, dentro do orçamento, deixou muita gente chateada, talvez pela ameaça de destruição de um sistema no qual cineastas tinham autonomia limitada.
Uma vez perguntado quem escolhia os atores de seus filmes, John Ford declarou: “a mulher do produtor!”. E notem que este foi um dos poucos que conseguiram sobreviver às imposições e fazer o filme como queria.
Quando Robert Parrish, seu editor na época, falou que queria dirigir filmes, Ford recomendou a ele que toda vez que um executivo do estúdio entrasse no set ele imediatamente parasse a filmagem, pegasse o visor da câmera (como se estivesse procurando o ângulo ideal), e quando o executivo chegasse perto ele virasse o visor no seu rosto até fazê-lo sangrar!
Welles foi perseguido até o resto da sua vida, refugiando-se constantemente em países europeus, e tendo somente a simpatia de fãs e admiradores. Ainda vivo, recebeu esta simpatia dos cineastas contemporâneos, que não só entenderam o que ele tinha passado, como também reconheciam em Kane uma das obras primas do cinema!
Orson Welles parece que não gostava mais de falar sobre a sua obra de maior impacto, mas felizmente o filme nunca foi queimado, como queria Hearst e os executivos dos estúdios, e ele acabou cedendo em contar em entrevistas o que havia se passado.
Na minha opinião, Cidadão Kane está entre os melhores, senão o melhor, dos filmes jamais feitos, e o que se passou ficará como marco inquestionável de como o cinema pode ser transformador e inovador, não importam as consequências! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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concordo com a análise, mas quero acrescentar que esse quadro aí desenhado — do domínio dos blogueiros e tuiteiros feitos importantes pelo tecido social turbinado pela mídia tradicional — existe por um rescaldo do que a mídia sempre foi, um processo decadente, porém existente, quase dominante, mas mesmo isso, essa zona de conforto, está com os dias contados…