Milton Banana foi um daqueles músicos ancestrais do movimento bossa novista, tendo sido creditado como o criador da batida da Bossa Nova, mas muito pouco da sua memória se conhece ou até mesmo de alguns dos músicos que trabalharam com ele.
Por favor, alguém me corrija caso eu esteja redondamente enganado, mas eu sempre notei uma imensa dificuldade em conhecer e me ambientar com a obra de um monte de músicos brasileiros que tiveram importância ancestral na evolução da bossa nova e suas variantes temáticas.
Esta ausência de memória se soma à mesma ausência de informações sobre as cadeias de antigos cinemas de rua, que não existem mais. E isso tudo acaba dificultando todos aqueles que, indistintamente, tem interesse ou precisam realizar um trabalho de pesquisa de campo sobre esses assuntos!
Pois outro dia mesmo, eu estava debruçado com os meus ouvidos colados nos antigos discos do histórico baterista Milton Banana, e eu me lembrei momentaneamente que quando adolescente eu via o nome do baterista em destaque nos elepês da Odeon, cujas contracapas eram particularmente crípticas em informações sobre o trabalho de estúdio realizado.
Nem na série 100 anos de Odeon, que se propunha a remasterizar os antigos elepês na década de 1990, tais informações foram incluídas. Na prática, significa ter passado estes anos todos sem ter a mínima noção do que aconteceu naqueles momentos, hoje históricos, que circundaram as citadas gravações.
Em uma das contracapas, por exemplo, aparece impresso: “Wanderley – piano, Guará – contrabaixo”. Mas, quem são essas pessoas? A gente não toma conhecimento sequer dos respectivos nomes, quanto mais como estes músicos surgiram no cenário bossa novista daquela época. Mas, fica a pergunta por quem não os conhece: foram músicos importantes, que contribuição eles deram à música que tocavam? Quem souber a resposta, por favor me diga!
Em um dos poucos bons textos sobre o trio, o jornalista Marcelo Pinheiro discursa detalhes sobre o Milton Banana Trio e sobre o próprio Milton. Este é um texto cuja leitura eu recomendo.
Algumas tantas coisas precisavam ainda serem ditas. Nunca foi, que eu me lembre, usual um baterista ser líder de um trio. Verdade que figuras como, por exemplo, Gene Krupa, ou Buddy Rich, tiveram orquestras próprias, mas trios propriamente ditos, eu não me lembro nenhum deles liderado por um baterista.
E se Milton Banana assim o foi, é porque houve um momento da sua carreira onde ele se destacou o suficiente para ter o nome estampado nas sessões de estúdios de álbuns antológicos e/ou também da sua credibilidade inovadora. Milton foi creditado como o inventor, digamos assim, da batida da bossa nova, alguns diziam até que seria a transposição rítmica da maneira de tocar violão de João Gilberto.
A batida clássica da baqueta na caixa, bastante usada também por músicos de Jazz, foi, a meu ver, uma das maneiras de marcar ritmo que Milton Banana acentuou a sua competência, e que chama a atenção até mesmo por pessoas iletradas no instrumento!
A bateria, junto com o contrabaixo, e às vezes com a inclusão de uma guitarra, faz parte do que o jargão musical chama de “cozinha” de uma orquestra ou banda. Nos primeiros anos da bossa nova não foi incomum que músicos brasileiros tivessem seus nomes omitidos de um número enorme de gravações. Eu confirmei isso uma vez, quando conversei com o Bebeto (Adalberto Castilho), ex-Tamba Trio, cujo nome não consta da lista de figurantes que estiveram ao lado de músicos norte-americanos, inclusive em estúdios no Rio de Janeiro, durante o início dos anos de 1960.
A falta de memória talvez não tenha solução
A falta de memória se espalha até mesmo na Internet. Anos atrás, eu estava, por mera coincidência, na casa de uma amiga em Niterói, e lá estavam também seus amigos locais, um deles que conhecia o baixista Tião Neto, falecido em 2001, aos 69 anos. A notícia triste que eu recebi desse pessoal é que o lendário músico viveu os seus últimos anos na miséria e ajudado por amigos.
Este tipo de situação muito triste não foi diferente daquela que viveu Milton Banana, o qual, segundo testemunhas, precisou de ajuda financeira para sobreviver os seus últimos anos. Na realidade, Milton sofreu vítima de um diabetes, que terminou na amputação de uma das pernas, antes de falecer em 1999, aos 64 anos.
Tanto Milton quanto Tião Neto estavam nas sessões de gravação do antológico disco Getz/Gilberto, lançado em 1963 pela Verve. Tião Neto sequer recebeu crédito neste disco, com o nome substituído por Tommy Williams na capa. Mas, ele estava lá sim, como mostra este flagrante de uma das sessões da gravação:
Um livro que ainda se consegue comprar on-line é aquele editado pela MEDIAfashion, com um texto de Ruy Castro sobre Milton Banana:
O livro, de pequeno tamanho, vem acompanhado de um CD com faixas de diversos discos, onde Milton Banana liderou ou o seu Trio. O repertório deste CD é mostrado a seguir:
Para quem nunca ouviu ou teve os discos originais desta compilação, mas quer conhecer um pouco da obra do músico, este CD está de bom tamanho.
Eu creio que um dos principais motivos pelos quais se tem tão pouca memória de músicos artistas importantes, do quilate de Milton ou Tião Neto, entre muitos outros, é o descaso com a preservação de depoimentos de pessoas que estiveram próximas ou dos próprios artistas que talvez tenham achado que esses depoimentos não tivessem tanta importância assim no contexto cultural do país.
Ainda adolescente eu ouvi falar que depoimentos teriam sido colhidos no Museu da Imagem do Rio, e entrando no site o que se vê é uma burocracia que de cara entrava a iniciativa de qualquer pesquisador. Nada de muito diferente de quando eu visitei o Museu Nacional e lá não me deixaram capturar imagens de jornais antigos microfilmados, quer dizer que se eu quisesse uma única daquelas imagens eu teria que ir ao Banco do Brasil pagar uma taxa e depois disso solicitar a cópia, para não antes sem esperar alguns dias para recebe-la!
Se é assim que o pouco de memória é tratado, Deus nos acuda!
Às vezes eu acho que, sem exagero, eu nasci no país errado. Infelizmente, neste aspecto, a minha vida na Europa me mostrou o extremo oposto. Ao entrar na biblioteca pública da minha cidade várias fotocopiadoras, inclusive coloridas, ficavam lá para qualquer um que quisesse fazer uma cópia de imagem ou texto pudesse usar uma delas, bastando comprar um cartão de cópia a preços ridiculamente baixos.
Pois aqui na UFRJ, eu me dirigi à biblioteca do Hospital Universitário e solicitei a consulta de um CD-ROM do Index Medicus, e aí a bibliotecária me informou que eu teria que pagar por aquela consulta, a despeito de eu fazer parte do corpo docente da Faculdade de Medicina. E este entrave só acabou quando a CAPES permitiu o acesso aos periódicos através dos servidores na Internet.
Engraçado (ou tragicômico) é que nós estamos na Internet há anos, mas a mentalidade de preservação de memória nacional continua a mesma. Quem perdeu a chance de entrevistar pessoas do meio artístico ou técnico acabou ficando na saudade, porque muitas pessoas com quilate elevado não estão mais aí para contar suas histórias! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.