Revisitei o filme Campo dos Sonhos, passados tantos anos, e enxerguei nele razões para reapreciá-lo de forma nova e diferente. Em edição 4K, com ótima imagem e som.
Eu já não me lembrava mais da última vez que eu assisti Campo dos Sonhos (no original, “Field of Dreams”), filme de 1989, dirigido por Phil Alden Robinson, a partir de um livro escrito por W. P. Kinsella, autor que faleceu em 2016, aos 81 anos.
Na época, eu achei o filme por demais paroquial, principalmente por conta de uma estória ancorada no baseball, esporte muito pouco popular por aqui. Mas, claro, isto não seria desculpa, o que me pareceu ter acontecido naquela apreciação foi a falta de sedução do desenrolar da trama colocada no roteiro.
Ao longo do tempo, a frase da voz que o personagem ouve, dizendo “Se você construir, ele virá” (no original: “If you build it, he will come”), virou motivo de anedota no próprio cinema.
Mas, no enredo de Campo dos Sonhos aquela frase é o sustentáculo da obsessão de Ray Kinsella ao pensar em de fato fazer isso, construir um campo de baseball no terreno da sua propriedade.
Porém, o mais importante na trama é que o projeto de construção do campo de baseball irá revelar ao personagem o real motivo pelo qual o campo deveria ser construído, revelado ao fim do filme.
O filme saiu em 4K, com preço moderado, e eu então resolvi me dar uma segunda chance para assistir de novo:
O interessante desta edição é que, mais uma vez, um Blu-Ray 4K lançado para o mercado americano traz consigo áudio (DTS 5.1) e legendas em português! E não pode ser uma mera coincidência.
O disco foi masterizado com trilha DTS:X (DTS-HD MA 7.1, para quem não tem decodificador), com bom resultado na reprodução dos diálogos e trilha sonora, mas com uma ambiência 3D apenas discreta, o que não empana a atmosfera do filme.
Um destaque da edição 4K é a qualidade da imagem, bem superior às edições anteriores. O tratamento com HDR 10 torna evidente que filmes antigos podem, e a meu ver devem, receber um aprimoramento com os recursos de imagem atuais.
Percebe-se uma tessitura natural da fotografia 35 mm, com baixa granulação e ótima resolução, quesitos que são, em última análise, os principais objetivos de uma remasterização de qualidade dos filmes mais antigos.
Filme revisitado que nos traz alguma surpresa
Parece mentira, mas eu assisti agora Campo dos Sonhos com outros olhos. E eu atribuo isso à diferença de vivência e experiência de vida que decorreram nesses anos todos. Afinal, já se passaram mais de 30 anos do lançamento do filme.
O tema da estória e as circunstâncias vividas pelos personagens são de fato paroquiais, mas no conjunto geral da obra ambos se referem a defesas da liberdade de expressão, que nada têm de paroquiais!
O assunto 2ª Guerra Mundial vem à baila quando uma mulher local defende o banimento do livro de um autor progressista da década de 1960. Annie, mulher de Ray, não só defende o autor como sugere que, se um livro deva ser banido, porque não jogá-lo em uma fogueira?
A referência é mais do que óbvia, lembrando a documentada queima de livros de autores contrários aos nazistas, proposta e realizada pelo infame Joseph Goebbels, ministro da propaganda. Annie se refere à tal fulana de forma agressiva, chamando-a de “Nazi bitch” (“Nazista maldosa”), portanto quem não conhece os detalhes sórdidos daquele regime pode depois se orientar pelo script do filme.
A associação entre a ditadura de pensamento e os regimes de força ferem a liberdade de expressão e culminam na perseguição dos autores contrários ao regime e ao status quo político de um dado momento.
Só isso justifica a defesa da liberdade de expressão, porque ela é essencial, inclusive na pesquisa científica, para o desenvolvimento cultural dos povos e nações.
O lado mais importante do filme, entretanto, é a convicção do autor demonizado (Terence Mann) em parar de escrever e se isolar das pessoas, porque ele acha que todo mundo que lê o que ele escreve deve aprender a evoluir por si próprios.
Não sei se foi uma coincidência proposital, mas o nome Mann nos lembra a enorme lista de autores banidos durante o período nazista da Alemanha, como Thomas Mann, por exemplo.
O filme fala também na preservação das tradições, e preservação é um tema que me toca profundamente, porque, ao longo da minha vida, eu me dei conta de que destruir é muito mais fácil, haja visto o número de salas de cinema que desapareceram. E assim, a construção do Campo dos Sonhos exigiu de Ray Kinsella muita dedicação e esforço!
Terence Mann diz a Ray Kinsella que as pessoas virão ao campo, sem sequer ter noção da profundidade das razões pelas quais elas irão fazer isso. Este é, talvez, um dos aspectos mais interessantes da estória: de que a preservação de valores tem influência direta na preservação da sociedade, e as pessoas têm, queiram ou não, consciência disso. Em última análise, é assim que nascem alguns movimentos sociais de forma espontânea e sem ninguém se dar conta do por que ele nasceu.
Em suma, Campo dos Sonhos tem o seu valor não paroquial, explorando um tema que é caro a todos nós, e só por isso já valeu uma revisita ao filme. Eu mesmo perdi a conta de quantas vezes na minha vida eu dei um imenso valor à liberdade de pensamento, e lamentei outras tantas vezes quando percebi que este tipo de evolução é demasiadamente lenta.
A maior prova disso é a própria Europa, que passou por duas grandes guerras e outras menores, mas não menos importantes, sofreu com regimes totalitários ao longo do século 20, para hoje poder dar suporte a uma sociedade bem mais equilibrada. Eu sei, porque eu vivi lá por quatro anos. Lógico que uma sociedade totalmente justa ou perfeita é uma utopia, mas não custa nada sonhar! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.