De volta à comemoração dos 50 anos do álbum Clube da Esquina deve-se lembrar da presença do conjunto chileno Grupo Água, que participou de diversas gravações por aqui, inclusive com Milton Nascimento, por volta de 1978.
Alguém ainda se lembra deles? No disco “Geraes”, com Milton Nascimento, o conjunto chileno Água se apresenta com a música Caldera, gravada no estúdio da Odeon, em 1976.
Eu estava em atividades de aula, quando o Grupo Água deu um show de cortesia no auditório nobre do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, onde eu trabalhava. Eu avisei a alguns colegas sobre o show, mas nem todos foram. Foi uma apresentação lindíssima, dedicada aos estudantes.
Mais ou menos nesta época todas as músicas ouvidas no show foram registradas em disco no estúdio da Som livre, e o álbum resultante lançado com o título “Transparencia”. Não sei por que motivo, mas até hoje este disco nunca foi, que eu saiba, relançado em CD. N.B.: o leitor Fábio Valle me chama a atenção de que o selo Discobertas relançou este álbum em CD, em 2017. Aparentemente, esta edição está esgotada.
Quando eu remasterizei os meus últimos elepês, este foi um dos discos, aliás bem cortado e prensado, que eu fiz questão de preservar.
Aquele show na UFRJ, que eu me lembre, não teria sido gravado, mas existem registros em áudio da presença ao vivo do Grupo em outros locais:
Transparencia pode ser ouvido integralmente hoje em dia no serviço de streaming do Spotify. Quem deu sorte de ter estado naquele show para os estudantes, conseguiu uma lembrança importante no disco gravado no estúdio da Som Livre.
Eu achei agora e coloco a seguir a lista dos integrantes do Grupo:
Nelson Araya, voz, violão, mandolin (1973 – 1981 / 1999)
Leopoldo Polo Cabrera, voz, vilão, charango (1973 – 1981)
Nano Stuven, flauta (1973 – 1981)
Oscar Ratón Pérez, violão, mandolin (1976 – 1981 / 1999)
Pedro Jara, percusão (1978 – 1981)
Roberto Lacourt, saxofone, flauta (1980 – 1981)
Marco Luco, baixo (1980 – 1981)
Leo Cereceda, baixo (1999)
Lucho Martínez, percussão (1999)
A América Latina de Milton Nascimento
Agora que se comemorou os 50 anos do disco Clube da Esquina, gravado na Odeon em 1972, pode-se lembrar que uma das abrangências daquele disco foi a incorporação de temas relativos ao nosso continente, onde predomina a língua espanhola, com variações naturais de maneiras de falar ou de se expressar. No show do Grupo Água se pode perceber essas sutis diferenças de pronúncia, porém o mais importante é que o lado folclórico está muito bem preservado!
Com Milton, o grupo interpreta Caldera, constante no disco Transparencia. Mas, a interrelação sul americana não para por aí: em Geraes (outro disco remasterizado em Abbey Road), Milton apresenta Mercedes Sosa, cantora argentina de voz insinuante, e ambos interpretam “Volver A Los 17”, música belíssima escrita por Violeta Parra, e que também consta no álbum Transparencia.
A poesia de Volver A Los 17 é tocante, e mostra as reflexões de alguém que atingiu a senioridade e volta a refletir sobre a sua própria vida. Violeta Parra escreve:
“Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
De volta aos dezessete depois de viver um século
Es como descifrar signos sin ser sabio competente
É como decifrar sinais sem ser um sábio competente
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Voltar a ser de repente tão frágil quanto um segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios”
Voltar a sentir profundo como uma criança na frente de Deus”
Todas essas poéticas e belas reflexões são acompanhadas pela sensação da insegurança do momento. Vê-se isso ainda no disco de 1972, com a música “San Vicente”, quando Milton escreve: “Coração americano, Acordei de um sonho estranho”.
E, de fato, a realidade política obscura e a repressão militar estavam vigendo em toda a América Latina durante anos, através de regimes brutais, que arrancaram humilhações, torturas e assassinatos com ocultação dos corpos, não só de militantes e combatentes, mas também de pessoas inocentes que ousaram contestar aqueles regimes.
Todo o recordatório folclórico latino americano, presentes nessas gravações, não deixou de ser uma maneira de dizer a todos que as ouviram que “isto somos nós, nossa herança cultural e nossas tradições”, frente a regimes que em nada respeitavam o lado cultural de cada país.
A presença da esquerda e/ou das ideias esquerdistas de músicos e compositores serviu de pretexto para a destruição pura e simples do desenvolvimento da música e demais formas de artes, e seus avanços anteriormente conquistados! Neste processo, a censura imposta aos meios de comunicação teve papel preponderante e determinante de um atraso cultural indesculpável.
Passados estes 50 anos, ainda se pode sentir a magnitude da destruição da cultura ocorrida durante a vigência dos regimes militares. Mercedes Sosa, que era reputada pela repressão como ativista política, mas, segundo consta, nunca pertenceu a qualquer partido, foi presa e depois se exilou, e como ela, muita gente saiu do continente para outros países, somente voltando após a anistia e extinção das ditaduras. Porém, o dano já havia sido feito, e a perda da cultura e do seu progresso tornado irreversível! A sensação que eu até hoje tenho é de que nunca mais fomos os mesmos.
Hoje em dia, quando eu vejo alguém fazendo um esforço qualquer em colher depoimentos e/ou resgatar a memória eu me lembro de como é muito mais fácil destruir do que preservar. Outrolado_
. . .
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Foi relançado em CD em 2017, selo Discobertas, excelente qualidade, eu também havia digitalizado o LP. Grupo fantástico, pena o segundo album “Amaneceres” não ter sido também. Outro que aguardei muito foi o Walter Franco Respire Fundo.
Oi, Fábio,
Obrigado pela retificação, vou editar o meu texto. Vi agora que o selo Discobertas lançou realmente o disco, mas em dos sites onde o CD é mencionado o disco está esgotado.
Eu tinha um contato na Som Livre anos atrás, que conseguiu para mim uma cópia do disco dos Cariocas, Minha Namorara, direto do acervo. Este disco saiu em CD não me lembro se antes ou depois. Já o Transparência ele não conseguiu achar.
O selo Discobertas andava fazendo uns relançamentos interessantes, não sei se ainda continuam porque eu não acompanhei mais. Outro selo que ainda faz isso é o da Dubas, onde achei muita coisa da Bossa Nova.
A Saraiva queimou os estoques da Discobertas, aliás todo o estoque deles de CDs e DVDs e Blurays aqui no RS. Ainda existe alguma coisa na Livraria Cultura. Abraço
Pois é, Fábio, eu tinha uma Saraiva no shopping do bairro que eu visitava, e um belo dia, a loja fechou, me deixando na mão. E a Cultura, que tinha uma loja imensa no antigo (e tombado) Cinema Vitória, também fechou as portas. Triste!…
Foi relançado em CD em 2017, selo Discobertas, excelente qualidade, eu também havia digitalizado o LP. Grupo fantástico, pena o segundo album “Amaneceres” não ter sido também. Outro que aguardei muito foi o Walter Franco Respire Fundo.
Oi, Fábio,
Obrigado pela retificação, vou editar o meu texto. Vi agora que o selo Discobertas lançou realmente o disco, mas em dos sites onde o CD é mencionado o disco está esgotado.
Eu tinha um contato na Som Livre anos atrás, que conseguiu para mim uma cópia do disco dos Cariocas, Minha Namorara, direto do acervo. Este disco saiu em CD não me lembro se antes ou depois. Já o Transparência ele não conseguiu achar.
O selo Discobertas andava fazendo uns relançamentos interessantes, não sei se ainda continuam porque eu não acompanhei mais. Outro selo que ainda faz isso é o da Dubas, onde achei muita coisa da Bossa Nova.