A enorme disponibilidade de opções de entretenimento tem dividido o consumidor, que se afasta de mídias com as quais ele conviveu durante décadas, e iniciando o esvaziamento de várias delas.
Eu tenho certeza de que fiz um razoável esforço para acompanhar o desenvolvimento da TV Digital aberta, porque todos nós que ficamos décadas a fio convivendo com a TV analógica sofremos um bocado, principalmente em cidades com geografia complexa e cheia de morros. Na adolescência, eu subia escondido no telhado do prédio para instalar uma antena, que permitisse a recepção de um ou dois canais com uma imagem aceitável, mas nunca perfeita. As demais emissoras só colocando uma segunda antena.
Na década de 1980, eu fui morar em uma rua bem mais próxima do Morro do Sumaré, onde ficam localizados os transmissores, mas não em linha reta e aberta, como seria desejável. Resultado: com antena interna, a imagem ficava toda embaralhada, e lá fui eu então de volta para o telhado. Aí o resultado foi o oposto: uma recepção tão forte que foi preciso interpolar um atenuador no cabo de descida.
Durante algum tempo, testes foram feitos com a TV Digital, mas ainda muito longe do padrão a ser escolhido. As promessas da época eram de uma imagem limpa, sem fantasmas ou sombras, possível de ser recebida sem esforço. Quando a TV digital começou, viu-se logo que não era bem assim, e lá fui eu de novo para o telhado. A antena que eu instalei, uma log periódica, está lá até hoje… e ainda funciona, mas quase sem uso!
O que não funciona até hoje é que a TV aberta tinha todas as chances para evoluir, e isso nunca aconteceu. Quando a TV paga foi oferecida todos se livraram das antenas, mas, segundo pesquisas, muito mais para poder assistir TV aberta!
Só que a TV aberta manteve todos os seus velhos vícios da TV antiga. Durante anos, a Rede Globo foi uma que capitalizou audiência no melodrama das novelas, estas advindas do rádio. Mas, esta programação entorpecente acabou tendo os seus dias contados. Hoje, quase ninguém divulga, mas nos bastidores se comenta que várias novelas enchem o saco de quem assiste, e aí ela é rapidamente substituída por outra. Bom só para quem trabalha lá e escreve, a audiência fica à deriva.
A modernização do broadcast de alta definição, antes uma festa celebrada com 1080 linhas de varredura entrelaçadas, nunca foi, até onde eu tenha me dado conta, devidamente aproveitada. A ideia da HDTV era basicamente oferecer imagem de qualidade, a custo praticamente zero. Mas, aparentemente, as emissoras se esqueceram de aprimorar a programação ou de torná-la moderna.
Com a passagem da Internet, tudo mudou
Antes restrita a uma rede acadêmica, a Internet chegou hoje a um ponto em que a maioria das pessoas permanece “on-line” a maior parte do dia, não necessariamente na frente de um computador pessoal. Um dos reflexos imediatos disso foi o aparecimento do YouTube, há cerca de quase uns vinte anos atrás.
A ideia inicial era de compartilhar vídeo, mas rapidamente se transformou em um veículo de comunicação mais veloz e mais fácil de usar do que a TV aberta ou que a TV por assinatura. Pouco importa se os vídeos são toscos, mal acabados ou sem qualidade de conteúdo alguma, uma multidão de adeptos se gruda lá, e nem precisa “deixar um like” ou se inscrever no canal.
A capacidade de escolher o que assistir, e a que horas isso pode ser feito, foi, a meu ver, o principal diferencial da Internet. Não é à toa que as TV abertas e por assinatura estão cada vez mais perdendo audiência. O único empecilho a ser driblado seria o da disponibilidade de sinal de rede, mas as operadoras de telefonia oferecem opções a relativo baixo custo para resolver isso.
A opção de escolha é quem manda
A TV aberta foi, por muito tempo, uma cópia da programação do rádio. A HDTV aberta de hoje é um conjunto de emissoras religiosas, ao lado das emissoras antigas que sobraram, transmitindo a mesma coisa. Quem quiser ter opções, sem ser adepto de algum tipo de religião, recorre a alternativas diversas, algumas das quais ainda gratuitas, ou por cortesia das operadoras de telefonia.
Foi assim que os serviços de streaming proliferaram. No início, o Netflix era apenas uma locadora de filmes lá na América. Com a queda nos negócios, surgiu a ideia de levar esses vídeos diretamente para a casa do consumidor. E deu certo!
Os algoritmos de áudio e vídeo obtidos nos serviços de streaming permitem que o usuário monte o seu receptor em um home theater moderno, obtendo uma qualidade que a TV aberta e a TV paga ainda não oferecem. Esta última já chega perto, mas a TV aberta da mesma qualidade só será factível quando a TV 3.0 começar a transmitir, mesmo assim carecendo de uma conexão pela Internet que torne viável as suas promessas de aperfeiçoamento:
É recomendável ter uma certa cautela com esses anúncios. Quando se fala em 8K, por exemplo, não se diz como isso será possível. Nem o Blu-Ray chegou a esta definição, e, na prática, nem precisa! A TV com tela 8K é escassa e custosa. A visão do olho humano exclui, teoricamente, o alcance desta resolução como melhoria. Vídeos do YouTube com 8K podem até ser recebidos com 4320p de sinal, mas em um computador com monitor 4K, por exemplo, a imagem será automaticamente reduzida para 2160p.
Para quem quiser testar:
Outro problema a ser contornado é a largura de banda (“bandwidth”) para a transmissão do sinal a 8K, cerca de 50 Mbps pela Internet no mínimo. Na realidade, existem recomendações do Google para vídeos de diferentes definições transmitidas pelo YouTube. Ainda é necessário manter a linha de transmissão compatível com o sinal 8K, seguindo o protocolo HDMI 2.1, para evitar bloqueio na imagem.
Eu já vi este filme antes
Não sei quanto a você que lê esta coluna, mas eu acompanhei muito, como espectador e cinéfilo, a evolução técnica e artística do cinema mundial. Desde os seus primórdios, com os irmãos Lumière, passando por Hollywood, com suas megaproduções, e até chegar aos dias de hoje, o cinema passou por diversas fases, e hoje não é nem sombra do seu passado de mais de 50 filmes por ano!
É um fato histórico, fartamente documentado, que a chegada da televisão nos lares americanos balançou a indústria. Lá, como aqui também, quando um filme fazia sucesso, as filas na bilheteria dobravam quarteirões. No cinema do meu tio, que só projetava 1 filme por noite, quando o que estava passando agradava à população da cidade, ele exibia o filme em duas ou às vezes até 3 noites seguidas.
O lucro monstruoso dos grandes estúdios foi se esvaziando com o passar dos anos. A maioria dos magnatas foi obrigado a vendê-los ou arrenda-los. As iniciativas de mudar os sistemas de projeção e som surtiu efeito, mas mesmo assim nada impediu as salas de exibição de serem divididas, o espaço cedido depois para a pornografia, e no final fechadas, demolidas, ou cedidas a igrejas evangélicas.
O mesmíssimo fenômeno vem se repetindo, através das últimas décadas, com tudo que diz respeito ao vídeo doméstico. Creio que é muito difícil prever o que virá a seguir.
As consequências difíceis de evitar ou fingir que não existem
Não me surpreendo mais com as notícias de quebradeiras de mega redes de TV. E é curioso notar que a população brasileira cresceu muito, mas isso não tem, aparentemente, correlação com o crescimento da audiência nas emissoras tradicionais.
Uma das possíveis explicações é a eterna mudança cultural entre gerações, quando as mais novas mudam de gosto e maneira e pensar. Esse abismo cultural, no caso das emissoras de TV que insistem com novelas de rádio disfarçadas de dramalhões folhetinescos, acaba por afastar potenciais espectadores. Basta a audiência cair e a emissora manda abreviar o xarope transmitido imediatamente!
No cinema, mais uma lição que não foi aprendida: a atração de plateia (ou da audiência, quando se trata de TV) com enredos dedicados aos mais jovens. Foi o caso, por exemplo, de Guerra nas Estrelas. Mais, a moda passou. Outra jogada semelhante do cinema é usar roteiros de ultraviolência, no formato videogame, uma moda que está cansando, e eu diria, irritando quem percebe que isso nunca foi cinema!
Mas, não é só a TV aberta que está em xeque. Quem assina Netflix, por exemplo, deve ter percebido a enxurrada de filmes já fartamente exibidos nas emissoras pagas. Recentemente, o serviço encerrou a transmissão de Dolby Vision, e o substituiu por HDR10, presume-se que foi para economizar grana. A mensalidade, entretanto, não diminuiu.
A TV fechada, por seu turno, exagera na repetição de seriados e filmes. E é lógico que isso cansa até o mais paciente dos espectadores. Um número absurdo de canais inúteis e desinteressantes, empurrados à força nos pacotes dos assinantes, tem feito gente minha conhecida desistir de assinar. Em vista disso, os provedores deveriam ou diminuir o custo do assinante ou mudar de estratégia na venda dos pacotes. Deveriam, mas não é o que fazem!
Seja como for, ainda vem muita coisa em aberto por aí. Resta saber se vamos ter vantagens como consumidor mais adiante ou vamos continuar na mesmice. Aumentar o número de streamings ou número de canais fechados não vai funcionar, o que vai de fato prevalecer é a relação custo/benefício, mas isso se lições de mercado forem aprendidas, por enquanto nenhuma delas foi. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.