O termo som estereofônico é uma associação entre o cinema e sua evolução no campo do áudio, que chegou ao ambiente doméstico muitos anos depois.
Existem palavras, termos ou expressões que provocam uma relação empática e/ou lúdica, quase que mística eu diria, no cérebro de algum indivíduo. “Som estereofônico” foi um termo mágico para as pessoas da minha geração. Ele se refere à reprodução espacial do som, alcançando uma dimensão até então nunca percebida.
A palavra stereo ou estéreo vem do grego “stereós”, que significa “sólido”. Atribui-se a Western Electric a criação do termo “Stereophonic”, que se traduz fisicamente como “som no espaço” (N.B.: phonic ou fono vem do grego “phōnḗ”).
Nos anúncios de filmes em lançamento nos jornais da minha época de menino a cadeia de cinemas do empresário Luiz Severiano Ribeiro, principal exibidor da cidade do Rio de Janeiro, aparecia o que nós hoje chamamos de ícone, no formato de uma tela scope, e embaixo estava escrito “6 faixas de som (magnético) estereofônico”. Por causa disso, durante anos eu achava que os cinemas de fato reproduziam 6 canais de som.
O anúncio abaixo, resgatado de uma publicação antiga de um jornal carioca mostra o mesmo erro, em plena era 70 mm. O Rian havia instalado dois projetores Incol 70/35, e iria exibir Woodstock com esta bitola, mas a cópia que chegou ao cinema era 35 mm, scope, de 4 canais. Orion Jardim de Faria e seus técnicos passaram a noite re-calibrando tudo, para que o Rian pudesse exibir o filme no dia seguinte.
Ao estudar cinema, ainda adolescente, eu acabei por descobrir que seria impossível os cinemas da época do CinemaScope terem as tais “6 faixas” como era anunciado, simplesmente porque a bitola de 70 mm só foi apresentada nesta cidade em 1965, no Cinema Vitória.
Até então, os cinemas cariocas estavam equipados para projetar o CinemaScope, 35 mm com 4 e não 6 “faixas” de som estereofônico. O exibidor, que eu saiba, nunca explicou a ninguém o que eram as tais “faixas”, muito menos que eram 6. Naturalmente, “faixa” é a tradução literal do inglês “stripe”, conhecida pelos operadores de cinema como “banda”, no caso, banda magnética impressa na película.
Para nós que alcançamos a chamada “alta fidelidade” em elepês monaurais, o som estereofônico era sinônimo de som de cinema exclusivamente. A minha mãe, por exemplo, foi ao Cinema Palácio com uma amiga assistir o filme “O Manto Sagrado”, primeira exibição em CinemaScope no Rio de Janeiro.
Depois ela conta que tomou um susto quando o filme começou e ela ouviu um “estrondo” vindo da tela, o que a deixou impressionada anos a fio. Anos mais tarde, ao assistir a cópia restaurada do filme da Fox, eu não consegui ouvir “estrondo’ algum, fora de algumas poucas cenas de tempestade.
Tempos depois, entretanto, a ficha caiu: o cinema sai do som mono, um único sonofletor na tela, para três sonofletores, cobrindo toda a extensão da larga super larga do CinemaScope naquele momento (2.55:1). A Fox modificou a fanfarra de abertura, com o compositor Alfred Newman colocando a conhecida extensão do formato.
Mas certamente foi o impacto da mudança da fanfarra para 3 canais na tela que produziu tal efeito nas pessoas da plateia. Cinemas como o Palácio estrategicamente abriam as cortinas para exibir filmes em CinemaScope, dando um efeito visual que impressionava a quem assistia.
Foi nos cinemas, e não dentro de casa, que a mudança do som mono para estéreo teve o seu maior impacto para as pessoas da minha geração. Na realidade, durante boa parte da década de 1960 ninguém lá de casa, nem mesmo a minha mãe, teve interesse em elepês estereofônicos. E quando hoje eu leio pela Internet que o elepê estéreo também teve relativo pouco impacto na América ainda durante a década de 1960, eu consigo entender por que.
Essencialmente, o cinema modificou a estrutura das telas, saindo da chamada Academy Ratio (1.37:1) para o Widescreen (1.78:1) e logo depois o CinemaScope (inicialmente 2.55:1 e depois 2.35:1). Logo na primeira alteração para uma tela de largura maior (“widescreen”) o som de 3 canais na tela foi imediatamente introduzido, mas só teve expressão de fato com o advento do CinemaScope.
A linha do tempo mais básica desta mudança pode ser diagramada desta maneira:
As mudanças de 1 para 3 e depois 5 caixas acústicas atrás da tela tiveram pequenas alterações de formato para formato, mas o padrão de distribuição que ficou foi exatamente este mostrado acima.
Cinemas com aparelhagem 35 mm continuaram a usar mono ou estéreo de 3 canais nas telas, enquanto que os que modificaram a instalação para 70 mm preferiram aumentar para 5 caixas acústicas atrás das telas. Há relatos que dizem que alguns cinemas com 70 mm preferiram deixar 3 em vez de 5 caixas, mas eu nunca confirmei isso com ninguém conhecido.
Formatos como o Super Panavision, Cinerama 70 (Super Cinerama), Dimensão 150 e similares, todos eles se basearam na distribuição de 5 caixas acústicas atrás da tela. Na era digital, a Sony decidiu manter este arranjo de 5 caixas com o SDDS. Dolby Digital e DTS seguiram o formato deixado para o CinemaScope!
O que sempre norteou este tipo de layout atrás das telas foi o acompanhamento da relação de aspecto, com exceções, como o Fantasound, em formato da academia, que só usou 3. Aliás, um dos motivos pelo quais isso não deu certo foi porque a mixagem não se encaixava neste formato. Isso só foi conseguido no CinemaScope, cujo diálogo direcional mudava de canal, de acordo com o deslocamento do personagem na tela mais larga. Em discos DVD ou Blu-Ray onde esta direcionalidade é mantida é possível entender com clareza como as produções da época eram feitas.
Sobre isso, um dos méritos de mixagem inovadora coube ao engenheiro de áudio, ex-baterista, imigrante russo Murray Spivack, que trabalhou do mono ao Cinerama, do CinemaScope ao Todd-AO e formatos similares. Ironicamente, ele só recebeu uma estatueta Oscar muitos anos após o seu trabalho inovador ter sido realizado.
Historicamente, o som teve uma enorme importância no cinema e talvez por isso a associação do termo “som estereofônico” ficou ligada às sessões nas salas de exibição de melhor nível de aparelhagem.
Esta evolução de número de canais também trouxe a preocupação dos designers pós banda magnética em manter uma retro compatibilidade de reprodução do som nas salas de exibição. No ambiente digital, o som em formatos 5.1, 6.1 e 7.1 é perfeitamente adaptável até para equipamentos mono, através de metadados incluídos nos respectivos codecs.
E se hoje em dia os algoritmos de upmixing são usados com eficiência nos modernos decodificadores é porque houve previsão de aperfeiçoamento de reprodução do som digital no cinema desde o advento do Dolby Digital.
O som estereofônico, criado para, entre outras coisas, redimensionar a percepção do aumento das telas de cinema, provocou o aperfeiçoamento dos processos de captura do som, dos métodos de gravação e mixagem, o desenvolvimento de novos designs de amplificadores e caixas acústicas, e a criação de novos formatos, do analógico (Dolby Stereo e Spectral Recording) ao som digital.
O termo em si, que tanto nos mistificou na infância e adolescência, serviu de base sólida para a evolução do som no cinema e no ambiente doméstico, fazendo jus à solidez proposta pela origem do seu nome. Outrolado_
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Leia também:
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Paulo mais uma vez aprimorando nosso conhecimento, com outro tema muito relevante sobre o sistema estéreo para o cinema. Eu sempre me questionei sobre qual seria o limite da evolução desses sistemas multivias, me baseando nas atuais salas projetadas para esse tipo de audição. Ocorre que dependendo do título escolhido, não creio que haverá uma experiência audível detectável, somado esse fator a capacidade de público da sala, e a melhor escolha de assentos disponíveis, para sentir o efeito originalmente criado nos estúdios. Filmes de ação, ficção e suspense, podem se beneficiar de sistemas 5.1, 6.1 ou 7.1, já para outros gêneros de filmes como dramas, comédias, musicais, não vejo nenhum incremento no aumento de número de canais, sendo melhor a audição no bom e velho sistema estéreo, ou no máximo 5.1. Para a nossa sorte toda mixagem de som realizadas pelos estúdios, reúnem profissionais de altíssimo nível e gabarito, ao contrário do que vem sendo desenvolvido nos estúdios de som para grupos musicais, que mereceria um artigo futuro de sua coluna no Outrolado. Mas isso se refere a percepção de cada um.
Oi, Rogério, este assunto do som resultante da mixagem nos estúdios de música está na minha pauta, ainda para ser escrito nos próximos dias. Como você mesmo disse, a comparação é inevitável.
A ironia dos dias de hoje é aumentar o número de canais na trilha sonora em cinemas de relativo pequeno porte, cujas dimensões não passam nem perto das salas que exibiram CinemaScope ou Super Cinerama no passado distante.
A nossa sorte, creio eu, é poder realizar em casa toda e qualquer mixagem moderna, desde que, obviamente, o equipamento instalado assim o permita.
Paulo mais uma vez aprimorando nosso conhecimento, com outro tema muito relevante sobre o sistema estéreo para o cinema. Eu sempre me questionei sobre qual seria o limite da evolução desses sistemas multivias, me baseando nas atuais salas projetadas para esse tipo de audição. Ocorre que dependendo do título escolhido, não creio que haverá uma experiência audível detectável, somado esse fator a capacidade de público da sala, e a melhor escolha de assentos disponíveis, para sentir o efeito originalmente criado nos estúdios. Filmes de ação, ficção e suspense, podem se beneficiar de sistemas 5.1, 6.1 ou 7.1, já para outros gêneros de filmes como dramas, comédias, musicais, não vejo nenhum incremento no aumento de número de canais, sendo melhor a audição no bom e velho sistema estéreo, ou no máximo 5.1. Para a nossa sorte toda mixagem de som realizadas pelos estúdios, reúnem profissionais de altíssimo nível e gabarito, ao contrário do que vem sendo desenvolvido nos estúdios de som para grupos musicais, que mereceria um artigo futuro de sua coluna no Outrolado. Mas isso se refere a percepção de cada um.
Oi, Rogério, este assunto do som resultante da mixagem nos estúdios de música está na minha pauta, ainda para ser escrito nos próximos dias. Como você mesmo disse, a comparação é inevitável.
A ironia dos dias de hoje é aumentar o número de canais na trilha sonora em cinemas de relativo pequeno porte, cujas dimensões não passam nem perto das salas que exibiram CinemaScope ou Super Cinerama no passado distante.
A nossa sorte, creio eu, é poder realizar em casa toda e qualquer mixagem moderna, desde que, obviamente, o equipamento instalado assim o permita.