“E não me venham com essa história de que no Brasil é diferente. Lá fora funciona assim, no mundo inteiro deu certo, no México está indo bem, então aqui vai ser assim e pronto.”
Não reproduzi o sotaque, mas espero ter traduzido a arrogância, a miopia mental, a truculência da posição desse cliente, na época à frente de uma mega empresa estrangeira vindo para o Brasil. Tive sorte de não atendê–lo por mais tempo, e logo vi essa convicção toda ir por terra à medida que a empresa tropeçava nos próprios pés.
A grande decepção, porém, foi perceber nestes últimos anos que nós mesmos, brasileiros, tão orgulhosos da nossa criatividade e singularidade e adaptabilidade, caímos nessa mesma armadilha do “funciona lá, então funciona aqui”. Basta surgir um discurso novo lá fora para que saiamos repetindo como papagaios o que veio pronto.
Quando o assunto é tecnologia ainda vai, afinal máquinas são máquinas, e com um bom ar–condicionado elas nem percebem que estão nos trópicos. O bicho pega quando o assunto envolve pessoas “a nível de gente enquanto seres humanos”.
Quem “mexe” com internet mexe inevitavelmente tanto com tecnologia como com gente, sobretudo se isso envolve as ditas “ferramentas sociais” e “plataformas de comunidade”. Fica muito difícil separar o que é técnico daquilo que é humano, e aí mora um perigo que me preocupa.
Ferramentas sociais como grupos, chats, fóruns, existem aos montes, e estão cada vez mais maduras e robustas. Na maior parte das vezes você não precisa inventar a roda, basta adotar uma e customizá–la. Vai funcionar? Não. Adianta ler o manual, referências, artigos, debates? Talvez não.
Por que não? Por que ferramentas que funcionam lá fora podem engasgar aqui?
Pra ilustrar: numa história em quadrinhos, o viking Hagar, o Terrível, volta pra casa depois de saquear Roma. Traz de presente pra mulher uma surpresa: uma torneira. Para demonstrar a maravilha, Hagar abre a torneira. “Ué, em Roma saía água”, diz ele encafifado.
É isso aí. Importar a torneira não faz com que tenhamos água. E se descobrirmos como fazer a água sair, nossa água não é tão potável nem fluorada como a água dos gringos.
Voltemos ao nosso métier. Brasileiros têm um comportamento social completamente diferente dos americanos. E dos japoneses. E dos alemães. Traga para cá um ambiente colaborativo criado na… Inglaterra (ou Índia, ou China), super bem–sucedido, e veja o que acontece quando brasileiros entrarem nele.
Entre brasileiros a informalidade, a aversão a regras, a aversão a líderes, o gosto pelo off–topic, a malícia podem virar um ambiente desses do avesso.
Esperar que comunidades tenham o mesmo padrão de crescimento e expansão, esperar que sigam um funcionamento conhecido é de uma ingenuidade inadmissível, ainda mais num povo que se orgulha de não ser ingênuo. E esse não é um problema exclusivo do nosso métier: isso tem a ver com choques culturais, diferenças regionais, globalização, etc.
Existiria um manual para que comunidades funcionem, alguma fórmula mágica, uma panacéia universal? Não há não. Tudo o que envolve pessoas e sobretudo pessoas interagindo com pessoas merece uma atenção e um cuidado tão atentos, tão específicos, tão constantes que fica difícil criar uma solução que funcione em todos os lugares da mesma maneira. Cada caso, cada casa, cada acaso é um caso.
É como imaginar que cidades planejadas vão ser mais habitáveis do que cidades espontâneas. Vá para Brasília e veja as pessoas dando nós no sonho original do Lúcio Costa.
Na aritmética humana, o denominador comum é um e o problema é definir os máximos múltiplos. A partir de que número vale a teoria do caos?
Dentre os inúmeros livros que amei mas nunca li está um do nosso ex–presidente Fernando Henrique Cardoso, que se chamaria (não sei ao certo) “A Originalidade da Cópia”. Segundo ele, mesmo quando copiamos algo estrangeiro introduzimos sem perceber ingredientes locais, e o resultado é imprevisível.
Exemplo: tentamos copiar a democracia representativa mas a infectamos com coronelismo e clientelismo. Isso é ruim. Tentamos copiar o jazz e fizemos o chorinho (bola dentro). Tentamos copiar a divisão de poderes e acabamos criando castas no funcionalismo.
Ser brasileiro é uma benção, um privilégio, mas como já disse alguém (quem foi?) Brasil não é coisa para amador, é pra profissional. Copiar não vale. [Webinsider]
René de Paula Jr
René de Paula Jr (rene@usina.com) foi de tudo um pouco em digital mas foi e é sobretudo um publicador compulsivo de ideias, aprendizados e provocações. Mais na Usina e no Roda e avisa.