Quanto menos influência e pressão social sobre dada organização, mais ela tenderá a se acomodar e passar a pensar mais em seus privilégios.
Nepô
Há um certo ciclo dos seres humanos que precisamos entender, para pensar o futuro das organizações com a chegada da rede digital.
Precisamos, antes, compreender o papel das organizações na sociedade, a tensão em cumprir esse papel e como administrar a vida daqueles dependentes dela internamente.
Há uma tensão constante no ar, entre o mundo lá fora que quer mudança na organização e o de dentro que não quer. O primeiro ponto é imaginar: toda sociedade humana precisa de um setor produtivo.
O setor produtivo cumpre o papel de resolver nossos problemas de sobrevivência. E, quanto mais os resolvem com eficácia, mais geram valor social.
(Separo a ideia de gerar lucro, de valor social, pois são duas coisas diferentes. Um banco pode gerar muito lucro, mas pode não gerar tanto valor social, por exemplo, ou mesmo uma indústria de cigarro. Esse conceito estará cada vez mais em voga num capitalismo digital.)
O ser humano é um eterno escravo da produção para poder resolver seus problemas, independente do sistema econômico.
(E falo de todos, do dono ao mais humilde dos empregados, com relações diferentes de escravidão, obviamente).
Se ninguém trabalhar todos morrem de fome, de frio, de sede. Precisamos, assim, colaborar com o coletivo para que a máquina ande e, dependendo da época, receba em troca algo para poder continuar a existir.
Uma sociedade será mais justa ou menos justa, conforme haja distribuição das riquezas produzidas e com a possibilidade de cada um desenvolver o seu talento especial. Deve haver uma distribuição equânime do trabalho.
Eis a utopia humana.
Produzir para existir
Isso, entretanto, independe do tipo de sistema político e econômico, pois sem produção não há civilização. É, portanto, uma condicionante da espécie. Assim, a forma como sobrevivemos, ou hoje, como trabalhamos, é algo vital.
Como passamos a depender do local onde conseguimos gerar valor individualmente, isso nos faz, naturalmente, querer que – quando chegarmos a um determinado lugar – esse seja preservado de ataques hostis.
Há, assim, uma tensão interessante.
Toda instituição luta para não mudar, pois o corpo quer sobreviver. Porém, precisa atender a demanda da sociedade para a qual ela foi criada, e essa é, muitas vezes, mutante:
- De um lado, a organização precisa gerar valor para a sociedade para cumprir o seu papel.
- E, ao mesmo tempo, deve resolver o problema de quem dela tem o seu sustento, do acionista ao funcionário menos graduado.
Assim, há uma tendência humana natural para preservar o espaço no qual se trabalha, que resolve seus problemas de sobrevivência. Então são colocados muros de proteção, barreiras para proteger ao máximo o espaço de qualquer coisa geradora de instabilidade.
E o setor produtivo – esse se apodera do poder para continuar com a produção – gera uma sociedade mais conservadora, espelhada em seu projeto político-produtivo. Ou seja, são os interesses dos detentores do poder.
Isso não é do agora, mas, a meu ver, de sempre. As organizações são, portanto, antes de tudo, um espaço onde os que ali trabalham tornam-se seus protetores – e os que dela precisam, seus cobradores.
- Uns, de dentro, teoricamente, lutam para não mudar;
- E os de fora querem que ela gere valor para resolver da melhor forma possível os problemas para os quais foram criadas.
Nota-se: isso ocorre tanto em instituições públicas como privadas. É mais evidente nas públicas, pois essas têm um colaborador mais permanente.
Esse tipo de tendência cria uma busca pela preservação cada vez maior, pois vai se constituindo um corpo ao longo dos anos e esse vai criando formas de se proteger e mecanismos para se aproveitar ao máximo de benefícios.
Quanto menos tiver influência e pressão social sobre esse corpo, mais ele tenderá a se acomodar e passar a pensar mais em seus privilégios. Normalmente, em detrimento do seu papel social de solução de problemas. Isso deixa de ser o principal e passa a ser o secundário. Ocorre também em empresas privadas.
As organizações se perderam na sua própria estabilidade
Veja: a Microsoft se burocratizou, cresceu muito e perdeu o ritmo de inovação dos concorrentes. Suas ações estão congeladas há mais de uma década em 25 dólares. Ao passo que a Apple saltou de 17 dólares, a partir de setembro de 2004 para 320 dólares. E o Google de 105 dólares para 486 no mesmo período (Dados da Info – 305, nas bancas).
A defesa interna pela não mudança gera gradativa perda de musculatura para mudar, uma constante não adaptação às mudanças externas e, na continuidade, uma decadência, marcada claramente, por uma perda contínua de valor social, pois cada vez mais, ao longo do tempo, menos atende aos interesses para os quais foi criada.
Assim: Toda empresa é a solução criativa para uma angústia gerada por um problema – Duailibi & Simonsen;
Uma empresa sem perfil inovador, não acompanha e perde valor. Ou é derrubada por um concorrente, no caso privado; ou sofre uma mudança radical com a chegada de novos governantes eleitos para solucionar problemas desse tipo, reformulando o setor público, vide privatizações, terceirizações, etc.
(Que, a despeito da luta política, representam a procura por solucionar problemas e ir para outro patamar de novos problemas, num eterno ciclo.)
Um político, por exemplo, usa uma instituição pública para seu benefício: as forças de dentro se afastam de seu objetivo principal. Assim como governantes que sucateiam instituições públicas, retiram meritocracia e verbas. Também temos os empregados. Esses lutam por salário, mas não por melhor qualidade de atendimento na sua prática cotidiana.
As empresas privadas se caracterizam, na maior parte atualmente, por uma procura do lucro a qualquer custo (vou chamar de lucro tóxico), a despeito do respeito pelos clientes e colaboradores. Práticas não aceitas pela sociedade criam uma desconfiança social ao longo do tempo. Por isso os consumidores optam por concorrentes mais coerentes com seus desejos, possibilidades e necessidades.
Se há um lado saudável em preservar a instituição, pois assim caminha a humanidade para se proteger, tal movimento quando exagerado, cria uma organização cada vez mais voltada para resolver os seus próprios problemas e de quem nela trabalha e menos para cumprir sua função social. Ou seja, passa a ser um problema e não uma solucionadora do mesmo.
Evoluir para manter o valor
Tais situações são administradas por meio de uma taxa de mutação mais alta ou mais baixa dependendo da organização. Isso é algo, assim, a ser gerenciado para se chegar a um equilíbrio. Não há jeito, saída, momento no qual isso se resolve. É a gestão permanente da tradição saudável versus a tradição tóxica. Da inovação pelo modismo vazio versus a inovação pela necessidade da sociedade.
Isso tudo sofre um impacto radical quando o consumidor/cidadão recebe de mão beijada uma revolução da informação, pois a balança da não mudança se desequilibra. E passamos todos a operar em outro tipo de tensão entre as partes.
A regra do jogo dependia fortemente de quem apitava. Se muda o regulador – a mídia – muda-se todo o cenário. Vai além de um novo jogo, mas outro campeonato, em alguns casos, outro tipo de esporte!
As forças conservadoras das corporações perdem força e passam a estar diante da necessidade imperiosa da mudança, porque o ambiente está mudando, os concorrentes, idem.
(Se isso não é totalmente visível em todos os setores, é por que tudo caminha como uma onda. Começaram os setores de tecnologia, de mídia e se espalha por todos os outros da sociedade. É esperar para alguém bater na porta.)
Por quê?
Está caindo a ficha para cada vez mais gente: grande parte da manutenção tradicionalista das organizações se dava e ainda se dá (cada vez menos) em torno do controle da comunicação, da informação e da relação entre os consumidores.
Esses aceitam uma empresa com pouco valor por falta de opção dos concorrentes, por falta de informação, por falta de articulação entre os pares para reclamar e mudar o quadro e por falta de comunicação para poder dizer o que realmente pensa e sente.
O cliente sempre teve razão, se essa fosse a mesma do acionista, certo?
A balança da não mudança para as forças tradicionalistas começa a ter que mudar. E é esse o dilema da atual sociedade.
As organizações atuais são tradicionalistas, mas perderam a sua arma principal: a dominação da sociedade para que aceite esse conservadorismo, via mídia vertical com o controle quase absoluto das fontes relevantes. E é nessa roda da mudança que as organizações precisam entrar, pois surgem concorrentes mais rápidos, mais ágeis, com um corpo menos tradicionalista e esses ampliam o fosso entre a inovação e a conservação.
São empresas aliadas aos interesses dos clientes. Conseguem administrar a tensão de dentro e fora de forma mais interessante, via redes sociais produtivas.
O que impedia a mudança se rompeu. As possibilidades de informação, comunicação, relação e de geração de novos negócios mudaram radicalmente de patamar, gerando um novo consumidor.
Faltava-nos clareza de perceber o quanto o nosso mundo era o nosso mundo por causa do controle que se tinha da circulação de ideias, da comunicação e relação entre as pessoas. E o espaço diminuto para novos projetos acontecerem, dentro desse novo ambiente.
É isso que se coloca como um grande cenário irreversível, força motriz das organizações para o futuro digital em rede, muito mais mutante e veloz.
(Por mais que todo o corpo interno das organizações não queira e resista.)
É, sem dúvida, a maior mudança organizacional, desde que o capitalismo foi fundado há quase 500 anos. É a chegada de um capitalismo digital, combatente do lucro tóxico do capitalismo analógico, hoje completamente decadente. E esse vai criar outra forma de equilíbrio mais dinâmica entre a tensão do mal estar das organizações.
Sobre o capitalismo digital falarei em breve.
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Carlos Nepomuceno
Carlos Nepomuceno: Entender para agir, capacitar para inovar! Pesquisa, conteúdo, capacitação, futuro, inovação, estratégia.
3 respostas
Entrei pelo título e fiquei pelo conteúdo. A paráfrase de Freud, no título é justificável e fundamental. Espelha a antropologia dos espaço confinados da produção, que toda “sociedade de mercado” está envolvida. Mas, falta ainda identificar o retrofeedback, pois é histórico que o criar de soluções, amplia a gama de problemas possíveis, oriundos das “soluções”. Para fazer o change management é preciso, antes, sair do espectro da microfonia, do retorno do movimento sobre si mesmo, enfim da lei do karma das organizações…
Muito bom!
E se a mudança for muita?
Quero dizer, a mudança no sentido de inquietação e evolução constante da empresa é positiva. Mas e se a instituição não quiser resolver os problemas que a acomodação gerou e simplesmente decidir mudar o foco do negócio totalmente, até aparecerem novos problemas que a faça mudar o foco de novo…
Isso é evolução? É mudança? É burrice?
Grande abraço!